Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1280

Joaquim Ferreira dos Santos

O DEUS MERCADO

“Para acalmar o mercado”, copyright Jornal do Brasil, 11/12/02

“Então é Natal e, mesmo com o Comendador e o Bush soltos, vamos dar as mãos, homens de boa vontade. Já que estamos todos combinados nesse pacto de felicidade compulsória, não está mais aqui quem ficou engarrafado duas horas no anel da Lagoa e teve vontade de pedir um pouquinho da dinamite do Carandiru para fazer o mesmo com a árvore da Rodrigo de Freitas. Acontece, coisas da alegria carioca, não é mesmo? Não se assustem, queridos leitores, mas chegou a hora de desejar Paz na Terra a todos. Também fui pego de surpresa quando o motorista de táxi me disse isso, quando essa repentina neve me caiu nos cabelos e adoráveis pinheirais encheram a sala. Feliz Natal aos seus. Suspeitei até que precipitaram a festa por causa da demora do Lula em divulgar o nome do presidente do Banco Central. Que tinham colocado o Papai Noel em cena antes da hora, coitado, só para acalmar o mercado. Mas, sem essa de baixo-astral. Os repórteres políticos que investiguem. Passa a rabanada.

Definhei duas horas ao calor da Borges de Medeiros no engarrafamento de domingo e não pensem que vou lamentar a tragédia. Seria fora do tom de dezembro. A-mei. A árvore ficou linda e durante os 31 dias deste mês aqueles carros parados no entorno da Lagoa vão significar, tipo assim, um abraço de homens e máquinas nessa escultura de luzes que virou um símbolo carioca de bem querer ao próximo. Hoje a festa é sua, hoje a festa é nossa. Seria faltar ao espírito da coisa não tonitroar a mesma felicidade que de repente – sei lá de onde vinda, e nem quero saber, já que o tempo não é de racionalismo pagão mas de ternura crédula – tomou a todos em volta. Vibremos. Jesus nasceu. Sem essa de não comungar na missa do galo. Sem essa de protestar comprando presentes só em camelôs que vendem mercadoria pirata. Nada disso. Estou dentro, tomem lá minhas castanhas legítimas, portuguesas e com o autógrafo do Roberto Leal a atestar.

Vi na televisão a ordem carinhosa dos queridos patrocinadores. Hoje é um novo dia, de um novo tempo. Guardei a carranca. Abri o coração. É verdade que levei um susto, atormentado que estava com o tiroteio de sábado passado na praça do Cosme Velho, quando vi o sujeito de vermelho carregando o saco nas costas. Achei que era um ladrão das antigas. Nada. A ficha demorou uns 30 segundos para cair, mas pronto, realizei. O bom velhinho. Santa Clauss is back. Pareceu meio sem jeito, por se fazer assim tão abrupto, mas o Natal chegou este fim de semana. Deu na Globo, cheio de descontos e promoções, no intervalo do Jornal Nacional e eu já estou envidando meus esforços para não ser do contra. Contem comigo, amigos ocultos, entregadores de jornais e meu querido carteiro, gente que nunca vi durante o ano, sobre as quais tenho as maiores dúvidas de qualificação existencial e profissional. Mas tá limpo. Não vou dar uma de Lula e lavar essa roupa suja fora de nossa casa. Somos todos, pelo menos em dezembro, decentíssimos.

Que se abram à minha frente, nos balcões dos bares, aqueles preciosos tótens da temporada, singelas esculturas com a inscrição ?caixinha, obrigado?. A todos, por pior que seja o serviço, darei o meu tostão. Anjos cantam lá do céu e eu, por mais surpreso que estivesse com a saída de cena do hip-hop do tráfico, ouvi em genuflexão. O Zuenir Ventura é testemunha ocular de que um jornal de Friburgo mancheteou num dezembro das antigas um ?De repente é Natal? em corpo 50, como se a data não estivesse programada há 2 mil anos. Mas, sabe que dessa vez a manchete fazia sentido! Cadê o Blecaute cantando ?eu pensei que todo mundo fosse filho de Papai Noel? – e era isso que todo ano acendia a árvore que todo brasileiro com mais de 40 carrega dentro de si. A Light privatizada aumentou, e ninguém está acendendo mais nada, nem dentro nem fora. Não senti também nenhuma fome especial por um panetone, todos caríssimos. Mas já já essa alma herege se esfomeará e vai cair matando, pague-se o preço que for exigido, para cima de um, de chocolate, de preferência o mastigado pela Camila Pitanga em algum comercial que logo irá ao ar. É Natal, dizem. Estou acreditando em tudo. Também não ouvi a harpa do Louis Bordon. Ela vem com os dias.

Ninguém esperava, ninguém estava no clima e só pode ter sido por isso que maliciaram quando a Simone pegou a Ana Maria Braga e foram de mãos dadas a um casamento em São Paulo. ?Não posso andar de mãos dadas com uma amiga que logo acham que é um caso novo?, reclamou Simone. Se fosse em fevereiro e março, tudo bem, podia-se apostar na gandaia. Mas tínhamos esquecido todos. É tempo de dar as mãos. Já nasceu o Deus menino, para o nosso bem. Todo mundo incrédulo sem saber o que fazer diante da inflação de 10% e, crau, vem o Papai Noel por trás mandando a gente abraçar o sujeito que remarca os preços no supermercado. Louvemos a todos, porém, nossos irmãos na fé. É a data máxima da cristandade.

Não sou eu, só porque acabei de ler mais uma reportagem sobre a Suzane que matou os pais, não sou eu que vou ficar aqui dando uma de Shakespeare da Vila da Penha, dizendo sozinho que o ser humano não presta – enquanto na televisão as pessoas, de súbito, de bate-pronto, sem que um amigo sequer me alertasse por e-mail, começam a se abraçar e olhar, enternecidas, luzes que no céu parecem sinalizar uma esperança qualquer. Eu, justo eu, que da televisão só tinha a notícia absurda de que o Manhattan Conection pode acabar. Eu, injusto eu, que até ontem quando olhava o céu só tinha olhos para o buraco cada vez maior na camada de ozônio – eu também vejo a estrela que anuncia um futuro melhor. E, já que é Natal, acredito.”

 

LEI DA MORDAÇA

“A lei da mordaça”, copyright O Globo, 15/12/02

“Antes que me acusem de propaganda enganosa, apresso-me a esclarecer que os que esperarem aqui uma análise profunda da chamada ?lei da mordaça?, ou mesmo uma explicação pormenorizada do que é a tal lei, se decepcionarão. Estou tão confuso sobre o assunto quanto a maior parte de vocês, se é que a maior parte de vocês, nesta época do ano em que somos forçados pela tradição a devolver à circulação o dinheiro que achamos que é nosso e ficamos com um riso besta estampado nas nossas faces ovinas, tem tempo para se preocupar com a lei da mordaça. Até porque não há, segundo creio, somente uma lei da mordaça, mas várias leis da mordaça, em diversos estágios de elaboração, meandrando pelos gabinetes e corredores do Congresso.

Sei apenas que a lei da mordaça a que se referem notícias e comentários mais recentes proíbe a autoridades divulgar fatos sobre os quais tenham conhecimento, no exercício de suas funções. Dito assim, até parece coisa de sueco – não vamos incriminar ninguém antes de a culpa estar formada, não vamos atingir reputações injustamente, não vamos prejudicar investigações com a divulgação de dados que possam beneficiar os culpados e assim por diante. Uma beleza, como, aliás, é grande parte de nossa ordem jurídica. Ousaria mesmo dizer que, em matéria de leis suecas, estamos muito à frente da Suécia.

O chato, lamentavelmente, é que só temos as leis (e, até janeiro, teremos o primeiro-ministro, a quem chamamos de presidente e, em breve, será o melhor ex-presidente do mundo, com Jimmy Carter em distante segundo lugar) da Suécia, não temos o resto. Pois o que vem à mente de qualquer brasileiro, ao saber de uma lei como essa, é que sua finalidade não é proteger inocente algum, é proteger os culpados mesmo, é arrolhar ministério público, juízes, promotores, delegados e quem mais lá estiver incluído no rol dos que poderiam falar. E, por tabela, a imprensa – ou mídia, no feliz dizer hodierno – também vai ficar arrolhada, por falta de acesso a dados importantes.

A imprensa não é constituída por bonzinhos e santos. Tem todos os defeitos de qualquer coletividade humana, definida por qualquer critério, como têm defeitos as coletividades de padres, barbeiros, torcedores de qualquer time, motoristas de táxi, médicos, donas-de-casa, o que lá for. E, de fato, por exemplo, não há editor que não tenha protagonizado ou testemunhado como é necessário conter o ímpeto denunciador de jornalistas que querem condenar ou absolver antes da Justiça e jogam irresponsavelmente com a honra ou reputação alheias. Mas não pode ser essa uma razão para não querermos uma imprensa livre, pois as vantagens dela para a liberdade geral de longe superam as desvantagens.

A imprensa, no Brasil e também fora, é rotineiramente responsabilizada pelos males que denuncia. Não passa dia sem que alguém acurralado, de senadores a cartolas de futebol, culpe a imprensa pelo mal que ela denuncia. Há gente que põe a culpa na imprensa até pela situação socioeconômica do povo brasileiro. É como se se pensasse que, não se vendo a miséria, ela não existiria. O chato é que não se trata de um problema de física quântica, trata-se de um problema que pode ser atacado no universo newtoniano mesmo: ela existe e não é a imprensa que a cria, assim como não cria ladrões do Erário, bandidos sanguinários e toda espécie de monstruosidade que vira notícia.

Mas, ao que parece, vem recrudescendo o problema da censura, o que de novo deve ser culpa da própria imprensa que sofrerá (ou já sofre) censura. A lei da mordaça a que fiz referência acima logo vai a plenário e tudo indica que o Congresso atual a quer deixar como lembrancinha final a nós todos. Que beleza para os impunes, hem, nada de nomes, nada de ações, nada de nada e o tudo-fica-por-isso-mesmo que nos caracteriza a História permanecerá preservado e fortalecido, levando-se ainda em conta (nunca mais ouvi falar nela, não sei se já está em vigor, quais são seus dispositivos que mais me afetam, nada, nada, minha ignorância é vasta) que também deveremos ter uma lei da imprensa severa. Para quê lei de imprensa, não sei. A definição jurídica dos crimes contra a honra, que são os principais atribuídos à imprensa, já existe e pode ser aplicada a qualquer um, inclusive um jornal ou TV, sem que os estabelecimentos culpados tenham que ser fechados, assim como, no Brasil, não se mata (a não ser privadamente, mas isso aí já é outro capítulo, o da pena de morte privada, instituição nacional já arraigada) quem injuria, difama ou calunia.

Envolvidos por tanta coisa, não prestamos atenção. A censura vai mostrando sua carantonha repulsiva, nós não vamos notando e, um belo dia, estaremos cercados por ela. Posso enganar-me, mas o Rio de Janeiro está na vanguarda da Nova Era Censória. Falou-se em casos envolvendo o Artur Xexéo, o Mauro Rasi e o Arnaldo Jabor. Dos três, só conheço pessoalmente o Jabor, mas não nos vemos há muito tempo, de forma que não sei direito o que houve, mas o que se comenta à boca pequena é que a dra. Rosinha tem ficado chateada com críticas ou brincadeiras da imprensa e ameaça processos. Ameaçar processos é um direito de qualquer um, mas, no caso, sente-se uma pitadinha de censura. Pitada mais forte no caso, também comentado à boca pequena e, pensando bem, não tão pequena, de Aldir Blanc, um dos nossos maiores compositores populares e cronistas, que teria sido súbita e inesperadamente demitido devido a pressões lá do alto. Aldir diz que sim e acredito nele. Mas, mesmo que ele esteja enganado, quem vê as barbas do vizinho pegarem fogo… Mandam a prudência e meu terror a processos abandonar esta coluna, para assumir uma de jardinagem, onde evitarei insultar o cravo ou desacatar a rosa, para não falar que não me envolverei em problemas controvertidos, como o das bromélias.”