Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Jornal do Brasil

GUERRA NA MÍDIA

"Aliança restabelecerá TV em Cabul", copyright Jornal do Brasil, 15/11/01

"Afegãos da capital correram para as lojas de eletrônicos e alguns já compraram televisores e equipamentos de vídeo e DVD no dia seguinte à tomada de Cabul pelos soldados da Aliança do Norte. As mulheres mais ousadas não usam mais burca e já estão atrás dos balcões de algumas lojas da cidade.

A oposição, que na terça-feira havia anunciado o fim de muitas das normas impostas pelo governo talibã – entre elas a proibição do trabalho às mulheres e a imposição do uso de barba aos homens -, planeja restabelecer as transmissões de TV na capital o mais rápido possível. ?Eles estão falando em fazer a televisão voltar esta noite ou então em um futuro próximo?, disse um morador de Cabul, afirmando ter ouvido a informação em um aviso oficial da oposição.

?Tudo está diferente hoje. A cidade mudou 100%?, contou Sarfaz Hostai, um vendedor de pneus de 35 anos. ?Tivemos muitos problemas, mas agora estamos livres e esperando pelo novo governo? acrescentou, depois da primeira noite desde o início dos bombardeios americanos em que as luzes de Cabul puderam ficar acesas. A milícia talibã havia proibido iluminação artificial nos lares de Cabul para dificultar ataques aéreos durante a noite.

Confiança – Hostai disse ter gostado da conquista da capital pela Aliança do Norte, apesar do fato de ser um pachtun, grupo étnico majoritário no país, mas que não faz parte da coalizão de oposição que invadiu Cabul. ?O povo quer que eles tragam um bom governo que divida o poder com todas as etnias?, afirmou.

As ruas e lojas da capital estão novamente cheias de gente. No mercado de Foruj-Ga, uma mulher que trabalhava com um véu, mas mostrando o rosto, livrava-se de dois pesos impostos pelos talibãs: a burca, que lhe cobria todo o corpo, e a proibição de trabalho para as mulheres, que agora também poderão voltar a estudar. Vendedores negociavam com fregueses o preço de pacotes de cigarro, roupas e especiarias.

Soldados da Aliança do Norte fazem patrulha na capital, que já tem engarrafamento e taxistas buzinando com impaciência. ?Viemos para cá para dar segurança à cidade. Não tivemos problemas e todas as pessoas nos acolheram muito bem?, disse um policial militar. Um homem do lado de fora de um posto abandonado da polícia religiosa talibã juntou-se a uma manifestação e passou a liderar os gritos de ?Morte ao mulá Omar!?.

Moeda – Segundo Murad Mohd, um homem desempregado de 36 anos, ?o mais importante é a segurança. Depois disso, eles podem melhorar a situação no Afeganistão. Nós só desejamos um governo que queria paz e que dê estabilidade ao país.?

A cotação da moeda nacional, o afegani, chegou a ser de 80 mil para um dólar este ano devido ao isolamento do país sob o regime talibã. O afegani teve o seu valor dobrado nos últimos dois meses, quando casas de câmbio em Cabul especulavam sobre a queda do talibã. Negociadores dizem que a moeda desvalorizou-se: na terça-feira, um dólar valia 33 mil afeganis; ontem, 38 mil. ?Não estamos preocupados com a situação da segurança, mas temos visto muito dinheiro vir do Norte?, disse um doleiro. Nos últimos anos, a oposição imprimiu indiscriminadamente notas de afegani no exterior toda vez que precisava de verba para o combater os talibãs."

"Repórter dá ?furos? sem sair do escritório", copyright O Estado de S. Paulo / The Guardian, 18/11/01

"Na cobertura jornalística americana sobre o Afeganistão um autor se destaca: Seymour Hersh, do New Yorker. Com um furo após o outro, Hersh, de 64 anos, deu uma sova em seus colegas, entre eles seu velho rival do The Washington Post, Bob Woodward, do caso Watergate.

Hersh esteve na frente nas investigações sobre o fracasso do serviço de informações no atentado de 11 de setembro ao World Trade Center ; fez a melhor exposição sobre o desajuste reinante na CIA; denunciou os grampos dentro da família real saudita; anunciou os planos circunstanciais dos Estados Unidos para desarmar as armas nucleares do Paquistão; e, o que é mais polêmico, revelou que um ataque de surpresa atrás das linhas do Taleban por soldados de elite americanos esteve bem distante da operação ?impecável? anunciada pelo Pentágono. Foi um ?ultraje? que deixou vários soldados feridos, revelou um militar a Hersh. E tudo isso partindo do minúsculo e atulhado escritório de Hersh em Washington.

Enquanto os jornalistas que estão no front do Afeganistão têm estado confinados ao raio de alcance de um binóculo por causa dos bombardeios dos Estados Unidos, e enquanto os repórteres no Pentágono têm sido ?pautados? diariamente pelo secretário de Defesa, Donald Rumsfeld, Hersh vem persistentemente construindo a própria versão da guerra telefonando para os números de sua infame (inigualável, dizem eles) agenda preta de contatos militares e no serviço de informações.

Estar na frente da turma (o único lugar em que o combativo Hersh se dispõe a estar) o deixou vulnerável, é claro. Atiradores de elite vem fazendo tentativas de atingi-lo como têm feito no decorrer de sua espantosa carreira de reportagens premiadas sobre a intervenção das Forças Armadas dos Estados Unidos desde o Vietnã até a América Latina, passando pelo Oriente Médio. Mas Hersh segue em frente, sem rédeas, infatigável.

Nesta época de repórteres aduladores, Hersh é uma avis rara, quase o último de uma espécie em extinção, vestido como os jornalistas costumavam se vestir, com calças amarrotadas e suéteres rotos. Ainda consegue suas reportagens ?sondando suas fontes não identificadas até que exponham suas estranhas?, como disse um colega.

O problema é que ?às vezes, é uma parte dos fatos, não a história inteira?, acrescenta o colega. ?Sy (como é chamado por todos) é a antítese do repórter que recebe as coisas já mastigadas, mas isso não significa que esteja sempre certo?, observa o comentarista militar Bill Arkin, que uma vez trabalhou para Hersh. Desta vez Hersh está sob pressão por causa de uma reportagem sobre um ataque que deu errado. O Pentágono nega veementemente.

Em desespero, seus críticos caçoam dele. Sob o título ?Rambo Seymour?, os espertinhos da editoria de cidades do New York Observer, um semanário lido pelos sofisticados de Manhattan, propôs um teste: ?Qual das seguintes citações (a) são de fontes incógnitas do correspondente do New Yorker, Seymour Hersh; (b) do filme Programado para Matar, estrelado por Sylvester Stallone?? As citações de Hersh (de ?fontes do serviço de informações?) incluíam: ?Você não pode penetrar numa célula de seis homens quando eles são irmãos ou primos – não importa quanto urdu (língua literária do Paquistão, também largamente falada na Índia, principalmente por muçulmanos) você saiba?, ou, ?Veja, recrutávamos panacas. Eu cuidava dos caras maus, mas não recrutamos irmãs de caridade.? A citação de Stallone era: ?Quando o capturarmos, vou pegar essa medalha de honra ao mérito dada pelo Congresso e espetá-la no fígado dele.? Não, não era um agente da CIA falando sobre Osama bin Laden.

Contestar a versão oficial da ?verdade? não é novidade para Hersh. Seu primeiro grande furo jornalístico, pelo qual é até hoje aclamado universalmente, foi o massacre de My Lai, na Guerra do Vietnã. Aconteceu em 1971, depois da perseguição implacável de uma pista dada por um advogado, e trouxe para ele, então um jornalista free lance, um Pulitzer, o cobiçado prêmio do jornalismo americano. Antes disso houve a revelação do arsenal de armas químicas e biológicas dos Estados Unidos e depois veio a vigilância doméstica secreta da CIA e a participação da CIA no golpe contra Salvador Allende no Chile – reportagens que foram execradas na época. ?Desta vez, Hersh foi longe demais?, bradou-se, mas os relatos acabaram provando serem verídicos.

Em qualquer acontecimento internacional onde sentiu cheiro de acobertamento, Hersh esteve pronto para investigar – a derrubada do avião do vôo 007 da Korean Airlines e o programa secreto de armas nucleares de Israel (no qual, segundo ele, Robert Maxwell tinha vínculos com o Mossad, o serviço de inteligência israelense). Maxwell processou-o, mas o processo morreu com ele. O Mirror Group desculpou-se publicamente com Hersh e pagou por danos.

Hersh também escreveu uma biografia nada simpática de Henry Kissinger.

Alguns de seus trabalhos funcionaram melhor que outros: um que fracassou foi um livro sobre o presidente Kennedy e seus casos amorosos. Hersh conseguiu que quatro agentes do serviço secreto de Kennedy falassem. Encontrou o nome deles depois de falar com uma lista de mil altos funcionários aposentados.

Deparou-se com o que pareceu ser um furo sobre o relacionamento de Kennedy com Marilyn Monroe, com base em cartas nas quais Kennedy prometia dar a ela centenas de milhares de dólares se mantivesse silêncio sobre o caso deles.

Acabou se descobrindo que as cartas eram falsas e ele abandonou-as – mas mesmo assim foi censurado por tê-las aceito inicialmente. No livro, insiste em que a vida privada e as obsessões pessoais de Kennedy ?afetaram os assuntos da nação e sua política externa muito mais do que se imagina?. Foi um golpe que os medalhões da política e os fãs de Kennedy não estavam preparados para deixar passar. Ele foi acusado de ?sensacionalismo barato, incauto e extremado?.

?Vê as surras que eu levo?? perguntou ele na época da publicação a um jornalista que o visitava. ?Muito disso era previsível – afinal, estou pisando em cima de um sonho.?

A princípio, o jornalismo não fazia parte dos sonhos do jovem Hersh. Ele nasceu em Chicago. Seu pai emigrara da Lituânia na década de 20 e entrara no ramo de lavagem a seco. Hersh formou-se em História pela Universidade de Chicago e depois ingressou na faculdade de direito, que detestou, embora, indubitavelmente, tenha sido nela que aguçou seu estilo de promotor público.

Claramente inadequado para ?trabalho de equipe?, como outros de caráter semelhantemente independente daquela época, partiu para o jornalismo, trabalhando em jornais locais e para agências de notícias. Chicago era a cidade para um de repórter, com organizações criminosas, policiais valentões, o prefeito Daley e grandes vultos do jornalismo como Studs Terkel e Mike Royko. Eles falavam e escreviam com um estilo moderno e Hersh rapidamente captou essa arte.

Ela deixou a Associated Press em 1967 para trabalhar como free lance.

Durante um breve período foi assessor de Eugene McCarthy e depois de My Lai foi arrebanhado pelo The New York Times. Fez a cobertura de Watergate, chegando atrasado, mas acabou acertando o passo com Woodward e Bernstein furo a furo. Woodward chama Hersh de ?tropa de choque?, aquele que entra primeiro e sempre se envolve. Encerrado o caso Watergate, Hersh voltou a ser free lance, dedicando-se à investigação da segurança nacional em todas as suas formas.

Para atuar nessa arena, você tem que se converter da noite para o dia em especialista em fissão nuclear, mísseis, serviço de informações. Hersh fez isso pelo caminho mais óbvio: pegando o telefone e consultando os especialistas. O jeito de ele telefonar é lendário – em ondas alternadas de ultraje e lisonja. Vi-o em ação quando era correspondente em Washington durante o governo Reagan porque compartilhamos o mesmo fascínio pelas falcatruas militares. Quando telefonei para ele esta semana, para saber como estava indo sua presente guerra, disse-me que acabara de acontecer uma coisa boa. Wesley Clark, o general aposentado do Comando Americano na Europa que dirigiu a guerra em Kosovo, respaldara sua reportagem sobre o ataque mal-sucedido da unidade de ataque no Afeganistão.

Contestando a versão oficial do Pentágono, Clark disse ter tido notícia de que 12 membros da unidade foram feridos, como informou Hersh, dois deles gravemente. Hersh informara que foram três.

A reação do alto escalão militar, do general Tommy Franks, comandante do Comando Central dos Estados Unidos, que inclui o Afeganistão, foi: ?Não vou classificar o relato de Hersh nem como preciso nem como impreciso.?

No caderno de qualquer repórter, isso equivale a um ?sem comentários?, o que significa que Hersh está no mínimo meio certo. Se os soldados da unidade de ataque, que desceram de pára-quedas, foram feridos na queda ou durante um tiroteio subseqüente (como indica Hersh), é uma outra história. Franks diz que nenhum foi ferido por fogo inimigo, mas tal declaração só pode ser confirmada em terra e não havia jornalistas lá. Essa ausência de jornalistas concede à propaganda americana da guerra uma nítida vantagem. ?Essa é a guerra dos sonhos dos porta-vozes do Pentágono?, disse Hersh. ?Podem dizer o que quiserem?.

Então, por que eles não são contestados com mais freqüência? Por que não existem mais reportagens como as de Hersh? ?Não sei?, diz ele. ?Depois de 11 de setembro, Washington se tornou uma cidade muito infeliz e cada vez mais apreensiva. Temos um problema estratégico muito grave. Quando eles destruíram o World Trade Center, tínhamos que ter tido a resposta certa e não conseguimos. A palavra para Washington agora é ?assustada? — é impossível não conseguir algo para uma reportagem aqui.?

O outro telefone toca e alguém bate à porta de Hersh. Combinamos nos encontrar depois da batalha. ?Sim, venha até Washington. Lembra-se daquelas festas que costumávamos fazer? Eram bem divertidas. Até mais.?

Ele desligou, exatamente como sempre faz."