Tuesday, 16 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

Isenção agredida

FOLHA, PÁGINA 2

Alberto Dines

A Folha de S.Paulo tem desde 1976 um Conselho Editorial e desde meados de 80, um Manual da Redação e um ombdusman. Além disso, tem a seção de erratas ("Erramos", pág. 3) mais visível da imprensa brasileira. Parabéns.

É o melhor equipamento deontológico do mercado. Título que ninguém pode com ela disputar. Resta saber o que o insigne jornalão faz com esta bagagem moralizadora e disciplinar.

Vejamos o caso da coluna no canto direito da nobilíssima página 2 onde escreve, às quintas-feiras, o próprio diretor de Redação. A escolha dos demais colaboradores fixos parece ser extremamente rigorosa. Tanto que quando o economista André Lara Resende assumiu a presidência do BNDES foi obrigado a deixar aquele espaço. O mesmo acontecendo com o senador José Serra, quando assumiu a pasta da Saúde.

Nas duas ocasiões, o jornal explicou que um colaborador fixo da sua página de opinião não poderia ocupar função pública. Não disse, mas deixou claro que tentava evitar um conflito de interesses.

No entanto, às terças-feiras lá escreve há alguns anos Roberto Mangabeira Unger, o assumido guru político do pré-candidato Ciro Gomes que, evidentemente, não escreve sobre o sexo dos anjos nem contraria os postulados do pupilo.

Às quartas, pontifica o deputado Antônio Delfim Netto (PPB-SP).

E às sextas lá está o senador José Sarney (PMDB-AP), múltiplo pai ? do (agora ex-) ministro Sarney Filho, da candidatíssima Roseana Sarney e sogro (father in law) do insuspeito Jorge Murad.

Digamos que o exercício de um mandato parlamentar não constitua impedimento para ocupar tão importante tribuna do cenáculo nacional. Portanto, o deputado Delfim e Sarney, enquanto senador, estão OK, liberados.

Mas José Sarney há tempos vem usando indevidamente aquele espaço para defender a oligarquia por ele comandada. O artigo da sexta-feira, 1/3 ("Kyoto e a estufa") é uma descarada defesa das políticas do filho à frente da pasta do Meio Ambiente. É indiferente que o desempenho do ex-ministro tenha sido razoável. Se os elogios fossem dirigidos ao ministro de Ciência e Tecnologia, seriam perfeitamente naturais. Mas tratava-se de elogiar um filho-ministro quando este se preparava para deixar o cargo para entrar numa campanha e disputar uma eleição.

Quando o artigo foi escrito e publicado, José Sarney Filho ainda estava ministro e o escândalo envolvendo a família ainda não se tornara público. Está claro que o extremado pai planejava uma generosa colher-de-sopa ao primogênito até a sua desincompatibilização, prevista inicialmente para abril. Júnior perdeu a boca-livre na coluna do pai, pode ser que não se reeleja, mas o artigo publicado comprova que o ocupante daquele espaço não é confiável ? está ali para defender seus interesses e não os do leitor.

Como pai e grande eleitor ostensivo de uma candidata à presidência da República, terá José Sarney Sênior a isenção, o distanciamento, o equilíbrio e a objetividade para oferecer aos leitores da Folha uma reflexão livre de favorecimentos?

Conhecendo-se a peça a resposta é uma só: não.

Na semana passada, quando foi divulgada a resposta do TSE sobre a verticalização das coligações eleitorais, Sarney Pai estava esbravejando nas páginas políticas numa inédita militância (que não exibiu nos tempos da ditadura) para condenar a decisão que eventualmente pode prejudicar a filha. Advinha-se que doravante tornar-se-á ainda mais militante ao ver o amado clã colocado na berlinda pelo Ministério Público e pela Justiça Federal.

José Sarney foi demitido do Jornal do Brasil em 1962, quando correspondente no Maranhão, porque só mandava matérias que serviam à sua carreira e seus interesses eleitorais. Agora, 40 anos depois e pelas mesmas razões, a impecável Folha devia, pelo menos, colocá-lo no banco dos reservas. [Em 5/3/02]