Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Ivan Marcos Machado

BAIXARIA & VIOLÊNCIA
Eugênio Bucci

"Quando a desgraça dá lucro", copyright Folha de S. Paulo, 25/11/01

"Desamparo, doença, dor. O sofrimento dá lucro nos novos shows de auditório. As mais variadas formas de padecimento físico, econômico e moral fazem dinheiro em programas como ?Hora da Verdade?, na Bandeirantes, e ?Canal Aberto?, na Rede TV!. As deformidades e o desespero se juntam para garantir uma audiência que, embora não seja grande coisa, consegue atrair anúncios de remédios e similares. Retorno garantido.

Um conhecido cantor popular entoava um refrão que, há duas décadas, soava incontestável: ?A dor da gente não sai no jornal?. Hoje o quadro é outro. A dor da gente ou, mais precisamente, a dor da ?gente humilde? tornou-se a vedete desses novos programas, que são uma variante mais intimista e mais berrante do velho sensacionalismo, um sensacionalismo sentimental. Agora, os holofotes já não procuram apenas o relato da tragédia, não iluminam somente a cena do crime ou os corpos dilacerados, o que merece destaque no sensacionalismo sentimental é o pranto das vítimas, seus soluços, sua desorientação. Não é bem o mundo cão que está ali, mas o desconsolo que ele produz em cada um. Assim, o novo sensacionalismo vai inventariando as muitas fisionomias do horror nos olhos atônitos dos convidados.

Os que não têm mais a quem recorrer, os desenganados sociais, ali comparecem para implorar a atenção que lhes é devida. E, inacreditável, ainda pagam um preço: fazem o papel de atração exótica. Eles não cobram cachê, ?atuam? de graça e, sem saber, fazem girar os muitos zeros da caixa registradora da máquina de humilhar (máquina travestida de ajuda humanitária). Quando muito, ganham um pacote de mantimentos, uma consulta médica, uma promessa de político. A produção é baratíssima, e o faturamento comercial é cada vez mais alto. Tanto que as atrações do gênero vão se multiplicando em sua primavera macabra.

E vão se superando. A sensação é de que Ratinho ficou reduzido a um inofensivo animador de aniversário de criança, algo como uma Xuxa de gravata, ou uma Eliana de bigodes. ?Canal Aberto?, de João Kleber, dedica minutos a fio ao drama do homem cujo ?pênis tem três centímetros?, dedica blocos inteiros à senhora que quer doar seus dois filhos. A mulher é obrigada a escutar, ao vivo, lições de moral de seus anfitriões. ?Hora da Verdade?, de Márcia Goldschmidt, transforma em show o garoto que tem ?escamas na pele? e precisa viver dentro da banheira, faz suspense da tristeza da mãe que carrega numa caixa de papelão o que afirma serem os ossos do filho. Extrapolam seguidamente a barreira do grotesco. E por que não? Por que não extrapolar? Que razão teriam para poupar seus convidados de mais exposição? Respeito? Ora, no livro-caixa da TV brasileira, o mesmo livro em que o infortúnio dos humildes é sinônimo de lucro, respeito humano está virando sinônimo de prejuízo.

Dirão os defensores do sensacionalismo sentimental que esses programas ?ajudam? os que neles se submetem à invasão dos holofotes. É verdade que ?ajudam?. Mas essa ajuda não é sequer esmola: é apenas um investimento, e desprezível. Dirão, também, que há programas semelhantes nos países mais ricos e que, logo, a pobreza brasileira nada tem a ver com isso. Acontece que, nos países ricos, menos desiguais que o nosso, onde há direitos mínimos assegurados, atrações assim mal passam de uma excentricidade estética, ainda que de gosto duvidoso. Aqui, são mais um fator de degradação social. Reforçam um preconceito atávico entre nós: o de que a ?gente humilde? deve suportar qualquer vexame por um prato de comida. Como se houvesse duas dignidades no Brasil: a dos ricos e a dos pobres.

É o preconceito de classe que faz com que espetáculos tão grosseiros pareçam cômicos aos nossos olhos. Ou talvez me falte senso de humor."

Cláudia Croitor

"Os novos reis da baixaria", copyright Folha de S. Paulo, 25/11/01

"Foi-se o tempo em que Ratinho era o rei da baixaria na TV. O posto que antes pertencia ao apresentador do SBT (atualmente no comando do que mais parece um circo) hoje é compartilhado por dois de seus herdeiros: Márcia Goldschmidt e João Kléber.

Especialistas em levar à TV brigas de família, pessoas com anomalias e outras bizarrices, os apresentadores esquentaram a disputa pela audiência nos fins de tarde com programas que lembram, e muito, o tipo de atração que deu fama (não necessariamente boa) a Ratinho.

Márcia, da Bandeirantes, chegou primeiro. Seu ?Hora da Verdade? estreou em junho para ser um espaço de denúncias. Hoje, o que mais se vê são casos como ?Travesti quer o ex de volta? ou ?Mulher guarda o filho morto em casa?, que chegam a deixar, por instantes, a atração na vice-liderança do horário (às 17h), e dar médias de até 5 pontos no Ibope.

Inspirada nesse sucesso, a Rede TV! decidiu apostar na fórmula. Há três semanas, colocou no ar, às 17h30, o ?Canal Aberto?. O comando foi dado a João Kléber, que já ?treinava? para ser o sucessor de Ratinho com as brigas e os testes de fidelidade de seu ?Eu Vi na TV?. ?Canal? multiplicou a audiência da emissora no horário e vive esbarrando nos 5 pontos.

Não faltam coisas em comum entre os dois programas e o de Ratinho: brigas no ar, testes de DNA, pessoas doentes, o ?mundo cão? na tela da TV. Tudo sempre acompanhado pelo tom indignado dos apresentadores. ?Eu não te dou o direito de bater nela, você está me ouvindo? Aja como homem?, dizia Márcia no ar, há alguns dias, para o marido de uma participante do ?Hora da Verdade?.

Outra ?lição? aprendida por ambos é colocar pessoas em situações constrangedoras, ainda que com seu consentimento. Há alguns dias, Márcia conversava com um rapaz que dizia não conseguir fazer sexo: ?Você tem de me contar detalhes, para eu poder ajudar?. Na mesma semana, um moço foi ao programa de João Kléber se dizendo apaixonado por um colega e se vestiu de mulher para fazer uma declaração de amor. Não sem antes o apresentador querer detalhes do romance dos dois. ?Como foi a sedução para cima dele? Foi rala-e-rola dos dois, né? Os dois foram ativos e passivos??

?Procuramos sempre ter um assunto bem-humorado, um caso sensual e um drama ou debate para equilibrar o programa?, explica João Kléber.

A produção do ?Canal?, ao menos, não tenta disfarçar o caráter ?trash? da atração. ?Somos uma mistura de Márcia, com Datena [do ?Cidade Alerta?, Ratinho e [o extinto jornal? ?Notícias Populares?, diz o diretor, José Vicente Bernardo. Mas, às vezes, tanta mistura pode acabar em pancadaria, como na última segunda. Por causa de uma discussão, uma mulher levou uma ?microfonada? na cabeça e saiu sangrando do estúdio.

Em comum com Ratinho, Márcia e João Kléber têm também o discurso ?assistencialista? -ao menos na frente das câmeras. ?Nosso objetivo é ajudar as pessoas. Só aceitei esse programa porque a Rede TV! me garantiu que eu ia ter liberdade para ajudar as pessoas?, disse João Kléber no ar. Depois, admitiu à Folha: ?O objetivo primeiro do programa não é ajudar, é mostrar os casos?.

Já Márcia leva sua ?vocação? mais a sério. ?Odeio ser comparada com o Ratinho. Nasci para ajudar as pessoas, meu trabalho é uma missão?, afirma. A apresentadora defende-se das críticas dizendo que mostra o mundo real na TV. Por mundo real, leia-se um homem que comia 23 ovos crus com casca ou um garoto de dez anos que tem o corpo coberto de escamas, o ?menino-peixe?.

?Não mostro nada que cause repulsa. O menino despertou ternura em todos?, diz. Por causa da exibição da imagem do garoto, a Frente Parlamentar Contra a Violência e a Exploração de Crianças e Adolescentes, de São Paulo, entrou com uma representação no Ministério Público contra o ?Hora da Verdade?.

Como parte do assistencialismo, Márcia também financia exames de saúde aos participantes do programa. Nas últimas semanas, promoveu teste de HIV para um rapaz que acreditava ter Aids e de gravidez para uma garota que havia sido estuprada. O resultado foi divulgado ao vivo para os envolvidos -e, claro, depois dos comerciais. Para Márcia, isso não é exploração. ?É aproveitamento da situação deles para subir a audiência do programa. Se eu não aproveitar isso, serei a pior apresentadora do mundo.?"

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"Ratinho não se considera o ?pai?", copyright Folha de S. Paulo, 25/11/01

"Mais do que acostumado a ser criticado pelo conteúdo de seu programa nos últimos anos, Ratinho não se considera o ?pai da baixaria moderna? na TV brasileira. Leia, a seguir, trechos da entrevista concedida pelo apresentador à Folha. (CC)

Você acha que ?Hora da Verdade? e ?Canal Aberto? são uma continuidade do estilo de TV que você propagou?

Não acho que há uma imitação ou uma inspiração no tipo de programa que eu faço. Os programas populares existem há muito tempo e são todos parecidos. A Márcia tinha uma atração assim no SBT antes de mim; até ?roubei? algumas coisas do programa dela. Não considero que eles sejam meus herdeiros. Na TV, todo mundo faz isso. O Gugu, por exemplo, vive mostrando crianças doentes no ?Domingo Legal?. Mas dele ninguém fala mal.

O ?Programa do Ratinho? passou por algumas mudanças. Por quê?

Meu programa antigamente era mais sério, tinha um caráter mais assistencialista. Hoje eu continuo ajudando muita gente, mas fora da TV. Passei a fazer um circo, coloquei muito humor no programa, acho que meu público gosta disso. A Márcia e o João Kléber ainda tentam dar uma roupagem mais séria. Eu, por exemplo, parei de levar casos de doença à TV.

Por quê?

É muito pouca a ajuda real que você pode dar. E parei também porque ficavam me acusando de exploração. Explorar é levar gente cuja doença não tem cura, só para mostrar as anomalias. Se eu mostrava alguém doente, é porque poderia conseguir ajuda para o tratamento.

Mas você ainda leva gente para brigar no seu programa, passando por situações muitas vezes constrangedoras.

Quando pessoas chegam ao ponto de ir brigar na TV, elas já brigaram em casa, nos parentes, na vizinhança. Todos que as conhecem já viram as brigas. Não dá para passarem ainda mais vergonha."

M.M.

"?O Povo na TV? foi pioneiro na apelação para o mundo cão", copyright Folha de S. Paulo, 25/11/01

"Em 1979, a Rede Tupi agonizava. À tarde, reprises de desenhos e filmes não atraíam anunciantes nem telespectadores. Foi quando um dos diretores, Wilton Franco, propôs ocupar toda a faixa vespertina com um programa ao vivo dito ?de prestação de serviços?.

Ele reuniu um time de apresentadores, entre os quais o ex-galã de fotonovelas e amigo da polícia Wagner Montes, Cristina Rocha (hoje no ?Mulheres?, da Gazeta) e Sérgio Mallandro. Havia até um curandeiro, Roberto Lengruber, preso depois por charlatanismo. Nascia ?A Voz do Povo na TV?, versão revista e ampliada do que Jacinto Figueira Jr., em seus sapatos brancos, fizera nos anos 60.

Valia tudo. Pessoas com doenças graves, agredidas por policiais ou maltratadas em repartições públicas formavam filas na porta do estúdio.

Deu certo. Acostumado a uma televisão sem opinião e sem calor humano, o telespectador achou que aquela pantomima pseudo-assistencialista e demagógica era a redenção dos desvalidos.

Em pouco tempo, o faturamento da Tupi aumentou 20 vezes no horário. Silvio Santos, sempre atento ao popularesco, levou a trupe para sua recém-criada emissora; a Bandeirantes produziu uma cópia da atração. Agora, 22 anos depois, a fórmula continua atual. Enquanto houver pessoas desesperadas, desassistidas e com a auto-estima destroçada, o ?povo? estará sempre na televisão."

 

JUIZ BEETHOVEN
vs. GLOBO

"Juiz pede hipoteca da sede da Globo em SP", copyright O Estado de S. Paulo, 27/11/01

"O juiz da 6.? Vara Cível de Jundiaí, Antônio Carlos Soares de Moura e Sedeh, solicitou ontem ao juiz do 15.? Cartório do Registro de Imóveis de São Paulo, a hipoteca da sede da Rede Globo, na região da Marginal Pinheiros, na Capital. O juiz atendeu requerimento do advogado Laerte de França Silveira Ribeiro, em razão da ação reparatória por danos morais movida pelo juiz Luiz Beethoven Giffoni Ferreira.

O ex-juiz da Infância e Juventude de Jundiaí foi acusado em reportagem do Jornal Nacional, de 25 de novembro de 1999, de mandar crianças para o exterior em troca de dinheiro. No entanto, as acusações nunca foram provadas, nem mesmo por uma CPI do Senado. No despacho, Sedeh destaca parecer do jurista Rizzato Nunes, de que ?tal instituto visa resguardar o interessado de eventual e futura insolvência ou fraude, conservando-se o patrimônio do vencido?. A estimativa, da defesa de Beethoven, é que a Globo deverá pagar ao juiz a quantia de R$ 5 milhões.

Contestação -Os advogados da Globo contestam, em um recurso, a sentença, o valor, a obrigatoriedade da leitura da sentença durante o Jornal Nacional, os pagamentos de multas e juros. E vão ainda mais longe, questionando a competência de Sedeh, uma vez que ele trabalhou com Beethoven no passado. Os advogados Luís Fernando Pereira Filho e Andréa de Moraes Landé, do Escritório Camargo Aranha, garantem que o Jornal Nacional não agiu com sensacionalismo em sua defesa perante a Justiça."