Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Jogo de espelhos

Carlos Vogt

"Psicanálise é a mais recente doença judia. Pessoas mais velhas ainda sofrem de diabete."

Assim Karl Kraus, o mais sarcástico crítico do espírito folhetinesco característico da Viena de seu tempo, investe, fazendo blague, contra a moda que tomava conta da cidade desde o início do século 20.

A interpretação dos sonhos, de Sigmund Freud, publicado em novembro de 1899, mas com data de 1900, por decisão do editor, para marcar com o novo século a novidade científica que ali se plantava, é o livro fundador da psicanálise e do método analítico que lhe é próprio.

Kraus, ele próprio judeu, fazia eco e ecoava, satiricamente, as críticas que nasceram junto com a psicanálise e com ela cresceriam nesses cem anos de existência.

Ente estas críticas, a de que a psicanálise era uma "ciência judaica" e explicável pela tese do ZeitGeist ou do genius loci, cujo sucesso, como invectivou o psiquiatra alemão Adolf Albrecht Friedländer em 1909, num congresso internacional de medicina, em Budapeste, se devia à mentalidade pansexualista vienense.

Difundida e reforçada na França, essa tese chega inclusive ao Brasil, onde, entre os primeiros adeptos da teoria, encontravam-se também os primeiros antifreudianos, algumas vezes numa só pessoa, como é o caso de Francisco Franco da Rocha, fundador do Hospital do Juqueri, autor do livro O pansexualismo na doutrina de Freud, de 1920, e co-fundador com Durval Marcondes, em 1927, da primeira sociedade psicanalítica do país, a Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPCSP) .

Outra crítica, menos preconceituosa, mas plena de pressupostos teóricos e metodológicos de outra natureza, é a de que a psicanálise não é, de fato, uma ciência, quando muito, uma teoria da interpretação, uma hermenêutica que, por mais objetiva que pretenda ser, não pode evitar a subjetividade do analista e a circunstancialidade da relação intersubjetiva que entre ele e o analisando se estabelece.

Os críticos positivistas de Freud julgariam que a passagem de seus estudos neurológicos do aparelho psíquico para o método analítico-interpretativo consolidado em A interpretação dos sonhos significava antes um recuo científico do que um salto no conhecimento da psique humana, tão entusiasticamente anunciado pelo seu autor.

Esse tipo de crítica refinou-se ao longo dos anos com os grandes avanços da bioquímica, da bioinformática, das ciências biológicas, inclusive a genética e, mais recentemente, a própria genômica, e as possibilidades cada vez mais concretas de identificar uma anatomia neurológica para o aparelho psíquico.

Nesse sentido, são ilustrativos, por exemplo, os estudos publicados pela Science, fazendo uma revisão do tema das raízes orgânicas da violência e cujo resumo pode ser lido em dois artigos de Drauzio Varella publicados no Caderno Fim de Semana da Gazeta Mercantil e na edição de 10/10/2000.

Agora, já não se trata de conservadorismo positivista, mas de métodos altamente sofisticados de análise científica que, pelos resultados obtidos, levam, é claro, a pensar criticamente o modelo interpretativo de explicação freudiana.

Mas o fato é que, mesmo com todos esses avanços, a psicanálise, que é uma teoria do sentido, isto é, um aparelho conceitual e metodológico dedicado a estudar o sentido do sentido, avançou, cresceu, desenvolveu-se, universalizou-se e, como não poderia deixar de acontecer, em virtude de seu enorme sucesso, produziu inúmeros conflitos culturais ao longo desses cem anos de existência.

O maior deles, pelo menos o mais recente e, portanto, o de maior ressonância contemporânea, é o que tem acompanhado a própria exposição Freud, conflito e cultura, que tematiza o assunto, em torno do qual se publicou um livro com o mesmo nome, já traduzido no Brasil, e cuja inauguração, no MASP, em São Paulo, prevista para o fim de setembro e adiada para o começo de outubro, cumpre um périplo iniciado em Washington, depois Nova York e Los Angeles.

As várias tendências de opositores a Freud juntaram-se, nesse caso, num coro de protestos que, desde 1997, tem acompanhado a mostra, sob a alegação comum de que o evento era uma celebração idólatra que velava as controvérsias, as dissidências, as dissensões, as fortes resistências, enfim, que, sobretudo nos EUA, caracterizam hoje a situação de conflito da psicanálise freudiana.

Vamos ver o que ocorre no Brasil, levando-se em conta que haverá, complementarmente à mostra internacional, uma outra cujo tema é Brasil: psicanálise e modernismo, cujo curador é o psicanalista Leopold Nosek e, considerando que, do ponto de vista histórico, o país foi o primeiro na América Latina a criar uma sociedade psico-analítica, a Sociedade Brasileira de Psicanálise (SBP), em 1927, e o pioneiro em trazer, em 1936, para o continente a primeira psicanalista didata – Adelheid Koch –, cujo papel seria fundamental para o desenvolvimento da prática psicanalítica no país.

Como por aqui não faltaram brigas e conflitos em torno da psicanálise no transcurso deste século que é também a sua idade, será interessante observar com atenção o comportamento, em número e qualidade, do público da exposição internacional e de sua complementar brasileira.

Em 1897, Freud comunicou a Wilhem Fliess, em uma das tantas cartas que com ele trocou, que não acreditava mais na sua Neurótica, consolidando, assim, o abandono definitivo da teoria da sedução, que preconizava a existência de traumas reais para a explicação das neuroses. Daí para a elaboração de sua doutrina da fantasia e a concepção de uma nova teoria do sonho acompanhada da famosa primeira tópica do aparelho psíquico – consciente, pré-consciente e inconsciente – foi um passo. Mas foi também um passo gigantesco, do ponto de vista teórico e epistemológico, marcando, com essas mudanças, o nascimento de uma nova ciência e, mais do que isso, de um modo novo de o homem ver-se e perceber a si mesmo.

Já se disse que o orgulho da humanidade levou, no decorrer de sua história moderna, três grandes trancos que simbolizam, no sentido bíblico, três grandes quedas, motivadas, contudo, não pela falta moral mas pelo pecado da curiosidade do conhecimento. A primeira queda tira o homem e a Terra do centro do universo, com a revolução coperniciana; a segunda arranca-o da linhagem divina, com a teoria da evolução das espécies, de Darwin; a terceira desaloja-o de seu próprio eu, para revelá-lo estranho e conflituoso consigo mesmo, com a criação da psicanálise.

Não é pouco, nem para a comunidade que a gestou nem para a sociedade da época de sua constituição, nem depois para as comunidades que a recriaram, modificaram, adaptaram, negaram e para as sociedades que, espalhadas no tempo e no espaço, foram reproduzindo a sua razão de ser e o ethos de suas materialidades institucionais.

É uma longa viagem em busca do Graal da realidade, numa utopia em que o ideal não é o sonho mas a realidade que ele vela e desvela, num jogo infinito de significados, que é preciso perseguir qual o Fausto romântico de Goethe, ou o Fausto popular e erudito de Thomas Mann, salvando-se na redenção dos céus ou sucumbindo às tragédias cíclicas dos grandes infortúnios e catástrofes sociais.

Dissensões e conflitos sempre marcaram a trajetória da psicanálise e dos estudos freudianos. São muitos e variados em origens, motivações e intenções. Desde o rompimento com Fliess, depois com Jung e mesmo com Ernest Jones até às grandes disputas teóricas, políticas e institucionais que fazem parte do desenvolvimento da psicanálise e de seus contrários no século 20 e que levaram, por exemplo, no Brasil um intelectual do porte de Helio Pellegrino a procurar socializar o alcance da psicanálise, afastando-se do freudismo clássico e engajando-se contra o regime ditatorial e contra e pretenso descompromisso político "arte-pela-arte" que alguns analistas preconizavam e difundiam no país.

Do ponto de vista epistemológico, as polêmicas não são menores e às razões que se apresentam para negar à psicanálise o estatuto científico, stricto sensu, somam-se outras tantas para mostrá-la não contraditória e consistente, do ponto de vista de uma ciência hermenêutica, como procura demonstrar Paul Ricoeur no estudo alentado que dedicou à matéria no livro Sobre a interpretação.

Há, pois, um universo de posições e contraposições culturais quando se trata de Freud e de psicanálise. A descoberta da alteridade como princípio constitutivo da identidade do it psicológico, que a nova teoria institui, permeia, entre outras coisas, todas as grandes teorias lingüísticas que a Europa conheceu depois da publicação do Curso de Lingüística Geral, de Ferdinand de Saussure, em 1916.

Mais perto de nós, Clarisse Lispector apreendeu essa dinâmica cindida do eu numa espécie de aforismo consagrador – o outro do outro sou eu, – com todas as combinações possíveis que a descoberta de Narciso fez reverberar no jogo de estranhamento e identificação do homem e de suas imagens no mundo.

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