Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

João Batista Natali

ECOS DA GUERRA

“Réu, Saddam pode constranger os EUA”, copyright Folha de S. Paulo, 21/12/03

“Os EUA poderão correr sérios riscos com o julgamento de Saddam Hussein. O ditador deposto é detentor de informações sobre a cumplicidade americana na produção de armas químicas e na eliminação de inimigos internos.

Seria abrir um armário cheio de esqueletos, argumenta Dilip Hiro, indiano radicado em Londres e autor, nas últimas três décadas, de 24 livros sobre o Oriente Médio e questões políticas no islamismo.

Ele está para lançar ?Secrets and Lies? (segredos e mentiras) pela editora americana The Nation Books, ligada à ala mais liberal do Partido Democrata. À Folha, Hiro diz que o processo contra o ex-ditador exporia redes internacionais de cumplicidade que deixariam os americanos numa situação incômoda. Eis os principais trechos da entrevista.

Folha – Há uma previsão sobre os procedimentos que orientarão o julgamento de Saddam?

Dilip Hiro – Certa vez Dick Cheney, o vice americano, disse que George W. Bush agia como um caubói porque mirava no peito do inimigo. Ele é um texano obstinado e frio. O julgamento será uma peça política importante no jogo da Casa Branca. O tribunal especial em que Saddam será julgado teve seu formato definido pelo Conselho de Governo Iraquiano alguns dias antes da captura do ex-ditador. As discussões internas duraram três meses. Um período no mínimo superior a esse será agora necessário para definir formas de instrução do processo, regras para a contratação de advogados estrangeiros, observadores e assim por diante.

Folha – Será, a seu ver, um grande ?espetáculo??

Hiro – No idioma urdu, que aprendi quando criança, há uma palavra curiosa, ?tamaaha?, que serve para designar qualquer forma de entretenimento. O Conselho de Governo Iraquiano precisará transformar necessariamente o julgamento de Saddam numa espécie de circo, numa ?tamaaha?, como forma de desviar a atenção da população da falta de segurança, do péssimo funcionamento do telefone, do estado deplorável das escolas e hospitais, do desemprego.

Há ainda a lei de talião como componente da cultura iraquiana, ?olho por olho, dente por dente?. Se Saddam provocou sofrimentos, é saudável vê-lo sofrer como réu.

Folha – O que pode ocorrer durante o julgamento?

Hiro – Saddam já é um réu humilhado pela difusão das imagens feitas logo depois de sua captura. Ele estava sonolento. Mas durante o julgamento ele estará acordado. Ele é um homem calculista, determinado, cruel ao extremo, brutal. No dia seguinte à captura, quando alguns integrantes do conselho de governo o visitaram, a nítida impressão que ele passou foi a de ser um homem sem remorsos. Ele jamais aceitaria o fato de ter feito algo errado. É então previsível que se defenda com unhas e dentes.

Folha – Que acusações sustentarão os argumentos da Promotoria?

Hiro – Com certeza ele será julgado por sua tirania, pelo uso de armas de destruição em massa e por vínculos com o terrorismo. A tirania é uma longa história. Saddam é poderoso desde que se tornou vice-presidente, em 1975, antes de se tornar presidente, em julho de 1979. Sua brutalidade máxima, no entanto, ocorreu durante a guerra com o Irã [1980-88]. Vejam que nesse período os EUA tinham como presidente Ronald Reagan, republicano como Bush. Foi um período em que não interessava aos EUA pintar Saddam como um violador de direitos humanos.

Folha – Mas, sobre armas de destruição em massa, ele usou armas químicas para exterminar curdos.

Hiro – Em 1988 ocorreu o genocídio contra uma cidade curda, matando de 3.200 a 5.000 pessoas. Ora, no ano seguinte a ajuda dos EUA ao Iraque foi multiplicada por dois. Saddam sabe disso melhor que ninguém. Ele teria, com o julgamento, uma maneira de recolocar temas delicados como este na agenda das discussões.

Folha – Poderá também sobrar para os curdos?

Hiro – Com certeza. Durante a guerra com o Irã dois dos partidos curdos se aliaram aos iranianos. Para os iraquianos não-curdos a história pode ser vista como um ato de traição, de aliança com o inimigo. Os próprios curdos se apoderaram de uma parte do Curdistão, parcialmente recuperada por Saddam. Abrir a tampa do reservatório em que estão armazenadas histórias como essa é dar um tiro no pé do projeto de reconciliação do Iraque.

Saddam pode aproveitar o julgamento para dividir seus compatriotas ainda mais. Ele sabe que, para os curdos, a região de Mossul foi arrancada pelos britânicos à Turquia, nos anos 20, e anexada artificialmente ao Iraque porque a região tinha muito petróleo. E o que dizer de os sunitas, mesmo minoritários, governarem a maioria xiita desde 1638? Saddam é terrível. Ele fará de tudo para jogar uns contra os outros.

Folha – E nos demais países árabes, qual seria a percepção do julgamento do ex-ditador?

Hiro – Em alguns países, como o Kuait, Saddam é o vilão e continuará a sê-lo, em razão da invasão de 1990. Mas as coisas se complicam entre os demais árabes. Há os três governos próximos dos EUA -Jordânia, Arábia Saudita e Egito. Mas, mesmo nesses países, a mídia tem argumentado que agora, com a prisão de Saddam, os EUA completaram sua missão e devem deixar o Oriente Médio. E argumentam também que os americanos devem deixar que o Iraque julgue Saddam porque foi o país que sofreu nas mãos dele.

Folha – Mas há ainda a Síria, que manda no Líbano, apóia historicamente o terror e é uma ditadura.

Hiro – É algo a meu ver interessante. A Síria é governada pelo Baath, que até 1966 era o mesmo partido do qual Saddam Hussein se serviu para subir ao poder e governar o Iraque. Apesar de divergências mortais de Saddam com o falecido presidente Assad, há uma forte afinidade entre as burocracias do Iraque e da Síria. Saddam tem horror ao atual presidente Assad, filho do anterior. Se tiver o julgamento como palanque, com certeza tentará prejudicá-lo.

Folha – Há também as relações da ditadura iraquiana com as empresas ocidentais, sobretudo nos anos 70, com petrodólares abundantes.

Hiro – Com certeza. Voltemos a 1988 -os EUA auxiliavam Saddam contra o Irã, com dinheiro e informações. Em troca, Saddam era generoso ao contratar empresas americanas. Creio que agora Saddam, como réu, estará assessorado por bons advogados. Citará episódios embaraçosos. Dirá que os americanos venderam matéria-prima para armas químicas. Que a França vendeu equipamentos para o programa nuclear.

Folha – Mas as ligações do Iraque com os EUA são conhecidas.

Hiro – O problema é que Saddam tem uma excelente memória, participou de tudo. O potencial explosivo de segredos que pode revelar ao tribunal não pode ser desprezado. Vejamos ainda com relação aos direitos humanos. O partido Baath chegou pela primeira vez ao poder em fevereiro de 1963. Kennedy era o presidente dos EUA. O Baath foi na época auxiliado pela CIA. A prioridade americana na época era destruir o Partido Comunista Iraquiano, o mais poderoso e antigo do mundo árabe. Em poucas semanas 5.000 comunistas foram presos e massacrados. Se abrirem o armário, vão achar esses esqueletos.

Folha – Donald Rumsfeld, hoje secretário da Defesa dos EUA, seria também vulnerável?

Hiro – Em dezembro de 1983, Rumsfeld foi recebido por Saddam porque a empresa para a qual Rumsfeld trabalhava, a Bechtel, queria construir o oleoduto do Iraque ao litoral jordaniano. Algumas semanas antes dessa audiência, o Iraque havia usado pela primeira vez armas químicas contra civis iranianos. Creio que Saddam aproveitaria o julgamento para evocar essas coisas.”

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“Agora, mídia árabe não poderá ignorar evento”, copyright Folha de S. Paulo, 21/12/03

“O julgamento de Saddam Hussein por um tribunal iraquiano terá uma magnitude jornalística inédita no mundo árabe. Por mais que os países árabes do Oriente Médio censurem a imprensa e proíbam temas delicados, será desta vez impossível evitar que a internet e as TVs por satélite ofereçam um espetáculo singular.

É a previsão de Muna Nashashibi, dirigente do Arab Media Watch (observatório da mídia árabe), entidade pró-árabe baseada em Londres.

A seu ver, é possível um julgamento a portas fechadas, sem a possibilidade de transmissão ao vivo de depoimentos. Mas, se for essa a decisão, o governo norte-americano estaria perdendo uma oportunidade excepcional de detalhar diante das câmeras os crimes do ditador deposto.

Arbítrio e violência

Nashashibi diz não acreditar que árabes de outros países associem a ditadura de Saddam a seus próprios governantes. Há segundo ela uma consciência muito nítida de que Saddam e o Iraque sempre foram casos de arbítrio e violência muito excepcionais.

Seu otimismo não é compartilhado por outra instituição que acompanha a mídia árabe, a Middle East Media Research Institute (instituto de pesquisa da mídia no Oriente Médio), de orientação liberal e baseada em Washington.

?A tragédia com a mídia árabe está no fato de ela ter apoiado Saddam, mesmo quando ele já estava deposto, só porque ele se tornou um símbolo anti-EUA e anti-Ocidente?, diz Yigal Carmon, presidente da entidade.

Quando começaram a ser localizadas, partir de abril, as valas comuns em que os partidários de Saddam sepultavam milhares de seus dissidentes, o fato foi bem pouco noticiado nos países árabes pelos jornais e emissoras.

Foram exceção à regra a mídia do Kuait, dos Emirados Árabes e a saudita impressa em Londres. Foi também o caso da Al Jazira, uma das TVs árabes por satélite. E mesmo assim discretamente, depois que a CNN e a BBC, suas concorrentes regionais, já haviam dedicado ao tema amplas reportagens.

A Al Arabiya, outra TV por satélite, nada noticiou. O mesmo vale para os jornais do Egito, do Líbano e da Síria.

?Chauvinismo nacionalista?

?Foi uma expressão do apoio camuflado a Saddam e da predisposição de perdoá-lo por seus crimes, só porque ele se opõe agora aos Estados Unidos e virou a expressão de um chauvinismo nacionalista?, diz Carmon.

A seu ver a questão da descoberta de valas comuns está estreitamente ligada à forma pela qual os árabes cobrirão o julgamento do ex-ditador, que passa a reunir os ingredientes políticos para se transformar em ?herói?.

Assim, o julgamento servirá como um divisor de águas no Oriente Médio. Na avaliação de Carmon, ?será possível saber quem é a favor de Saddam e quem defende valores democráticos e humanitários?.”

“EUA lançam TV árabe para Oriente Médio”, copyright Folha de S. Paulo The New York Times, 18/12/03

“A próxima grande esperança dos EUA para a conquista dos corações e mentes árabes se esconde num prédio de dois andares situado num parque industrial em Springfield, Virgínia. O único indício do que possivelmente acontece lá dentro é um letreiro na porta dizendo: ?Notícias?.

No interior do prédio, operários trabalham sete dias por semana para completar o estúdio do mais ambicioso projeto de mídia internacional patrocinado pelo governo americano desde que a rádio Voz da América deu início a suas transmissões, em 1942.

O projeto se chamará Al Hurra e será uma rede de TV de entretenimento e jornalismo em língua árabe. A programação será transmitida via satélite de um subúrbio de Washington para o Oriente Médio. O nome da rede pode ser traduzido como ?A Livre?.

A idéia é que a Al Hurra seja a resposta dos EUA a redes como a Al Jazira, do Qatar, que a Casa Branca acusa de incentivar o antiamericanismo no Golfo Pérsico.

A rede pode começar a transmitir já em janeiro. Mas já enfrenta ceticismo, mesmo por parte de um especialista em Oriente Médio indicado pelo secretário de Estado, Colin Powell, para rever os esforços de relações públicas dos EUA no mundo árabe.

Muitos estudiosos do Oriente Médio questionam se o público-alvo da nova rede, que desconfia de tudo o que vem dos EUA, algum dia poderá aceitá-la, especialmente pelo fato de seu centro de transmissão principal ficar na Virgínia. Mesmo que ela venha a ser aceita, alguns especialistas dizem duvidar que uma rede de TV isolada exerça impacto suficiente para justificar os US$ 62 milhões previstos para os custos de seu primeiro ano em operação.

A equipe responsável pela Al Hurra, uma mistura estranha de executivos de mídia americanos e jornalistas árabes veteranos, disse que a emissora terá independência editorial, seguindo o exemplo de outras organizações do tipo, como a Voz da América e a Rádio Europa Livre.

Reconhecendo os desafios, eles disseram que a nova rede vai reproduzir os melhores valores do jornalismo americano e representar a melhor oportunidade vista até agora de aprofundar a compreensão que se tem dos EUA no Oriente Médio. ?Enfrentamos um ambiente de mídia que inclui discursos de ódio na rádio e na TV?, disse Norman J. Pattiz, que chefia o comitê de Oriente Médio do organismo americano que financia e supervisiona o projeto, além da Voz da América e vários outros. ?É dentro desse ambiente que os árabes comuns recebem sua visão de nossa política, nossa cultura, nossa sociedade. Não podemos ignorar a mídia local?, disse ele, acrescentando que a Al Hurra poderá ser vista em todo lugar no Oriente Médio que tem acesso à Al Jazira.

De acordo com Pattiz, nos próximos meses a rede já contará com uma sucursal e estúdios no Iraque, pagos por uma verba de US$ 40 milhões incluída no pacote presidencial de US$ 87 bilhões em assistência financeira ao Iraque e ao Afeganistão. Outras sucursais serão abertas na região.

Ao lado de uma rádio em língua árabe que foi aberta há quase dois anos, a rádio Sawa, o projeto da Al Hurra começou a ter sua implementação acelerada depois dos ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, quando o governo americano reconheceu a necessidade de fazer frente ao sentimento antiamericano na mídia árabe.

Outros projetos nascidos na época fracassaram ou vêm fraquejando, sendo motivo de frustração e desapontamento consideráveis nos círculos diplomáticos americanos.

Os responsáveis pelo Al Hurra disseram que o projeto atual é mais bem pensado e foi montado com a ajuda das técnicas de marketing e produção americanas. Mas eles esperam que a rede tenha uma sensibilidade árabe, que se prevê seja garantida por seu diretor de jornalismo, o libanês Mouafac Harb, antigo diretor da sucursal de Washington do jornal diário árabe ?Al Hayat?, de Londres. Harb está contratando uma equipe de mais de 200 pessoas, boa parte delas árabe.

O presidente da rede, Bert Kleinman, disse que pessoas no Egito e no Bahrein que participaram de grupos de consumidores que avaliam novos produtos reagiram positivamente a uma descrição da Al Hurra. Mas reconheceu: ?Quando perguntamos se uma rede justa e equilibrada poderia ser americana, alguns disseram ?de jeito nenhum? ?.

Executivos responsáveis pelo projeto da TV disseram ter ficado animados com o fato de a Rádio Sawa, uma estação voltada ao público jovem que mistura pop ocidental e oriental e que também era vista como fadada ao fracasso, ter criado um público de pelo menos 15 milhões de ouvintes em todo o Oriente Médio.

O símbolo que identifica a Al Hurra é um cavalo árabe que vai aparecer trotando sobre a tela durante os intervalos na programação.

Os responsáveis pela nova rede reconhecem que um de seus maiores desafios será convencer as pessoas a assistirem à sua programação. Mas eles dizem que ela deve se destacar no ambiente televisivo de cerca de 150 canais porque terá os mais altos valores de produção da região.

Mas, de acordo com Harb, sua qualidade distintiva mais importante será sua abordagem jornalística. ?Em todos os jornais árabes, a seção de editoriais e artigos de opinião fica na primeira página?, disse ele. ?Isso deu lugar a uma cultura na qual não é possível saber a diferença entre notícia e opinião?, afirmou.

?Precisamos divulgar notícias objetivas e balanceadas. No Ocidente, isso pode soar como o que existe de mais básico em jornalismo, mas, no mercado árabe, será um fator que vai diferenciar nossa emissora da concorrência.?”