Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Joaquim Fidalgo

PÚBLICO

"Aqueles que chamam a atenção para a necessidade de o jornalismo se exercer mais como uma ?profissão? do que como um ?ofício? (ou uma ?arte?) apontam, afinal, para um caminho de exigência, de atenção, de estudo, que ajuda a lidar melhor com algumas das fragilidades actuais do trabalho informativo. Entre elas a manipulação

Philip Meyer, um conhecido jornalista e professor universitário dos Estados Unidos, não é certamente leitor do PÚBLICO, mas quis o acaso que, nesta última semana, tenha vindo ?dar uma ajuda? ao provedor no tema analisado no passado domingo, e com continuação prevista para hoje: o da manipulação no jornalismo. Ou, mais genericamente, o da multifacetada trama de relações e influências entre quem trabalha na informação, por um lado, e quem é fonte ou motivo dessa informação, por outro.

Meyer batalha há muitos anos por aquilo a que chama ?jornalismo de precisão?, pondo a tónica na necessidade de os jornalistas se prepararem bem para a complexidade do mundo de hoje e fazerem aplicadamente o seu ?trabalho de casa? quando abordam a matéria noticiosa. Situa-os, assim, mais do lado de quem se dedica às ciências sociais do que do lado dos seguidores das artes de bem escrever (a ?jornalismo de precisão? contrapõe ?jornalismo literário?, de fortes tradições em certos países), com as inerentes exigências profissionais e, digamos, científicas. ?Que o jornalismo deixe de ser um ofício para se converter numa profissão?, sugeria, há dias (cfr. ?El País? de 2/7/01).

Isto liga-se com a questão das pressões, directas ou indirectas, a que a comunicação social está, e sempre estará, sujeita. Uma postura profissional de atenção, de conhecimento, de investigação, permite que os jornalistas superem duas das suas características mais tradicionais, de acordo com Philip Meyer: a ?passividade? e a ?inocência?. Mesmo sendo posturas que se baseiem numa boa intenção (ser ?passivo? e ?inocente? corresponderia a distanciar-se dos acontecimentos, a não se imiscuir, a reportar com objectividade, a relatar com isenção…), na prática acabam frequentemente por corresponder a uma demissão de funções, a um ?lavar de mãos?, deixando que as forças que se movem para condicionar a agenda dos ?media? e os próprios conteúdos informativos se movimentem à vontade, levando a água ao seu moinho. A passividade pode, assim, transformar o jornalista em ?pé de microfone?, e a inocência mais não será do que uma enorme ingenuidade que faz dele um ?idiota útil?. Usado sem saber que o está a ser, ou com que fim.

Tomemos uma outra citação, agora da autoria da editora Ellen Bevier, do jornal ?San Diego Union-Tribune? (EUA), e retomada pela respectiva provedora, Gina Lubrano (sim, que este assunto da manipulação não é só nosso…): ?Cobrimos muitos eventos nos quais os participantes tentam manipular os ?media? informativos. Mesmo a mais rotineira conferência de imprensa se insere nessa categoria. Uma das nossas tarefas é tornar claro o contexto de tais eventos, para que os leitores possam julgar por eles próprios o valor da informação que está a ser tornada pública?.

Ora aqui está como se pode dar a informação de modo rigoroso e aprofundado, e simultaneamente com ?precisão?: transmitindo o que outrem fornece para ser transmitido, mas deixando claro ao leitor (mediante trabalho próprio de pesquisa, de reflexão, de estudo) o enquadramento mais global em que o evento deve ser lido, os seus antecedentes, a sua relação com outros, enfim, as chaves para uma adequada interpretação dos factos.

Não é isto que, em boa parte dos casos, sucede entre nós. Uma personalidade pública pode marcar calmamente uma conferência de imprensa para as 20h10, mesmo sem que dela se espere revelação palpitante, e logo tem a comunicação social em peso a fazer-lhe a cobertura, com as televisões em directo. E porquê? Só porque é Fulano, ou… porque toda a gente lá vai e ninguém arrisca deixar o ?exclusivo? para o concorrente do lado. Mesmo que seja sobre a mais banal das banalidades…

Isto é, na prática, manipulação. Isto é, na prática, impor à comunicação social uma determinada agenda, contando com a sua cumplicidade. Dá a ideia que o ?outro lado? estudou muito melhor a lição e sabe bem como funciona o sistema mediático, quais as suas fragilidades, quais as suas rotinas, quais os seus vícios, quais as suas preferências, tirando naturalmente o maior partido de tudo isso – e oferecendo aos ?media?, de mão beijada, o que os ?media? aparentemente querem.

Como aqui se dizia há uma semana, os protagonistas públicos (políticos e outros) estão no seu papel, ao fazer estas tentativas de condicionamento da informação publicada. Mas os jornalistas têm a obrigação de levar isso em conta e de fazer o seu trabalho específico.

Há vários caminhos para tal.

Um é o que referia a editora de San Diego, ao focar a necessidade de o trabalho informativo expor o seu contexto, ou até os seus bastidores, para se perceber até que ponto os dados são relevantes ou fiáveis. Disso tivemos por cá um exemplo positivo, na semana finda, quando diversos jornalistas levaram até ao fim o esclarecimento da trapalhada em que se envolveu o primeiro-ministro, António Guterres, sobre as demissões de Pina Moura e Manuela Arcanjo. Guterres, afinal, mentiu – e pediu até aos ex-ministros que o deixassem mentir por eles. Tudo foi negado em sucessivos momentos, mas a verdade acabou por vir ao de cima. E foi útil para se perceber como funciona este jogo…

Outro caminho passa não só por um maior investimento dos jornais em agenda própria, como numa maior preparação dos jornalistas para lidarem com o modo como hoje são produzidos e distribuídos os fluxos noticiosos de que se alimentam.

Ter agenda própria é mais difícil do que ir só atrás dos eventos ?marcados?, implica maior investimento em recursos humanos e materiais, toma mais tempo, pede mais esforço – e requer uma maior imersão dos jornalistas no tecido social, para que conheçam melhor o seu pulsar profundo e não andem sempre pelas mesmas notícias, sobre as mesmas instituições, com as mesmas pessoas.

Lidar com as fontes de informação de modo autónomo e não promíscuo obriga a conhecer bem as forças em presença, estudar os interesses envolvidos, recusar negociações que firam princípios éticos, não confundir relações pessoais com relações profissionais, nunca perder afinal de vista que – lá diz o estatuto Editorial do PÚBLICO – o jornal ?é responsável apenas perante os leitores?. Apenas.

Ser manipulado não é uma fatalidade. Também não se caia no exagero de dizer que só é manipulado quem quer. É problema com que toda a comunicação social tem que estar habituada a viver, e que às vezes a ultrapassa. Mas perceber melhor quais os meandros da manipulação, e expô-los sempre que seja o caso, ajudará a minorá-la: vai dando aos leitores os elementos necessários para que ajuízem eles próprios.

Escolha – Investir mais em agenda própria é depender menos das impostas por outros

Atenção – A complexidade das relações entre jornalistas e fontes não está na idade da inocência"

    
    
              

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