Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Isaias Raw

CIÊNCIA & TECNOLOGIA

"O papel aceita tudo: ciência e tecnologia", copyright Folha de S. Paulo, 6/01/02

"O recente artigo ?O papel aceita tudo? (Carlos Eduardo Lins da Silva, ?Tendências/Debates?, pág. A3, 21/ 12) abre uma autocrítica ao papel da imprensa. Precisamos abrir uma em relação à ciência e à tecnologia.

O Ministério da Ciência e Tecnologia e a Fapesp têm feito um extraordinário esforço para estimular a pesquisa científica e a sua tradução em tecnologia, única solução para uma nova etapa de desenvolvimento nacional. Governo, comunidade científica, imprensa e uma parcela pequena do empresariado estão associados nesse esforço. Entretanto o marketing não substitui uma visão mais realista: precisamos investir agora em pesquisas e em desenvolvimento tecnológico de verdade para, em 2010, começarmos a usufruir dos resultados.

Nos anos 60, eu estava interessado em introduzir na escola secundária um aparelho simples para fazer experiências com radioatividade. Duas lâmpadas neon (são todas diferentes) podem ser associadas e, com a voltagem certa, uma acende e apaga quando um material radioativo se aproxima da outra, apagada. Montei um modelo e funcionou. Comprei 200 lâmpadas e passei o dia inteiro sem conseguir outro par que funcionasse como o primeiro.

Se parasse no primeiro par, publicaria um artigo e tentaria vender o projeto para a indústria. Essa é a diferença entre a universidade e a empresa. O que a universidade oferece é uma idéia, às vezes testada, e não um projeto tecnológico que a indústria possa usar. Isso é extremamente comum na área de saúde, onde pesquisas internacionais mostram que leva em média uma década para converter o projeto em produto.

A descoberta de que o veneno de jararaca baixa a pressão arterial levou 28 anos para ser transformada no captopril, produto sintético eficaz e barato que pode ser administrado por via oral.

Quem usufrui da patente não são os pesquisadores paulistas que estudaram o veneno, mas, com justiça, os que inventaram o produto sintético. Todos os dias, algum cientista descobre um efeito no laboratório e se imagina vendendo a patente para uma indústria. O processo é longo. O desenvolvimento tecnológico verdadeiro custa uma centena de vezes mais do que a pesquisa inicial, que a empresa privada brasileira não está preparada para investir. O ensaio clínico exige anos e custos incríveis para pagar médicos (os voluntários nada podem receber), frequentemente usando hospitais públicos em horário de trabalho.

Não preciso repetir o artigo do professor Cerqueira Leite (?Saúde e mercado?, ?Tendências/Debates?, pág. A3, 11/11), que revela uma outra barreira: o dos interessados (nem sempre as empresas fabricantes) que lutam para impedir a produção no país de vacinas como a de hepatite B ou o processamento dos hemoderivados colhido nos hemocentros.

No ano passado, estávamos substituindo o filé mignon por minhocas. Neste, estaríamos usando equipamento altamente sofisticado que jamais estaria disponível nos hospitais, ao imaginar que fotografando uma bactéria seja possível fazer um diagnóstico da doença e encaminhar com mais rapidez o tratamento. A minhoca não é economicamente viável (nem aceitável) e a fotografia da bactéria não é suficiente para o tratamento. Precisamos ser objetivos e montar, mais do que pequenas ?incubadeiras?, centros equipados para o desenvolvimento tecnológico.

Foi o que aconteceu 40 anos atrás na Funbec, que, numa linha paralela ao desenvolvimento do ensino de ciências, tornou o monitor, o eletrocardiógrafo e o desfibrilador, então disponíveis em hospitais de primeira linha, num equipamento padrão. Foi o que o Butantan fez com as vacinas, desenvolvendo tecnologia, implantando fábricas e entregado 150 milhões de doses de vacinas eficazes e seguras, mostrando não apenas competência, mas a viabilidade de instituições públicas em áreas onde a empresa privada não está disposta a investir e produzir a preços compatíveis.

Para transformar os ?sonhos? dos pesquisadores em produto, precisamos criar centros de desenvolvimento tecnológico com engenharia de produto e produção e, no caso especial de medicamentos e vacinas, de centros de pesquisa clínica. Precisamos criar centros de desenvolvimento e produção de substâncias químicas orgânicas, sem o que continuaremos ?fabricando medicamento? na realidade importados da Índia ou da China e a usar chás ineficazes e nem sempre inócuos. Sem isso, continuaremos a vender ilusões que aparecem nas manchetes de jornais leigos e, às vezes, em publicações que circulam na própria comunidade científica.

Neste desabafo, não posso me furtar a repelir noções errôneas de que ensinando a ler, para ler literatura, formamos a nova geração de que necessitamos. Para isso precisamos de mais gente como os aficionados pela internet, jovens que aprenderam a pensar objetivamente, com uma base matemática, mas que estejam expostos a experiências científicas de verdade (como os que usaram os 3 milhões de kits cientistas na década dos 70), para aprender a fazer com mão e tirar conclusões com a cabeça. (Isaias Raw, 74, é professor emérito da Faculdade de Medicina da USP e presidente da Fundação Butantan. Foi diretor do Instituto Butantan (1991-97) e professor visitante do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (1971-73) e da Universidade Harvard (1973-74))."

 

ANALFABETISMO DIPLOMADO

"Analfabetos na universidade?", copyright Folha de S. Paulo, 5/01/02

"A aprovação de um analfabeto no exame seletivo da Universidade Estácio de Sá e a matéria preparada e exibida pelo ?Fantástico?, seguida de outra matéria onde o mesmo indivíduo era novamente aprovado -dessa vez com uma colega da classe de alfabetização- na Universidade Gama Filho, causaram um enorme mal estar na mídia, na população e no próprio Ministério da Educação, que se apressou nas medidas para aplacar a opinião pública.

As medidas anunciadas não atenuam o problema: a instituição deve incluir prova de redação com nota mínima -bastando, em princípio, não ser zero-, não repetir o vestibular mais de duas vezes por período e exigir de candidato diploma do ensino médio ou certificado de que o está cursando para poder realizar o processo de ingresso.

Será que é aí que reside o problema? No conjunto de mais de mil instituições de ensino superior, o que quer dizer nota mínima para uma prova de redação? Saber assinar o nome? Escrever 20 linhas? Voltar os exames seletivos para duas datas fixas não é o retorno ao vestibular, cujos males o próprio ministério vem denunciando e que foi abolido como exigência na nova LDB? Não, definitivamente não é essa a questão.

Antes de tudo, é preciso lembrar que, apesar do desconforto que a aprovação dos dois analfabetos provoca, eles não precisaram demonstrar condições acadêmicas de cursar o ensino superior. Na prática, eles não poderiam se matricular em nenhuma universidade, a menos que forjassem um diploma.

As medidas do Ministério da Educação podem dar a impressão de garantir a qualidade mínima do ingressante nas instituições brasileiras de ensino superior, mas, em muitos países, basta terminar o ensino médio para ter lugar assegurado numa instituição de terceiro grau. A peneira ocorre dentro do sistema. Nem por isso o ensino superior desses países é um desastre.

Com o aumento da oferta de cursos e de vagas -o que aumenta a concorrência e não é um mal em si mesmo-, muitas instituições de ensino superior têm candidatos em número igual ou inferior às vagas que oferecem. Algumas por oferecerem vagas demais, com cursos geralmente ruins, outras porque oferecem cursos onde a concorrência local é demasiadamente acirrada.

Existe um outro tipo de ?processo seletivo?, que só tem sentido se sua função for, além de classificar os estudantes, a de comprovar a suficiência de seus conhecimentos para cursar o curso pretendido. Essa prática já foi largamente utilizada e defendida, por exemplo, nas universidades públicas. A existência de exames com notas mínimas produziu, no entanto, em muitos casos, vagas ociosas, não preenchidas, que deixaram de atender a jovens candidatos, muitas vezes por exigências descabidas dos examinadores. Hoje, o consenso é de que as universidades públicas não deveriam criar obstáculos -além da limitação do número de vagas- para a entrada de estudantes em seus cursos, sendo o controle feito naturalmente pela concorrência, que impõe um padrão mínimo de desempenho para os aprovados.

Então onde está o mal que nos fez sentir profundo desconforto com a reportagem do ?Fantástico?? O fato parece estar na presunção de que os candidatos mostrados no programa iriam cursar as universidades. Isso não é verdade.

O que nos faz sentir que há uma maldade por trás de tudo isso é o fato de que foi criada a expectativa de que o aumento das vagas e dos cursos superiores nos últimos anos e o crescimento indiscriminado de algumas instituições de ensino superior (mais preocupadas em aproveitar nichos de mercado do que oferecer um bom ensino) resultariam numa queda de qualidade, sugerida pelos maus resultados que o ensino brasileiro tem obtido internacionalmente em todos os níveis.

A grande maldade é aceitar a inscrição de alguém que não tem condições de cursar o ensino superior e saber que nada dentro da instituição será feito para recuperá-lo. Ou aceitar quem quer que deseje ingressar na universidade, principalmente na paga, mesmo sabendo que essa pessoa será um futuro desistente, reprovado ou evadido, tendo financiado com seus primeiros meses de estudo grande parte da estrutura daqueles que terão êxito, ele mesmo não recebendo nada em troca. Pior ainda seria que fosse diplomado sem ter aprendido nada e se transformasse em mais um profissional incompetente, uma vez que, no Brasil, o diploma em quase todas as profissões habilita automaticamente ao exercício profissional, o que estimula a pacto do ?pagou, passou?.

Se uma instituição de ensino superior aceita o aluno, o mínimo que se espera é que ela o informe sobre as dificuldades que ele vai enfrentar e, se decidir aceitá-lo como estudante, esforçar-se legitimamente para que ele tenha sucesso.

É o engodo, o fingir examinar sem examinar, o fingir ensinar sem ensinar, o cobrar por um diploma sem substância, que faz os brasileiros se sentirem tão mal com a matéria do ?Fantástico?.

Que nossa sociedade não se iluda: o que importa, finalmente, não é tanto a qualidade do ingressante, e sim a do egresso! Esperemos que o Ministério da Educação não se preocupe, neste ano eleitoral, com medidas ?políticas?, mas aprofunde e aperfeiçoe os processos de avaliação, esses sim, capazes de melhorar a qualidade do ensino brasileiro. (Roberto Leal Lobo e Silva Filho, 62, doutor em física pela Universidade Purdue (EUA), é diretor da Lobo & Associados Consultoria e Participações. Foi reitor da USP (1990-93) e da Universidade de Mogi das Cruzes (1996-99))"