Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Jornal do Brasil

ASPAS

JB 110 ANOS

"?Desprezo o poder?", copyright Jornal do Brasil, 8/04/01

"Foi a força do título Jornal do Brasil que levou o empresário Nelson Tanure a investir pela primeira vez na área de comunicação, tornando-se acionista majoritário do jornal. ?Estou certo de que o JB voltará ao antigo esplendor, recuperará o seu prestígio e será a base de uma empresa multimídia moderna e lucrativa,? diz o empresário, um baiano de 49 anos que se formou em Administração de Empresas em Salvador e cursou História e Filosofia cristãs na Universidade Columbia, em Nova Iorque.

Nelson Tanure garante não estar ligado a nenhum grupo político: ?Eu desprezo o poder?, diz ele. ?Quero ajudar na recuperação econômica de um grande jornal, e não ajudar tal ou qual grupo político.? O empresário informa que dedicará a maior parte do seu tempo nos próximos anos ao Jornal do Brasil.

Mas desde já avisa que não pretende virar um ?barão? da imprensa. ?Ao entrar na quadra dos 50 anos, chegando à maturidade, planejo ter uma vida menos agitada, mais contemplativa.?

Na entrevista a seguir, ele conta a sua trajetória empresarial e expõe os seus planos.

– Por que investir no Jornal do Brasil?

– A velocidade com que aparecem as novas tecnologias ligadas à internet e à perspectiva de mudanças na legislação brasileira na área de mídia estão abrindo no Brasil um novo campo de atuação. A chegada da banda larga, que permite a troca de dados e imagens em grande velocidade, por exemplo, é uma revolução na internet. Quanto à legislação, acredito que em breve será facilitado o investimento de empresas estrangeiras na área de comunicação. Com isso, se abrirá ainda mais o campo da multimídia, o da multiplicidade de mídias interagindo entre si. Foi tendo em vista esse panorama que criamos uma nova empresa, a Companhia Brasileira de Multimídia. Mas não basta ter uma empresa azeitada para ser bem-sucedido. É preciso contar com a tradição, com o conhecimento, com a disseminação de um nome muito forte. Não se consegue essa marca da noite para o dia. Ela pode ser obtida por meio de um ingrediente que não é comprável: o tempo. O Jornal do Brasil tem uma poderosa e mágica sabedoria que lhe permitiu atravessar o mais difícil dos obstáculos: o tempo. Não adianta ter só dinheiro. O tempo é a principal ferramenta para se criar uma grande marca. O Jornal do Brasil, aos 110 anos, é um grande nome, uma grande marca. O jornal é depositário de uma excelente tradição. Tradição de seriedade, invenção, ousadia. É em torno do JB que pretendemos construir uma companhia de multimídia.

– Existe algum projeto político nessa sua entrada na área de comunicação? Afinal, um jornal tem mais mais poder do que, digamos, uma indústria naval?

– Quem priva da minha intimidade sabe que desprezo o poder. O poder é sem dúvida a mais efêmera e traiçoeira tentação do homem. O único poder que respeito é do conhecimento e da inteligência. Hoje, na minha maturidade, estou em busca de uma vida menos agitada, mais espiritualizada. Cultivo a virtude da humildade. O poder não faz parte do meu estilo, do meu self. Não tenho nenhum vínculo com qualquer grupo político, seja de que matiz for.

– Como fica a divisão de responsabilidades no novo Jornal do Brasil?

– A família Nascimento Brito está definitivamente associada ao Jornal do Brasil. Foi ela quem construiu o jornal, e é o maior símbolo da sua tradição de excelência. José Antônio do Nascimento Brito, o presidente do Conselho Editorial, será o representante do jornal e o responsável pelos editoriais do JB. O jornalista Mário Sérgio Conti comandará a redação. As condições que ele impôs para assumir o cargo foram a independência editorial, a profissionalização da redação, a isenção do noticiário e a sua liberdade de trabalho. O meu papel será o de tornar economicamente viável esse projeto. Nós três, com nossas experiências diferentes, dialogando e aprendendo uns com os outros, reergueremos o jornal.

– Como encara o futuro do jornal?

– Ao chegar aos 110 anos, o JB dá provas de sua maturidade. Ele está sabendo se renovar, se reinventar, para poder continuar a dar a sua contribuição à sociedade brasileira. Os sofrimentos que enfrentou, as perseguições de que foi vítima são parte de sua história. Ele sobrevive porque aprendeu com o seu sofrimento, com os percalços que enfrentou. Espero que nos próximos anos ele volte a ser o segundo jornal do Rio e esteja entre os quatro maiores do Brasil. Quero que ele volte a ser um jornal inovador, o preferido da juventude, dos intelectuais, da elite política e empresarial. Estou convencido de que teremos de novo um Jornal do Brasil corajoso, influente e economicamente saudável, o jornal que participou de tantas lutas e influenciou na formação de várias gerações.

– E como fica o seu futuro pessoal nesse processo?

– Terei uma dedicação integral ao projeto. Mas é também uma dedicação temporária, no sentido de ter um prazo certo, um horizonte bem definido. Estou aqui basicamente para implantar o projeto de reconstrução do jornal e de criação e desenvolvimento da Companhia Brasileira de Multimídia. Ou seja, colocar o ovo em pé. Mesmo porque agora, com quase 50 anos, entrando na maturidade, quero ter uma vida menos agitada, mais contemplativa, em suma, quero me elevar.

– Os empregados do jornal, que viveram uma história recente de atraso de salários, têm algo a temer em relação aos seus direitos trabalhistas?

– Minha sugestão a eles é que não dêem ouvidos aos fofoqueiros, aos derrotistas e àqueles que torcem pelo fracasso do nosso projeto e pelo fechamento do Jornal do Brasil. Procurem os seus verdadeiros direitos, que a empresa os assegurará.

– E como ficam os credores da antiga empresa, a JB S/A?

– A dívida real, verdadeira, do antigo Jornal do Brasil, é relativamente proporcional ao seu patrimônio. O que ocorre é que a maior parte dessa dívida é composta de débitos fiscais e previdenciários ou a bancos, hoje sob regime de intervenção do Banco Central. Essas dívidas têm sua origem em alguns empréstimos e recolhimentos não efetuados durante o período de crise de caixa da empresa. O maior problema é que essas dívidas foram infladas de maneira estrondosa e espúria, através de autos de infração sem consistência, lavrados de maneira irresponsável, e, nos bancos, inflados com taxas de juros irresponsáveis, multas astronômicas, juros sobre multas, etc. Eu, por exemplo, sou sócio da IVI, empresa que tem uma dívida de 30 milhões com a Previdência, e ela elevou essa dívida com essa cascata de milhões e juros e outros para mais de 200 milhões. Isso ocorre com a grande maioria das empresas brasileiras. Ainda bem que o governo, num espasmo de racionalidade, criou o Refis, que é um programa sério e pode equacionar esse problema.

– Na época do fechamento do negócio, houve críticas à estrutura jurídica do contrato que criou a Companhia Brasileira de Multimídia. A nova empresa está bem montada, juridicamente?

– As críticas foram feitas por pessoas que sequer leram os contratos. Eles deram palpites sem conhecer os fatos. Pior: sem ter coragem de fazer os ataques publicamente, pois assim se saberia quais interesses eles estariam representando, alguns dos críticos se esconderam sob o manto do anonimato, contribuindo para a mediocridade brasileira. O nosso projeto foi elaborado por alguns dos maiores juristas brasileiros. É uma estrutura perfeita, à prova de qualquer eventual ação predatória administrativa ou judicial.

– Tem receio da competição da Globo?

– De maneira alguma. Há lugar de sobra no Rio de Janeiro para o Jornal do Brasil e para O Globo. Uma sociedade complexa e multifacetada comporta dois e até mais jornais, que disputem os leitores de maneira leal e honesta. A competição é condição necessária para que os jornais se aprimorem. Quem lucra com a disputa limpa entre empresas de comunicação é a sociedade, os cidadãos, que podem dispor de fontes de informação diferentes. O monopólio na imprensa prejudica todos.

– O Jornal do Brasil seguirá uma orientação política?

– O jornal, me parece, tem que defender a democracia, a livre iniciativa, os direitos humanos, o bem-estar do povo brasileiro. Esses princípios gerais orientarão o JB. Não acho que o jornal precise de uma plataforma política detalhada. Essa plataforma poderia ser confundida com a de algum partido ou grupo político. Acredito que o jornal deva ser independente em relação aos partidos e governos. Inclusive para poder criticá-los ou aplaudi-los.

– Como cidadão, como o senhor se posiciona politicamente?

– Considero-me um nacionalista. Acredito num nacionalismo moderno, numa brasilidade inteligente. Estamos assistindo a uma desnacionalização irresponsável da economia brasileira. A privatização e a abertura do mercado brasileiro foram feitas sem controle, deixando os interesses nacionais em segundo plano. Nossos empresários ficaram expostos a uma competição absolutamente desigual, que nunca tinham experimentado. Na última década, os estrangeiros trabalharam com taxas de juros, em média, dez vezes menor que as nossas. Isso sem falar na carga tributária brasileira, que é inacreditavelmente alta. Deixamos de ser um país exportador, gerador de bilhões de dólares de superávit, para viver ao sabor do que os especuladores de Wall Street pensam sobre nós.

– O senhor é contra a privatização?

– Gostaria de saber quais os grupos privados brasileiros que se tornaram multinacionais e foram para o exterior, já que o processo deveria ser uma via de mão dupla. Em compensação, muitos estrangeiros, que no fundo são grandes especuladores de outros países, vieram para o Brasil comprar estatais brasileiras. Eu me pergunto qual foi o agregado tecnológico que essas companhias trouxeram, por exemplo, no ramo das telecomunicações. Empresas européias de telecomunicação, verdadeiros mamutes estatais em seus países, agem no Brasil como bem entendem. Enquanto isso, os grupos nacionais que teriam condições tecnológicas e gerenciais para assumir as mesmas tarefas não receberam nenhuma proteção. Veja o que ocorreu na área bancária. Houve a desnacionalização de ícones brasileiros, como o Banespa, que hoje pertence a um banco espanhol. Casas bancárias foram entregues a grupos estrangeiros dos quais nunca ouvimos falar. Até banco de Xangai tem no Brasil. Ainda bem que existem homens como Lázaro Brandão, que defendem o empresariado brasileiro, este sim, verdadeiro baluarte do desenvolvimento.

– O senhor, então, defende a estatização?

– Não. Acho apenas que deve haver regras mais estritas, que protejam os interesses nacionais. O Estado deve exercer o seu poder regulador de modo eficaz, no quadro de uma política nacional de desenvolvimento bem definida. Vejo o Estado brasileiro como um ente pusilânime, repleto de gente despreparada, bacharéis em orelha de livro, sem saber para onde ir, despreparados para exercer suas responsabilidades. E a sua responsabilidade primordial é a de proporcionar o bem-estar social. Se não houver um movimento econômico social, em menos de 10 anos, toda, repito, toda atividade econômica no Brasil será de propriedade estrangeira.

– Mas o Estado não protegeu demais os empresários, acobertando a sua ineficiência?

– Não acredito nisso. Dou um depoimento pessoal. Na poucas vezes em que lidei com o Estado foi para cobrar o que ele me devia. Ou então para pedir apoio legítimo, como ocorreu na época em que atuei na indústria naval. Esse apoio foi sempre prometido, alardeado, mas nunca implementado. A experiência mostra que a maioria dos setores ou empresas que fracassaram no Brasil teve, na sua derrocada, a presença do Estado. E, ao contrário, todos os casos empresariais de sucesso têm como característica comum a ausência do Estado."

"M. F. do JB", copyright Jornal do Brasil, 8/04/01

"O que veio primeiro: M.F. ou JB? Com os nomes grafados por extenso, não há dúvida: aos 110 anos, o Jornal do Brasil está anunciando uma nova fase e seu diretor, Manoel Francisco do Nascimento Brito, se retirou aos 78 anos das funções administrativas. Mas com as siglas é diferente. Como os suplementos que se encartam em edições regulares, em mais de meio século de história do jornalismo brasileiro, elas não circularam separadamente.

Fora das páginas do JB, M.F. sequer existia. Era Dr. Brito, para os íntimos. As iniciais só valiam no cabeçalho, onde saíram diariamente durante 52 anos enquanto ele ia trocando de título – superintendente, diretor, diretor-executivo ou presidente – sem com isso mudar de posto. Às vezes, aquelas letras pontuadas, seguidas do sobrenome, também assinavam esporadicamente reportagens, onde quase sempre era audível o ronco dos editoriais. Em dezembro de 1967, por exemplo, sete anos antes da derrota dos Estados Unidos, ele trouxe de uma viagem ao Sudeste da Ásia a certeza de que ?o americano atualmente no Vietnam está consciente de que a sua luta não tem dia e hora marcados para terminar. Já se informou do óbvio: está ganhando, sabe que a ganhará, mas não ainda quando poderá ganhá-la. Porque esta vitória, que interessa a todos nós, não pode ser somente a mais imediata, apenas uma vitória militar?. A previsão falhou. Mas deixou fixado princípio de que, tal como o JB, M.F. não tem papas na língua. Discorda das unanimidades vigentes com toda a naturalidade. Tanto que, para ele, os países que não entraram no clube dos ricos ainda se chamam ?subdesenvolvidos?.

Em muita coisa as quatro letras se confundiam. O jornal e seu chefe eram bons de briga, tinham humor, funcionavam melhor nas crises de antigovernismo e eram tão bem paginados que, ao sair às ruas do Rio de Janeiro 40 anos atrás, causavam espanto pelo tamanho de sua elegância. Diante do JB, os outros jornais se sentiam feios e antiquados. E ficou na memória de quem passou pela redação daquele tempo o dia em que o diretor chegou da rua se queixado da ostensiva curiosidade que o cercava. Vinha de um almoço no Itamarati. Cruzara a pé o velho Centro da cidade, descendo a Avenida Marechal Floriano até a Rio Branco, onde ficava a antiga sede do jornal. Passara pelos sobrados que na época dominavam o varejo carioca de artigos populares e por uma delegacia que ainda expunha na calçada os batedores de carteira, para reconhecimento público. Tinha 1,89m de altura e o porte de quem nadava desde os 13 anos, lutava jiu-jítsu com o pioneiro Hélio Gracie duas vezes por semana e todas as manhãs fazia ginástica em casa com um personal trainer muito antes que o personagem figurasse na agenda da grã-finagem. Trajava um daqueles ternos de corte tão preciso que até hoje lhe permitem passar horas sentado sem afrouxar um botão e emendar o expediente com um jantar de cerimônia sem trocar roupa, sinal de boa educação e bom alfaiate. ?Claro que só podia chamar a atenção. O Sr. parece um Galaxie?, comentou o jornalista Pedro Gomes. O Galaxie era então o maior e mais luxuoso automóvel fabricado no Brasil.

A não ser pela presença ininterrupta no cabeçalho, M.F. apareceu poucas vezes no jornal que comandava. Há poucas palavras sobre as suas cinco décadas nos arquivos da casa. E até para aposentá-lo, meses atrás, gastou-se pouca tinta. Ele encerrou a carreira com uma nota de 27 linhas. Para transformá-lo em figura pública, bastava o fato de ele e o JB serem feitos à imagem e semelhança um do outro. Quando assumiu a direção, o Jornal do Brasil passava dos 58 anos de publicação contínua. Mas só com ele passou a ser conhecido pela abreviatura. Antes, faltava-lhe popularidade para tanto. O JB surgiu na era M.F., dividindo seus 110 anos em duas metades perfeitamente desiguais.

Cronologicamente, a primeira metade é a mais longa. Estréia em 1891 com um manifesto monarquista três anos depois da Proclamação da República e acaba no governo Juscelino Kubitschek. A segunda, mais curta. Começa no fim da década de 50 com a mutação gráfica que, a princípio entrincheirada na seção de esportes para não assustar os leitores, acabou tomando conta do JB inteiro. E não só dele. Sua receita caiu no gosto da concorrência e por isso essa etapa de sua história nunca terminou. Agora mesmo pode estar metamorfoseando por imitação um diário qualquer no interior do país. Antes de transformar-se, portanto, o Jornal do Brasil era muito parecido com todos os jornais brasileiros. Depois, todos os jornais brasileiros se parecem um pouco com o Jornal do Brasil.

Os 52 anos da dupla são longos, quase um reinado. Na imprensa diária, dão para mais de 19 mil manchetes. No Brasil, cobrem quatro constituições, dois regimes civis, 15 presidentes da República – ou 17 governos, contando a junta de 1969 e o bis de Fernando Henrique Cardoso no Palácio do Planalto. Vendo-os passar do alto de suas páginas, o diretor aprendeu que ?neste país os poderosos sempre acham que podem tudo, que são eternos?. Nada como a transitoriedade alheia. Em agosto de 1954, levado por Aníbal Freire, o ex-ministro do STF que dirigia o Jornal do Brasil na ocasião, M.F. pisou pela primeira vez num palácio. Tinha 32 anos, feitos naquela semana. Iam visitar Getúlio Vargas num Catete cercado de boatos por todos os lados, exatamente na véspera do suicídio do presidente. Lá, o ex-ministro entrou no gabinete. Ele ficou na ante-sala e, à falta de interlocutor melhor, puxou conversa com o sentinela: ?A situação está preta, hein?? O soldado não regateou: ?É hoje, doutor.? Foi sua estréia na política. Trinta e tantos anos depois, encarava os poderosos com olho de ex-patrão. No governo José Sarney, reconhecia na Presidência da República o antigo correspondente do Jornal do Brasil em São Luís do Maranhão. No governo Fernando Collor, tinha na Presidência um ex-estagiário na sucursal de Brasília.

Acostumou-se a ver nas autoridades precisamente o que elas querem esconder. Logo depois da posse de Collor, a ministra Zélia Cardoso de Mello, uniformizada como czarina da Economia, visitou o jornal para explicar aos editores o confisco da poupança. Conversa seriíssima, a não ser pelos minutos que o diretor da casa interrompeu a reunião para cumprimentá-la, falou muito, ouviu pouco e saiu sem uma informação econômica. Mais tarde, perguntou pelos resultados do encontro. Foi bombardeado por comentários técnicos e ofereceu aos jornalistas um fato decisivo: ?Vocês viram como ela se senta? Essa moça vai acabar se metendo num escândalo.? Cruzando as pernas, a ministra lhe revelara sem querer o futuro. Cairia por quebra de decoro com o ministro da Justiça Bernardo Cabral.

Lastreava a independência do jornal num princípio simples: ?No Brasil, as pessoas acham que podem ligar para dono de jornal pedindo para não dar uma notícia. Isso é chato, porque jornal vive de notícia.? Os métodos é que podiam ser complicados. Em 1967, o jornalista Walter Fontoura publicou na coluna Informe JB uma nota que irritou o deputado Chagas Freitas, proprietário de O Dia. Dizia que, em seu jornal, ele noticiava como seus os projetos apresentados pelo deputado Raimundo Padilha. Fontoura foi chamado ao quinto andar para uma advertência: ?Chagas é como se fosse meu irmão, Walter. Ele me telefonou, reclamando de você. E eu disse que iria demiti-lo?, confessou-lhe. O que poderia fazer o funcionário numa situação dessas? ?Nada?, explicou-lhe M.F. ?Se ele um dia perguntar, diga que foi demitido e recontratado imediatamente.?

No governo militar, sob o AI-5, o Jornal do Brasil publicou a lista de presos políticos que o Brasil trocaria pelo embaixador da Alemanha, seqüestrado no Rio de Janeiro. O diretor foi chamado à Polícia Federal. ?Essas audiências eram sempre no fim da tarde, para parecer mais sinistras?, ele conta. ?Mas a conversa, em si, até que foi amável. Mas ele queria saber quem informara o JB. Respondi que isso era segredo profissional. Nesse caso, eu teria que dormir no xadrez. Só tenho medo de rato e barata?, retruquei. Ele riu: ?É o que mais temos aqui.? Às 11 da noite, mandou-me embora. Do fundo do corredor, eu me despedi: ?Agora vou lhe contar quem me deu a informação, só para mostrar como são as coisas.? Deu o nome do ministro da Justiça.

Para quem hoje folheia sua coleção, a primeira metade da história do Jornal do Brasil dá a impressão de que passou depressa. Nascido no governo Deodoro da Fonseca, ele mudou de século sem mudar de cara. Passou por duas guerras mundiais e quatro revoluções no Brasil sem que a agitação externa deixasse marcas profundas em sua fachada. Em sua primeira página, uma coluna de notícias chamada O Dia de Hontem virou seção de classificados praticamente sem alterações de forma. O tempo tornou-o cada vez mais plácido. Com Joaquim Nabuco, era monarquista quando os republicanos chegaram ao poder. Com Rui Barbosa, civilista numa república fardada. Com Ernesto Pereira Carneiro, que ganhou do Vaticano o título de conde ajudando o Rio de Janeiro a enfrentar a gripe espanhola em 1918, tornou-se católico. Enfim, o tesoureiro José Pires do Rio, nos idos de 1930, converteu-o em ?boletim de anúncios?, o que lhe valeu a alcunha de ?jornal das cozinheiras?. Foi esse o Jornal do Brasil que há mais de 40 anos virou de cabeça para baixo na ?reforma? – reforma entre aspas por ser a mãe de todas as reformas que desde então agitam periodicamente a imprensa brasileira. Não se tratou propriamente de um projeto, mas de experiências feitas ?a duras penas e com grande relutância?, segundo o diretor. O fato é que em 1959 os classificados ainda tomavam todo o lado esquerdo de sua primeira página. E em 1963 o assassinato do presidente John Kennedy teve uma edição que não faria feio se saísse esta manhã de suas máquinas. Foi assim que o Jornal do Brasil, sexagenário, virou JB.

O novo modelo teve muitos autores e paternidade discutida. Foi gerada na redação do Jornal do Brasil, que na Avenida Rio Branco ficava dois andares abaixo da administração. ?Mas eu descia toda hora para ver o que estavam fazendo?, diz o diretor. A reforma puxou ao pedigree literário do editor-chefe Odilo Costa, filho e aos traços do escultor Amílcar de Castro. Mas uma coincidência não se discute. Ela começou assim que M.F. chegou dos Estados Unidos, depois de um curso na Universidade de Columbia para editores. Voltou disposto a fazer um produto diferente. Ou seja, igual aos americanos. Acabou dono do primeiro jornal tipicamente brasileiro.

Na época, ele se considerava aprendiz de jornalista. Vinha de outras ambições profissionais. Fizera dois anos de Engenharia, como o pai, que trabalhou no Nordeste em obras contra as secas. Depois, a Faculdade Nacional de Direito, de olho na diplomacia, como seus dois tios. Todos fugindo do comércio. Seu avô foi dono da Casa Manoel Francisco Brito & Cia., grande atacadista na Rua do Acre. Ele, antes de ser advogado, diplomou-se como piloto. Ao alistar-se no CPOR, só achou vaga na Aeronáutica. Aprendeu a voar no Brasil e, com o esforço de guerra, treinou para piloto militar nos Estados Unidos. Passou quatro anos como instrutor, levantando às cinco da manhã para servir na base do Galeão. A essa hora, esperando o transporte da Aeronáutica, só via passar pela sua porta na Praia do Flamengo o carro oficial do marechal Eurico Gaspar Dutra, fanático madrugador, a caminho do Ministério da Guerra. Em 1946, formou-se em Direito. Mas nunca perdeu as ?manias? de avião e política externa. Como diretor do Jornal do Brasil, mais de um governo tentou agradá-lo oferecendo-lhe missões diplomáticas. Em 1977, o ministro do Exército Sylvio Frota, secreto candidato à Presidência no governo Ernesto Geisel, chegou a convidá-lo para ministro das Relações Exteriores. Mas ele escapou da vida pública que, fora o Itamarati, só o tentou uma vez. No começo dos anos 60, ensaiou uma candidatura a deputado federal pelo PTB. No primeiro comício, puseram-lhe nos braços o filho de um eleitor e o menino molhou sua roupa. Ali mesmo ele desistiu da política. No fim da carreira, resumiria toda essa experiência num axioma pessoal: ?Jornal não é para fazer acordo.?

Entrou no mercado editorial por acaso. Em 1949, trabalhando como advogado no escritório de João Dunshee de Abranches, foi chamado pelo sogro para organizar a Rádio Jornal do Brasil. Tratava-se do Conde Pereira Carneiro, que havia comprado a marca quando a Primeira Guerra Mundial, com a explosão dos preços do papel, quebrou a empresa. Conta que aceitou a tarefa por honra da firma: ?Resisti durante quatro meses, alegando que não entendia nada daquilo. Mas, quando entrei, entrei para valer. Mudei a rádio de alto a baixo.? Cinco anos depois, com a morte do conde, passou a mandar no jornal. ?Não tinha experiência, mas ficava na oficina até três horas da manhã?, diz ele. Pegou ?uma circulação de seis mil exemplares por dia e, antes mesmo da reforma, ela batia em 60 mil exemplares?. Naquele ano, comprou máquinas novas, pagando à vista, e atropelou velhos dogmas administrativos da casa: ?O jornal tinha funcionado durante anos com um chefe da circulação que tinha horror a gastar papel. Acontecesse o que acontecesse, mantinha o consumo entre três e cinco toneladas por mês. Ou seja, o Jornal do Brasil não vendia mais simplesmente porque não imprimia.?

Duas décadas mais tarde, comandava o maior jornal do Rio de Janeiro, com tiragem de 150 mil exemplares nos dias úteis e 230 mil nos domingos, quando teve um derrame durante um campeonato de pesca na Venezuela. A puxar para o barco um marlin – ?de 350 quilos?, afirma -, sentiu o braço direito cair de repente. Havia perdido para sempre os movimentos desse lado do corpo. Começou em alto-mar uma luta de 22 anos com a doença. A lancha levou quatro horas para largá-lo no cais, ?no chão frio?. O socorro médico demorou a chegar e veio na forma de uma internação de seis dias num hospital público de Maracaibo. Nos oito meses seguintes, ele duelou com as seqüelas em clínicas americanas. Emendou quatro operações, perseguindo os efeitos dos coágulos pelo resto do organismo. Nas vésperas da última cirurgia, seu filho Manoel Francisco viu-o no Hospital Rusk Memorial, de Nova Iorque. Estava com 71 quilos. Isso, num homem daquela compleição, quer dizer pele e osso. Ele não esperou pela reação do filho. ?Virei uma manjuba?, anunciou-lhe, levantando o dedo mínimo da mão esquerda para reforçar a dicção emperrada. Dito isso, caiu na gargalhada.

Quarenta e oito horas depois da operação nos pulmões, ainda na UTI, pediu para o tirarem de perto de um paciente que, com queimadura generalizada, balbuciava sem parar que estava nas últimas: ?Ele está morrendo e eu não.? No quarto, aprendeu sozinho a esticar o braço até a mesa de cabeceira e catar os chocolates que as pessoas deixavam no hospital, ao visitá-lo. Desembrulhava bombons com a mão esquerda que, dali para a frente, serviria para tudo – escrever, atalhar o gesto das pessoas que, ao cumprimentá-lo, espichavam a mão para o lado paralítico, dirigir automóvel. Só ele sabe o que isso lhe custou: ?Um dia, a fisioterapeuta me chamou para um passeio. Lá fui eu por Nova Iorque, andando torto, até que ele fez sinal para um ônibus e mandou que eu subisse sozinho. Levei uns quatro minutos para vencer a escada. A bordo, duas velhinhas se levantaram para me ceder o lugar. Mas no ponto seguinte ela parou o ônibus de novo e me disse para descer. Foram mais quatro minutos com os passageiros todos esperando.?

Na alta, a fisioterapeuta americana deu-lhe um livro de ginástica facial. Vinte e dois anos depois, ele continua fazendo a série inteira de exercícios antes de dormir. Acorda às sete da manhã para duas horas regulares de fisioterapia, cinco vezes por semana. Ultimamente, anda empenhado num programa de reeducação neurológica. Em compensação, quando vai a festas, dança. Voltou ao Brasil em cadeira de rodas. Três dias depois, de pé, reassumia o Jornal do Brasil, que não era mais o mesmo. Em pouco tempo perderia a condessa Pereira Carneiro e a saúde financeira. Lamenta a morte da sogra ainda hoje: ?Era uma mulher inteligente. Nunca tivemos um desentendimento grave. Quando discordávamos em alguma coisa, dizia: ‘Faça o que quiser, mas a responsabilidade é sua.’ Jornal tem que ser assim. Onde todos mandam, ninguém manda.?

Nesses 52 anos, M.F. e o JB cresceram e adoeceram juntos, sem nunca se entregarem inteiramente às administrações profissionais convocadas para resolver seus problemas financeiros. Até nisso eles continuaram parecidos. Transformaram a velha valentia em briga diária pela sobrevivência. Com a crise, a empresa ficou atrasada em muita coisa. Mas, exatamente pelo anacronismo, manteve pelo menos um oásis no primeiro plano da imprensa brasileira: uma redação à antiga, onde os jornalistas não fazem de conta que são executivos. M.F. sempre disse que preferia jornalistas a executivos. (Marcos Sá Corrêa, diretor de Redação do Jornal do Brasil nos anos 80, é editor da revista eletrônica Notícia e Opinião (www.no.com.br))"

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