Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

João Ubaldo Ribeiro

GAROTINHA CENSORA

"Esperando minha vez", copyright O Estado de S. Paulo, 17/11/02

"Sou jornalista desde os 17 anos, ou seja há quase 45. (Quando digo esse tipo de coisa, costumo ficar meio assim, porque nunca esperei fazer 45 anos de nada, nunca passaria dos 30, sempre alegres, inteligentes, sadios e namoradores, mas, agora que cheguei aqui, ainda quero mais unzinhos, mesmo que chatos, debilóides, enfermiços e enviagrados.) Meu pai, que nunca foi muito democrata dentro de casa, pois acho que gastava toda a democracia dele fora, chegou um dia em casa e me mandou trocar de roupa para sair. Era para me levar a um jornal, o extinto e saudosíssimo Jornal da Bahia, onde eu deveria iniciar minha carreira como repórter. Naquele tempo não havia escolas de comunicação, era tudo no tapa e eu aprendi tudo no tapa, menos diagramação, que requeria o uso de réguas, geometria rudimentar e algum senso espacial, área em que eu sempre fui classificado de cretino, inclusive por psicólogos profissionais.

Portanto, como acho que já disse aqui, sou desses jornalistas capazes de sentar a uma mesa de bar e encher a paciência alheia alegando que já fiz tudo em jornal, no que não estaria muito longe da verdade. Até comunicações internacionais eu fiz, pois sou do tempo da tesourapress, ou giletepress, que consistia em recortar notícias de outros jornais e colar em nossas laudas. Copidescava-se ou traduzia-se um bocadinho de cada matéria, de forma que tenho grande parte da imprensa carioca e paulista, atual ou defunta, em meu currículo, bem como jornais estrangeiros de prestígio.

Mas certas experiências eu nunca tive. Não me refiro a cobrir eventos como alpinismo ou outros esportes, antes não tão abundantes, chamados hoje de radicais, pois sempre tive medo de chegar à sacada de qualquer andar de edifício, quanto mais de me encarapitar em penhascos. Refiro-me a, por exemplo, suborno. Já dirigi uma redação em que todo mundo se gabava de uma tentativazinha de suborno, notadamente nas áreas de política e polícia. Eu ficava indignado, porque nunca fui objeto de uma tentativa de suborno que refletisse minha auto-assumida importância. Fiquei em dois episódios humilhantes. Um envolveu um uísque nacional chamado King?s Archer, que na época circulava nas piores biroscas e dizia o povo que o nome (?arqueiro do rei?) era porque o consumidor bebia um gole e tomava uma imediata flechada no fígado, que recusei altivamente, com um discurso a respeito de minha probidade profissional. Se fossem pelo menos umas seis garrafas, eu ainda ficaria menos indignado, mas duas foram um rude golpe para meu ego.

A segunda tentativa foi a de um prefeito do interior, que roubou tudo o que podia e nós começamos a noticiar. Ele aí apareceu na redação para me falar.

Quando eu lhe mostrei as provas, hoje provavelmente chamadas de ?dossiê? e me revelei irredutível, ele me perguntou se eu tinha filhos. O quê? Não sabia o que aquilo se relacionava com nossa conversa, mas tinha, sim, tinha duas filhas. Ele piscou o olho, me chamou com um dedo para mais perto de si e me perguntou, já aos cochichos como sempre imaginei que devem ocorrer os subornos, qual a idade das duas.

– Uma tem 5, a outra vai fazer 3 – cochichei de volta.

– Um velocipedezinho e uma bola para cada uma, hem, hem? – perguntou ele, certo que tinha acabado de botar o jornal no bolso e mal compreendendo que fora expulso de minha sala não tanto pela tentativa de suborno, mas pelo seu conteúdo desmoralizante. Dois velocípedes e duas bolas, francamente.

Nunca mais quiseram me subornar com nada, de forma que não posso contribuir para o folclore dos jornalistas subornados que vigora no Brasil, onde todo mundo pensa que todo mundo toma dinheiro de todo mundo, notadamente jornalistas, sempre de olho numa falcatrua qualquer. É assim que nós vivemos, segundo a opinião de vasto contingente de pessoas. Pois sim. Se eu fosse depender de subornos, nunca conseguiria manter o padrão de vida que modestamente mantenho com o que me pagam oficialmente mesmo.

De censura também minha experiência é quase nenhuma. Houve um tempo em que havia censores nas redações, geralmente senhores de ar um tanto contrafeito e expressão sisuda, especializados, ao que parecia, em ?ler nas entrelinhas?. O pessoal escrevia uma nota honestíssima sobre um buraco na rua tal e ele lia nas entrelinhas e vetava a notícia. Dava um certo trabalho fechar o jornal já que os jornais baianos não tinham, por exemplo, o peso do Estadão para dar trechos de Os Lusíadas ou receitas de bolos no lugar das notícias cortadas. Mas a mim, pessoalmente, nunca pegaram.

Mudaram os tempos, mudou o regime, foi-se a censura. Mas o mundo dá voltas e, ao que parece, a censura está querendo voltar. Por vias judiciais e, portanto, legais, mas está querendo voltar de qualquer jeito. Imagino que a exceção da verdade ainda valha (não valia, no tempo da linha dura), mas aconteceu com o Correio Braziliense e agora, ao que parece, acontece com o Artur Xexéo e o Mauro Rasi. Falam por aí, não sei se é verdade, que a governadora Garotinha estabeleceu tolerância zero para críticas, gozações e assemelhados. Quando for acusação, é fácil. Mas, quando for piada ou ironia, não pode? Desta vez não fico de fora. Vou esperar o primeiro corte de cabelo ou o vestido da posse para me incluir entre os excluídos. Não se pode deter o progresso."

 

MÍDIA vs. FOME ZERO

"Mídia usa sofismas para negar fome no País", copyright Agência Carta Maior (www.agenciacartamaior.com.br), 18/11/02

"Jornais, jornalistas e o próprio presidente da República nos informam que não há fome no Brasil. O texto inaugural dessa leva de sofismas, de Demétrio Magnolli, foi publicado em ?Época? logo que Lula anunciou o programa Fome Zero como sua prioridade de início de governo. Magnolli disse que ?não há fome social no Brasil?, como ocorre em alguns países da África, contestando as premissas do programa Fome Zero.

Em Londres, uma das etapas de sua agradável viagem de fim de governo ao exterior, o presidente Fernando Henrique arrematou, em entrevista à BBC, reproduzida por todos os nossos jornais: ?Há casos raros de fome no Brasil. O que há é subnutrição?. E, no final da semana, ?Veja? foi ainda mais enfática, provando com números que ?como fenômeno social, não há famintos no Brasil?.

Sopa de palavras para matar a fome

Todos esses argumentos são sofismas baseados num ingênuo jogo de palavras. Com se mudando palavras ou inventando definições, acabasse a fome no Brasil. Os sofismas têm uma mesma estrutura de contraposição entre a palavra ?fome? e três outras expressões: ?fome social?, ?desnutrição? e ?miséria? . O que existe no Brasil é miséria, não a fome, o que existe no Brasil é a fome esporádica, não a fome social, o que existe no Brasil nem é fome, é apenas desnutrição. Como o que existe é uma outra coisa, a fome não existe. O truque é até muito simples. Ocorre que ou as premissas dos argumentos são falsas, ou é falsa a conclusão. A três falácias nem mesmo são compatíveis entre si. Não passam de jogo de palavras.

A falácia da fome social

Magnolli recorreu aos grandes surtos epidêmicos de fome ocorridos na Europa, e que hoje ocorrem em alguns países da África. A língua inglesa tem uma expressão própria para esses surtos epidêmicos, famine. Essa é a fome epidêmica, que afeta de uma vez só grandes populações. Assim foi a ?famine? que eclodiu na Irlanda no século XIX, quando se deu uma praga nas batatas, levando milhões de irlandeses à morte por desnutrição e outros milhões à emigração para os Estados Unidos. Por isso, na língua inglesa usa-se famine para essa fome de caráter social, e hunger para a fome comum.

O sofisma de Magnolli consistiu em considerar os surtos epidêmicos de fome como única modalidade de fome social. Mas e a fome crônica, permanente, espalhada e não concentrada, um pouco em cada povoado do Nordeste, um pouco em cada favela da periferia, um pouco em cada cortiço de São Paulo? Essa fome não é social? O que falta no Brasil não é a fome social, mas uma palavra nossa para designá-la.

A falácia da desnutrição

A outra falácia usada tanto por Magnolli como por FHC foi a de que no Brasil não há fome e sim desnutrição. Mas como é possível haver desnutrição sem haver fome? A desnutrição é um dos principais efeitos da fome, e de uma fome crônica, contínua. É preciso passar fome durante meses, anos, para se tornar subnutrido. No Brasil isso ocorre principalmente com crianças entre e dois e seis anos de idade, quando já pararam de mamar e ainda não foram à escola, onde teriam acesso a uma merenda escolar, pelo menos. Seis em cada cem crianças brasileiras são subnutridas, informou a ?Folha? deste domingo. Entre crianças de aldeias indígenas, a proporção mais do que dobra.

E a falácia da miséria sem fome

?Veja? desta semana usou um jogo de palavras: ?nem todos os famintos são miseráveis mas nem todos os miseráveis são famintos?. A partir disso, estimou em miseráveis 14% da população. E concluiu: como os programas sociais do governo atenderiam 80% e aos 20% restantes é ?assistida com maior ou menor eficiência? por ONGs, não sobram famintos no Brasil. Um argumento que chuta números e taxas de atendimento, sem nenhuma corroboração ou prova. Um mero exercício retórico.

E outras falácias

FHC usou o argumento de que 95% das crianças vão hoje à escola e como na escola recebem merenda, não tem como passar fome. Mas e os 5% restantes? E as crianças na faixa de dois a seis anos que não vão à escola? Puro sofisma, enganação, que para um assunto tão sério não fica bem para um presidente da República, mesmo em fim de mandato. Outra falácia de FHC é de que ?são casos raros?. Uma proporção pequena de desnutridos, digamos 1% da população, já significam 1,7 milhão de famintos.

E o jornalismo do mundo real

A reportagem da ?Folha? do domingo era sobre os índios. Os dados foram obtidos pelo cruzamento de informações da Fundação Nacional da Saúde e da Pastoral da Criança. Entram na conta crianças com até 6 anos e 11 meses. Dados de 18 dos 34 distritos sanitários revelaram que havia 5.012 crianças com peso abaixo do normal – principal indicador de subnutrição. A reportagem da ?Folha? foi uma entre muitas que desde o lançamento do programa Fome Zero vem trazendo fragmentos de um mapa da fome no Brasil. No sábado, a ?Folha? mostrou que os programas sociais do governo cobrem apenas metade dos 39 milhões de pessoas classificadas como pobres.

A mesma ?Folha?, na semana anterior, mostrou que o governo considera que existem 39 milhões de pobres no Brasil (contra 57 milhões estimados pelo Ipea) e que apenas metade deles (52%) estão cadastrados nos programas de auxílio, como Bolsa-escola. Sobram quase 19 milhões de pobres sem essa proteção. Se apenas dez por cento deles passarem fome, já são 1,9 milhões de brasileiros com fome.

E a cultura da fome

Josué de Castro conta em ?Sete palmos de terra e um caixão? (Brasiliense, 1968) que no Nordeste ?é habito servir-se um pedacinho de carne seca com um prato cheio de farofa?. Uma quantidade de carne só para dar um gosto. É assim o jornalismo de ?Veja? sobre a Fome: muita farofa e pouca carne."