Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

João Moreira Salles

LULA PRESIDENTE

“Lula recupera a paixão política”, copyright No Mínimo (www.nominimo.com.br), 27/10/02

“Desde o final de setembro venho filmando Lula para um documentário dirigido por Eduardo Coutinho e por mim. Acompanhei-o a doze estados e quase vinte cidades, além do Distrito Federal. Em todos os lugares, sem exceção, Lula é recebido por uma multidão de pessoas. Homens, mulheres, jovens, idosos, adolescentes, todos estão dispostos a sair de casa em nome de um entusiasmo raro nos dias de hoje: o da política.

O fenômeno Lula só pode ser bem compreendido por quem o vê na rua. Não me refiro apenas aos comícios, às caminhadas ou aos desfiles em carro aberto, mas também às saídas dos hotéis onde se hospeda, aos saguões dos aeroportos por onde passa e aos restaurantes onde pára para comer. Ou seja: tanto nos eventos oficiais da campanha presidencial como nos encontros fortuitos de Lula com seus eleitores, a mesma intensidade está lá. Lula não se deixa decifrar pelos jornais ou pela televisão. Pelo menos, não plenamente. É preciso estar perto dele e testemunhar. Existem certos fenômenos assim. Os que me ocorrem de imediato nada têm a ver com política. O futebol e o carnaval, por exemplo. Quem já assistiu a uma partida no Maracanã ou presenciou uma escola de samba na Marquês de Sapucaí, mais tarde, ao ver jogo e desfile reproduzidos na televisão, sente que houve um amesquinhamento da experiência. A mesma coisa vale para os grandes acidentes naturais (e, entre aqueles que têm fé, para as cerimônias religiosas). Os fenômenos dessa categoria têm em comum o fato de exigir a experiência imediata, sem mediações. Nesses casos, a distância não funciona.

Porém, ao contrário dos exemplos citados, a arte política de Lula está muito além da idéia de espetáculo, sobretudo se dermos a essa palavra seu significado mais prosaico, de fruição dos sentidos. As pessoas que saem de casa para assistir a um comício de Lula não estão apenas indo a um programa divertido. Talvez a presença de Zezé di Camargo e Luciano em vários comícios do primeiro turno possa ter engordado a conta do número de participantes desses eventos, mas no segundo turno Lula subiu nos palanques sozinho, às vezes tarde da noite. Em Aracaju, depois de ter visitado três outros estados no mesmo dia, só conseguiu chegar ao comício às onze da noite. Na última quarta-feira, em Florianópolis, depois de passar pelas cinco regiões brasileiras num mesmo dia, Lula começou a falar perto da meia-noite. E diante dele não houve um palmo de asfalto desocupado. As praças estavam sempre lotadas.

Frente a Lula estavam milhares de pessoas que acreditavam – nele, no partido, na possibilidade de mudar o Brasil, na chance de melhorar a própria vida. Não interessa se tinham ou não razão em acreditar. Os próximos quatro anos se encarregarão de responder a essa dúvida. Incontestável é o fato de que Lula exumou das cinzas as velhas idéias do sonho e da utopia, trazendo-as de volta à esfera da ação política. Penso que parte do seu sucesso deve ser creditada a isso. Ambas eram idéias mortas para muitos dos políticos mais honrados das últimas décadas, e vivas demais para alguns dos piores.

Yeats

Em 1919, o poeta irlandês W. B. Yeats escreveu um pequeno poema intitulado ?The second coming? – ?O segundo advento?. Yeats estava sob o impacto da primeira grande guerra. Nos dois últimos versos da primeira estrofe, sintetizou a miséria espiritual que percebia no seu tempo. Mais do que versos famosos, são um extraordinário exemplo de intuição premonitória. Yeats escreveu:

Os melhores carecem de convicção, enquanto os piores são cheios de intensidade e paixão.

No mesmo ano de 1919, Mussolini organizava os primeiros núcleos fascistas na Itália. Cinco anos depois, Stalin chegava ao poder. Em 1933, Hitler era eleito chanceler da Alemanha. Em 1936, com o mundo a um passo do abismo, Yeats escreveu a uma amiga: ?Se puder, dê uma olhada num poema chamado ?O segundo advento?. Está tudo lá?.

Em parte, não está mais. Ou não estava, até poucos anos. Porém, de uns tempos para cá, o mundo e os versos de Yeats voltaram a se encontrar.

Quem hoje em dia detém o monopólio da crença? Quem ainda acredita, intensamente? Deixo de lado os fundamentalismos religiosos, porque eles não cabem nesta pequena reflexão. Quero me ater à esfera secular, à fé na possibilidade de transformar a realidade por meio da ação política. Quem, neste início de novo século, é capaz de levar gente para a rua?

A resposta ainda está com Yeats. Homens sensatos e honrados – os melhores de que falava o poeta – têm se mostrado incapazes disso. Seus adversários, infelizmente não. O exemplo mais contundente é o das eleições francesas. Por que Jospin perdeu para Le Pen? Em boa parte, porque Le Pen parece acreditar mais intensamente, o que redobra as chances de sua fé impregnar a imaginação dos seus seguidores. Jospin não consegue fazer isso com os seus. É como se lhe faltasse convicção íntima. Algo semelhante ocorre na América, onde a direita conservadora – cujas idéias cada vez mais misturam conteúdos liberais com fé religiosa – parece ter maior crença nos seus ideais do que os liberais nos deles. O confronto Bush x Gore deixou isso claro. Numa completa pirueta em relação aos anos 60, as utopias agora parecem se abrigar no pensamento mais radical de direita. É lá que se encontram a intensidade e a paixão.

Na Holanda, aquele paraíso da sensatez, Pym Fortuyn, líder do partido que leva seu nome, foi assassinado a uma semana das eleições cujas pesquisas o apontavam como provável futuro primeiro-ministro do país. Sua agenda política incluía o fechamento das fronteiras à imigração e seu discurso invariavelmente agredia as populações muçulmanas. Não apenas seu enterro foi transmitido pela televisão, mas também a exumação dos seus ossos, meses depois. Nas duas cerimônias, os milhares de presentes traziam na lapela um broche com a frase mais conhecida de Fortuyn: ?Digo o que penso e faço o que digo?, um mote que avisa que estamos longe da política tradicional, aquela das acomodações e da conciliação, e bem mais próximos da ação radical, aquela que não cede. Na Áustria, o partido do líder da direita extremada Jörg Haider voltou ao poder. Em Viena, dizem que nada é mais empolgante do que um comício de Haider. Segundo a piada local, trata-se da única ocasião em que se pode constatar que os austríacos ainda estão vivos.

Quando se observam os intervalos mais sensatos do espectro político, mesmo neles a direita tem mostrado mais capacidade de mobilização do que a esquerda. A terceira via de Tony Blair é incapaz de encher um auditório de escola. Na Espanha, José María Aznar lota praças.

Lula na rua

Durante pelo menos toda a segunda metade do século passado, a esquerda deteve o monopólio da rua. A direita fazia política de gabinete, enquanto a esquerda enchia as praças. O que mudou?

Vendo Lula avançar ao lado de milhares de pessoas pelas ruas estreitas de João Pessoa, num espetáculo verdadeiramente fluvial, como no dia 15 de outubro, uma terça-feira, percebo que a grande diferença não está tanto nas propostas (nesta campanha houve grande convergência no discurso dos quatro candidatos principais), mas na fé aberta, franca, sincera e sem acanhamento com que elas são defendidas. Naquele mesmo dia, Lula repetiu o espetáculo em Natal, Recife e Aracaju. Em todas essas capitais, o que se viu foi o mesmo: cidades paradas em função de um homem que vinha defender com paixão as suas idéias.

Fazia muito tempo que eu não testemunhava coisa igual. Minha última experiência semelhante tem mais de vinte anos, e vem dos tempos da grande campanha pelas eleições diretas. De lá para cá, as coisas mudaram bastante. Muitos dos melhores quadros do centro e da esquerda deixaram de lado a dimensão utópica e se entregaram à inteligência técnica. O problema da técnica é que ela pode ser eficiente, mas jamais terá carisma. A técnica não enche praças e não promove procissões como a de João Pessoa. A técnica deixa uma porção importante da vida desatendida – chame-a de imaginação, de espírito, de alma, tanto faz. Foi sempre um erro supor que as pessoas se contentariam com a técnica. Não se contentam. Se apenas ela, fica a sensação de uma vida encolhida.

Imagino que quando se oferece às pessoas a possibilidade de se sentirem parte de um projeto maior, de um sonho repartido, elas geralmente acorrem. Essa é a grande virtude de Lula. Ele recupera o sentido de comunhão na política. Quando fala, quem o ouve fica com a impressão de que a possibilidade de fazer história pertence um pouco a todos. Lula provavelmente jamais deu crédito à idéia de que as utopias estavam extintas. Bastava-lhe olhar para a própria biografia. Neste sentido – o da história de sua vida – ninguém poderia estar mais preparado para acreditar na noção de que é possível reinventar a história. Quando milhares de pessoas em Osasco (25/9), Porto Alegre (30/9 e 18/10), Aracaju (15/10), João Pessoa (15/10), Recife (15/10), Belém (23/10), Macapá (23/10) ou Florianópolis (30/9 e 23/10) saem de casa para ouvi-lo, saem em parte por isto: porque diante delas está não apenas um político (talvez o maior político de massas desde Getúlio Vargas, segundo Ricardo Kotscho), mas uma metáfora. Lula é o Brasil que pode ser outro.

Com Lula a idéia do sonho volta para o campo da esquerda. Mas contrariamente à direita européia (e em menor escala, à americana), o seu sonho não está fundado na idéia de oposição (aos imigrantes, aos muçulmanos, às minorias em geral), mas de inclusão (dos pobres, dos marginalizados). É uma utopia generosa. Logo, uma saudável inversão do verso desalentado de Yeats.

Resta explicar por que Lula conseguiu convencer o país em 2002 e não em 89, 94 e 98. Naqueles anos de derrota, a intensidade da crença parecia ser a mesma de hoje. Afora as razões conhecidas – a falsa fúria santa de Collor, o invencível Plano Real, o medo da instabilidade econômica, e agora o desejo de mudança de rota -, o discurso mais ameno que Lula adotou nesses últimos anos teve uma conseqüência importante: incluiu os que antes se sentiam rechaçados pela fala daquele que julgavam radical. Os discursos extremos conseguem apaixonar apenas os que estão nas extremidades ou perto delas – pouca gente. Desta vez, Lula conseguiu incluir praticamente todo mundo em seu sonho.

Se a utopia poderá se cumprir, é outra questão. Lula acredita sinceramente que sim, o que faz dele esta criatura rara: um político de palanque que fala às massas sem ser populista. Lula não promete o que não acha que pode cumprir. Não estimula o messianismo. Este é outro aspecto virtuoso de seus comícios: a impressão que se tem é de que as pessoas que ali se encontram não estão dispostas a entregar suas vidas ao líder carismático, para que ele resolva tudo. Até mesmo a oratória de palanque empregada por Lula é instintivamente cautelosa e reticente. Quando determinado raciocínio está prestes a incendiar a platéia, bastando que Lula soque a última frase em direção ao céu, ele, contra-intuitivamente, inverte a inflexão, abaixando o volume da voz e trazendo a idéia de volta ao chão, num pouso manso. É uma forma de respeitar a platéia, evitando a fácil tentação de enfeitiçá-la.

Lula ganhou esta eleição acreditando apaixonadamente nas suas idéias. Mas para governar bem não bastará a intensidade da crença. Se a técnica sem utopia é árida como deserto, a utopia sem eficiência não passa de uma embriaguez. Doce durante, amaríssima depois. É preciso torcer para que Lula saiba operar a síntese difícil.

Poucos conseguiram. Apesar de todas as críticas que, justa ou injustamente, são feitas a JK – o delírio de Brasília, o modelo de desenvolvimento concentrador de renda, a deflagração do processo inflacionário -, talvez ele tenha sido o último a ter tido algum êxito nessa tarefa. Durante aqueles poucos anos, o Brasil achou que podia ser original. (Quanto a esse critério, estamos bem: Lula é uma novidade planetária. Ele nos coloca no mapa do mundo.) Crescemos bastante, inventamos muita coisa, ganhamos auto-estima. O país foi feliz. Já faz tempo. Estamos com saudades da sensação.

Boa sorte, Lula.”

“No ar”, copyright Folha de S. Paulo

“30/10/02Reavaliação

Vitória do PSDB, bradaram manchetes de telejornal e algumas comentaristas. A desculpa foi que os tucanos levaram sete Estados.

Antes tinham sete também, mas ?cresceu a importância?, disse Geraldo Alckmin. Pode ser, mas cantar vitória do PSDB não passa de vício dos oito anos de dominação tucana.

Afinal, o que diferencia o poder do presidente do poder de sete governadores?

Em primeiro lugar, o presidente eleito dá entrevista ao vivo ao Jornal Nacional, que manda seu âncora a São Paulo. O presidente eleito dá até o ?boa noite? do JN no lugar de William Bonner, como fez Lula.

Já um governador não vai além do telejornal local, como fez Alckmin.

Por outro lado, o presidente é eleito e, coincidência, no dia seguinte a Globopar ?anuncia reavaliação da sua estrutura de capital?.

Uma ?reavaliação? que só vai terminar depois de empossado o novo presidente.

O que diferenciou a entrevista de Lula ao JN da entrevista de Lula ao Fantástico, no domingo, foi que a Globo pelo menos se conteve.

Fez o petista ver e comentar cenas editadas, mas não eram sentimentais. Eram patrióticas ou de campanha.

Mas fez novamente o petista entrar no palco, cumprimentar Bonner; depois, no final, até abraçar Bonner.

Enfim, foi uma simbiose entre o presidente eleito e o oligopólio, mais uma vez, mas não chegou a ser uma obscenidade. Foram mantidas as aparências.

Lula chega ao poder, mas sob controle. Dá entrevistas só à Globo, genéricas, e passa as mensagens mais específicas em pronunciamentos escritos ou anotados.

No pronunciamento de domingo, afirmou que vai presidir para o Brasil, não para o PT e seus aliados. No de ontem, apontou, como já dizia José Dirceu na noite da eleição, que seu governo deverá começar pelo ?pé esquerdo?:

– Meu primeiro ano terá o selo do combate à fome.

De resto, ele vai cumprir contratos, incentivar o mercado de capitais, encaminhar projetos de reforma tributária e outras para o Congresso.

Mas vai começar pelo combate à fome. Será o ?selo?, sua marca no ano. Para deixar alguma, por menor que pareça, que não seja a da mesmice.

Boris Casoy disse que FHC encaminhou uma transição em que, derrotado, parece vitorioso. O presidente também vê assim. Até sai dizendo:

– Há um significado especial em passar para um líder operário. Isso, a mim, pessoalmente, me dá emoção. Espero com ansiedade o momento em que o mundo vai ver a faixa transmitida a um operário.

Mas FHC não passou meses falando do despreparo de Lula?

– Estou muito feliz de ter podido presidir o Brasil num momento em que realiza essas eleições que têm outro significado. O presidente eleito veio de origem humilde. Isso nos deixa orgulhosos.

Mas o candidato de FHC não era José Serra?

– O próprio candidato declarou que não era candidato do governo.

Mais um pouco e ele diria que votou em Lula.”