Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Janio de Freitas

COBERTURA DE GUERRA

“A guerra das TVs”, copyright Folha de S. Paulo, 28/03/03

“Tão rápida foi a consagração da TV como instrumento de jornalismo, quanto está sendo o seu desgaste, na opinião dos observadores mais atentos da cobertura no Iraque. De fato, estão muito perceptíveis, de uma parte, as restrições à liberdade de informação, praticadas por repórteres e comentaristas; de outra, o uso da TV, por parte dos militares. Nos dois casos, o propósito comum de manipular a opinião pública.

O problema não é novo, mas está produzindo contaminações sobre o jornalismo impresso e, a propósito da guerra no Iraque, equívocos dos leitores/espectadores sobre as causas e práticas antijornalísticas.

A integração dos repórteres às colunas do ataque anglo-americano e as fardas por eles usadas estão vistos como atestados do seu servilismo, na difusão de notícias moldadas pelo interesse militar. Estar integrado à tropa não é, por si só, comprometimento algum, é necessidade, para acompanhar as operações. Assim é desde que há reportagens em frentes de guerra.

O uniforme para correspondentes de guerra também é antigo, com a finalidade de evitar fatos como a morte do repórter de TV inglês, confundido com iraquianos em fuga e baleado por ?fogo amigo? logo no segundo dia da guerra no Iraque. Rubem Braga, Joel Silveira e os demais correspondentes brasileiros vestiram os seus uniformes da FEB, na qual foi adotada, inclusive, a patente de capitão para os jornalistas, como nas tropas de muitos outros países.

Na guerra, como na paz, as deformações jornalísticas são, sempre, decorrentes de predisposição à subserviência, pelo jornalista, ou de posição impositiva definida pela direção (não esqueçamos que a posição, por mais condenável que seja, é executada por jornalistas).

Antes da guerra no Iraque, a operação para derrubar Hugo Chávez, na Venezuela, deveria servir como alerta sobre os problemas de contaminação da TV sobre os jornais. Até as imagens se tornaram operadas com má-fé, e assim foram distribuídas mundo afora. Nas manifestações anti-Chávez, as câmeras abriam-se para dar impressões extensivas. As manifestações pró-Chávez nunca foram tomadas com o que o leigo chamaria de panorâmicas. Grandes teleobjetivas eram usadas para enfocar apenas um pedaço da manifestação, de preferência onde fosse já rarefeita. As fotos para imprensa adotaram os mesmos recursos.

O que foi feito na Venezuela está em aplicação, agora com o refinamento da experiência, às manifestações antiguerra. Muito raras e rápidas foram as chamadas panorâmicas. Tornou-se norma o truque de enfoques individualizados e sucessivos -uma criança, um cartaz, uma ou outra pessoa-, em vez de mostrar a manifestação extensamente. A CNN, para citar um exemplo, dedicou razoável tempo à imensa manifestação em Nova York -mas só enfocando e entrevistando três hispano-americanos. Da manifestação mesmo, nada.

Como o material é quase todo o mesmo para todas as televisões, distribuído pelas agências ou vendido pela estação que o realizou, o espectador é vitimado sem diferenciação de fronteiras. Mas não só por infidelidade direta da TV.

Em um encontro da Associação de Jornalistas Europeus, ao qual compareci como palestrante, José Comas, jornalista de primeiro time do melhor jornal da atualidade, o espanhol ?El País?, abordou com irritação incontível um problema novo, particularmente inquietante para quem ostenta a sua admirável carreira de correspondente internacional.

Repórteres de jornal deslocados para eventos maiores estão indo aos fatos cada vez menos. É mais fácil ficar diante da televisão no hotel, passando de canal a canal. Quem veja a TV internacional encontrará no jornal do dia seguinte, como trabalho do correspondente, uma entrevista com um professor em Jerusalém, ou lá o que seja, que na véspera foi vista na BBC, ou na CNN ou F5.

Desse comodismo que se alastra resulta, primeiro, a uniformização mediocrizante do noticiário. O que faz um pouco de diferença é a maneira, pior ou melhor, como cada jornal expõe o material idêntico. O outro resultado, ainda mais grave, é que os jornais se tornam difusores das manipulações que o noticiário de TV tenha sofrido. No caso da Venezuela, tal contaminação foi escandalosa.

Por tudo isso, é indispensável ressaltar o mérito da RTPi, a tv portuguesa de transmissão internacional, que está dando a todas as concorrentes, com sua cobertura da guerra no Iraque, lições admiráveis de reportagem e de ética. Isso, em um país cujo governo apóia Bush, Blair e a guerra.”

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“Caça às mentiras”, copyright Folha de S. Paulo, 30/03/03

“A desproporção entre a riqueza militar dos americanos e ingleses e a precariedade dos iraquianos é descomunal. Mas se, apesar disso, americanos e ingleses estão exibindo ao mundo um vexame bélico, ainda há uma desmoralização maior que começa a acometer seus chefes políticos e comandantes militares, entre os próprios propagandistas.

A autocensura de jornais e TVs dos Estados Unidos e Reino Unido está abalada por fendas que se tornaram mais expostas desde a entrevista de Bush e Blair, na quinta-feira. E se evidenciam sob a forma de crescente relutância em compactuar com as desculpas para a enrascada militar e engolir certas mentiras óbvias.

Irritado com as perguntas que o apertaram na coletiva ao lado de Blair, Bush dirigiu um insulto aos jornalistas, dizendo ?não entender por que insistem em perguntar besteiras, como a duração da guerra?. Para quem endossou a afirmação do seu principal comandante, no primeiro dia da guerra, de que ?em quatro ou cinco dias as forças da coalizão estarão em Bagdá?, o assunto não é mesmo agradável.

Ver as entrevistas dos chefes políticos e comandantes passou a ser divertido, uma pequena compensação para os horrores das cenas de cidades e pessoas bombardeadas. Mais do que entrevistas, são uma competição de caça às mentiras.”

“EUA pouparam a TV por tempo demais”, copyright Folha de S. Paulo / The New York Times, 28/03/03

“O que mais surpreende nos pronunciamentos televisivos de Saddam Hussein na última semana é o próprio fato de o ditador iraquiano estar falando na TV.

Na Guerra do Golfo de 91, a torre da TV iraquiana foi atacada logo no início dos bombardeios.

Mas, neste conflito, os primeiros golpes contra a TV iraquiana não foram desferidos até a madrugada de ontem, quase uma semana depois do início da guerra, e, mesmo assim, só conseguiram causar uma interrupção temporária na programação do governo.

A decisão do governo Bush de não atacar a TV iraquiana no início da guerra diz muita coisa. Parece refletir o raciocínio de que o regime de Saddam era tão frágil que cairia rapidamente. Os estrategistas de Bush parecem ter deixado a TV de fora da lista inicial de alvos porque queriam usá-la para falar ao Iraque imediatamente após a guerra e limitar os danos à infra-estrutura civil.

Mas relatos vindos do Iraque sugerem que a moderação americana foi vista por iraquianos como um indício da resistência de Saddam, contradizendo a mensagem anglo-americana de que seus dias estavam contados.

Há, de fato, duas batalhas paralelas ocorrendo. Uma é o assalto intenso em Bagdá para o qual forças americanas estão se preparando. A outra, igualmente crucial, é a luta para assegurar o apoio de cidadãos iraquianos, chamada por militares de OI (?operações de informações?). O problema é que, por enquanto, as OI de Saddam estão ganhando das OI anglo-americanas.

Washington parece ter presumido que as forças anglo-americanas seriam recebidas por iraquianos em festa. Em vez disso, grande parte do Iraque permanece nas mãos da Organização Especial de Segurança, de milicianos do Partido Baath e de unidades paramilitares como os ?fedayin?. Tem havido alguns distúrbios em Basra, mas ainda não houve levantes maciços como os ocorridos após a Guerra do Golfo.

Há muitas razões para isso. Em primeiro lugar, o governo dos EUA parece ter julgado mal a estratégia iraquiana. Funcionários do Pentágono estavam temerosos de que o Iraque destruísse suas represas, explodisse suas pontes e privasse sua população de comida. Saddam, eles advertiam, poderia destruir a infra-estrutura para distrair as forças anglo-americanas com uma crise humanitária em seu caminho para o norte.

Mas o líder iraquiano não seguiu esse roteiro. Ele tenta manter o controle no sul do país se apresentando como o salvador do povo iraquiano -uma mensagem que transmitiu em seu pronunciamento na TV nesta semana.

Em segundo lugar, a estratégia americana inicialmente contemplava passar ao largo de cidades americanas no caminho para Bagdá. Mas os EUA foram forçados a se ajustar adiando temporariamente um ataque terrestre a Bagdá enquanto lidam com unidades paramilitares no sul.

Um terceiro fator, contudo, foi a decisão do governo Bush de deixar a TV iraquiana no ar durante os primeiros dias da guerra. Isso permitiu que o regime transmitisse a sua mensagem: a de que Saddam Hussein está no controle e defendendo o povo do Iraque contra um invasor estrangeiro.

Um exemplo eloquente: a TV iraquiana retratou a derrubada de um helicóptero americano no domingo como um ato valente de fazendeiros iraquianos. De fato, o Iraque espertamente usou armas pequenas para se defender do ?ataque profundo? pelos helicópteros e vai forçar os EUA a repensarem sua abordagem. Mas não foi exatamente um esforço de camponeses para se defender.

O meio é a mensagem. E, durante os primeiros dias da guerra, esse meio tem sido usado por Saddam para enviar uma mensagem a muitos iraquianos de que seu líder absoluto ainda está no poder.”

“Notas à margem dos primeiros dias de guerra”, copyright Folha de S. Paulo, 28/03/03

“1) Na véspera da guerra, Michael Moore, o diretor de ?Tiros em Columbine? (Oscar de melhor documentário), escreveu numa carta a George Bush: ?Dos 535 membros do Congresso apenas um tem um filho ou uma filha recruta nas Forças Armadas. Se você quer defender a América, mande imediatamente, por favor, suas filhas gêmeas para o Kuait e deixe que elas vistam os macacões de proteção contra as armas químicas. E oxalá cada membro do Congresso com um filho em idade idônea também ofereça suas crianças para o esforço bélico de hoje. O que você está dizendo? Você acha que não vai dar? Pois é, olhe que surpresa, nós também achamos que não vai dar!?.

Michael Moore é um ativista de esquerda, que se opõe à guerra. Mas ele não pertence aos salões acadêmicos e progressistas da Califórnia e da Costa Leste dos EUA. Fala com a voz dos que têm filhos no Exército: os trabalhadores manuais, os pequenos comerciantes e fazendeiros da América profunda.

No segundo dia das hostilidades, escuto Michael Savage, um radialista de extrema direita, apaixonadamente favorável à guerra. Savage, quase lírico, comenta que os rapazes que estão a caminho de Bagdá aprenderam a atirar com seu pai ou seu avô, caçando nos bosques e nas planícies do país. Acrescenta: ?Eles estão acostumados a calçar botas, enquanto, nas areias do Iraque, não vejo muitos mocassins elegantes…?.

A discórdia entre os pacifistas e os que são favoráveis à guerra agita as ruas dos EUA. Mas existem outras divisões na sociedade americana, talvez mais cruciais.

2) A festa da Bolsa, nos anos 90, foi um desastre para a nação: a farra do capital financeiro zombava das pequenas classes médias, o dinheiro fácil para os poucos que especulavam transformava os humildes em otários. Durante um tempo, instaurou-se no país a Lei de Gerson. Sabemos como ela abala os alicerces de uma sociedade.

O ataque de 11 de setembro de 2001 reconstituiu a nação periclitante. Um mês depois, havia desempregados do Michigan ou fazendeiros expropriados do Nebraska que vinham de ônibus para Nova York: comovidos e orgulhosos, visitavam a mesma Wall Street que, um ano antes, tinha acabado com suas pensões e, às vezes, com seu trabalho.

A guerra prolonga aquele momento: todos são de novo americanos por combater um inimigo comum ou, simplesmente, por combater. Os anos de Clinton aparecem, na lembrança, como um tempo em que a América se perdeu numa futilidade yuppie.

3) Um conhecido europeu comenta as sondagens de opinião (nos EUA, 70% a favor da guerra): ?O que há com os americanos? Eles gostam de uma luta??. Respondo: os EUA são a última nação ocidental que se define pela guerra. Concebidos numa revolução, consolidados pela guerra civil e pela conquista do território arrancado aos índios, vitoriosos nos dois conflitos mundiais, eles vivem uma épica nacional essencialmente militar: ser americano implica comprar brigas. Com esse espírito, Hollywood diverte e seduz o mundo, mas, na realidade, é um espírito que não sai barato para ninguém.

Há mais: o país continua sendo uma nação de imigrantes. A cada dia, uma extravagante variedade de povos e etnias chega para inventar uma nova vida. O sonho de bem-estar não basta para cimentar a nação. Talvez o país precise periodicamente de uma guerra para consolidar essa massa versicolor. É a hora do combate: vejam se vocês se tornaram americanos.

4) CNN, NBC e Fox, com 24 horas de noticiário, batem recordes de audiência noite adentro. Por que é tão dif&iacuteiacute;cil desligar a TV?

Nas noites de Carnaval, voltando do sambódromo, ligamos a televisão e, embora exaustos, queremos mais Sapucaí. É que o desfile é um ícone de brasilidade. Contemplá-lo é um prazer narcisista: ?Lá vou eu?.

Pois bem. As imagens desta guerra, para os americanos, são um conforto narcisista, uma música que diz: ?Com nossa potência, com nossa falta de jeito que transforma as boas intenções em ?danos colaterais?, com nossos mortos e feridos, lá vamos nós?.

5) Sábado, em Chicago, duas manifestações se enfrentam: contra e a favor da guerra. Um repórter, plantado entre as duas, entusiasma-se: ?Dois grupos opostos manifestando idéias opostas, essa é a América?. A própria divisão da nação é chamada a enaltecer sua existência: ?De novo, mesmo divididos, lá vamos nós?.

6) Madrugada de domingo. Desligo a televisão e fico em silêncio na escuridão. Cortei quando um apresentador perguntava a um repórter que acompanhava as tropas: ?What is happening now??, o que está acontecendo agora?

Pois é, logo agora, mil Josés e mil Marias estão esperando que chegue o dia para saber o resultado de uma biópsia ou de um exame de sangue. Agora, estão nascendo crianças. Alguém diz adeus a um amado que morre, e alguém, acordado pela vontade de urinar, está olhando para sua própria cara amassada, no espelho, perguntando-se se tolerará envelhecer. Agora, há casais abraçados na cama, e outros que estão transando em carros, elevadores e cantos escuros. Essas são as informações. A guerra deveria vir no fim do noticiário.”