Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Jornal escrito em javanês


Lira Neto

Ombudsman de O Povo

?Vejam só, um homem que sabe javanês – que portento!?
Lima
Barreto, escritor e jornalista

 

Ao folhear o jornal, com certeza algumas vezes você já deve ter experimentado a sensação de ficar boiando, perdido em meio a um emaranhado de textos impenetráveis, difíceis de entender. Textos que parecem ter sido escritos em linguagem cifrada, alheia ao vocabulário cotidiano da maioria dos leitores.

Muitas vezes, terminamos de ler o jornal com a incômoda desconfiança de que talvez sejamos bem mais ignorantes do que até então imaginávamos. Ou de que, na verdade, aqueles textos parecem ter sido propositadamente escritos em uma língua estranha. Talvez em javanês. Um território proibido onde nós, os não-iniciados, estaríamos condenados à ignorância eterna.

Em um de seus contos mais brilhantes, o escritor Lima Barreto (1881-1922) narra as peripécias de Castelo, um falso professor de javanês, que fez fortuna às custas da ignorância alheia. Castelo, que de javanês não conhecia uma só palavra, transformou-se em “glória nacional” pelo simples fato de ser, entre nós, o único “tradutor” daquele desconhecido idioma.

Lembrei imediatamente do conto de Lima Barreto quando recebi longa e instigante carta, assinada pelo leitor Edivan Batista Carvalho, bancário e corretor de imóveis. Ele considera que a imprensa vem abdicando de seu papel fundamental: informar a sociedade. Para o leitor, “é preciso que os meios de comunicação falem mais claramente, usando termos compreensíveis à população, mostrando exemplos concretos, fazendo comparações”.

Edivan acredita que a imprensa não tem conseguido se comunicar com o público. Mais precisamente quando estão em pauta os grandes problemas nacionais ou mesmo as preocupações cotidianas do cidadão comum. Na carta, o leitor chama a atenção para o fosso aberto entre o que dizem os jornais e as verdadeiras indagações da sociedade.

“Os leitores não recebem respostas claras”, argumenta Edivan, que critica, por exemplo, o jargão tecnocrático do noticiário econômico. Uma das formas mais comuns da “síndrome de javanês” se manifestar na imprensa.

Comprou o jornal e não entendeu nada
Um dia após ter recebido a carta de Edivan Batista Carvalho, sexta-feira passada, ligou-me um outro leitor, para reclamar de questão semelhante. O leitor havia adquirido O Povo na banca mais próxima, depois de ter batido os olhos em nossa manchete daquele dia: “Como comprar a casa própria”. Após ler a matéria, que falava dos vários tipos de financiamento para se adquirir o sonhado imóvel, o leitor ficou na mesma. Além de conseguir entender bem pouco do que estava escrito, sentiu falta de informações básicas.

“Onde eu devo ir, a quem devo me dirigir, que setor devo procurar?”, indagava o leitor. “Como devo proceder para conseguir um financiamento misto, pelo banco e pela construtora, como inclusive fez um casal citado na matéria?”. “Nos casos de financiamento pela Caixa Econômica, posso ir a qualquer agência?” A matéria, que ocupava uma página inteira no caderno de Economia, não respondia às interrogações mais elementares do leitor. Para ele, parecia escrita em javanês.

A arte de falar claro
Ouvida pelo ombudsman, a editora de Economia do O Povo, Regina Ribeiro, afirmou que as lacunas específicas daquela matéria deveriam ser atribuídas aos cortes que tiveram de ser feitos, por conta da limitação de espaço na edição daquele dia. A matéria estava programada originalmente para ocupar mais de uma página. Com a redução de espaço, muitas informações teriam ficado de fora.
Ora, se escrever é a arte de cortar palavras, editar é mesmo a arte de cortar informações. Nos dois casos, o desafio consiste em selecionar o que é indispensável e suprimir, sem dó nem piedade, o que pareça supérfluo. Numa reportagem que pretenda orientar o leitor sobre questões de ordem prática, o indispensável é justamente valorizar os exemplos básicos, as comparações didáticas, a linguagem clara. Colocarmo-nos no lugar do leitor comum. Traduzir o javanês. Principalmente quando as limitações de espaço conspiram contra nós.

As razões do hermetismo
A adequação da linguagem é um dos principais pressupostos do jornalismo. As páginas dos jornais não foram feitas para abrigar os cacoetes da linguagem acadêmica, nem para dar guarida aos vícios de linguagem típicos de determinadas categorias profissionais. O jornal é feito para um número enorme e heterogêneo de leitores. E todos eles, doutores ou donas de casa, têm o direito de compreender qualquer texto, fale ele sobre política, economia ou literatura. É comum encontrarmos, principalmente em artigos assinados, textos que têm no hermetismo a sua marca registrada. O problema é quando nós, jornalistas, caímos na tentação da mesma incomunicabilidade e passamos a reproduzir – e incorporar a nosso vocabulário – o juridiquês, o economês, o politiquês, o literatês. Muitas vezes, feito o caricaturesco professor Castelo, aquele do conto de Lima Barreto, o hermetismo apenas serve para encobrir a nossa própria ignorância sobre o assunto.

“Exclusivo”?
Na edição de 19 de setembro, sábado, O Povo publicou reportagem de duas páginas, na editoria Política, sobre as 37 prefeituras cearenses que devem salários a servidores. A reportagem, que rendeu nossa manchete naquele dia, foi publicada com o selo “Exclusivo”. No entanto, já no dia 11 de setembro, o Diário do Nordeste havia falado no assunto. A matéria do DN trazia um título morno e pouco informativo (“Procuradoria do Trabalho – Relatório sobre dívidas com servidores municipais”) e era bem menos completa. No entanto, antecipava o “Exclusivo” do O Povo em mais de uma semana. O jornal confiara na fonte, que prometera exclusividade, mas esqueceu de ficar de olho no noticiário do concorrente.

Humor involuntário
Que muita aspirante a socialite faz das tripas coração para aparecer em coluna social, isso todo mundo sabe. Mas parece um pouco demais quando políticos em campanha consigam plantar ali notinhas generosas sobre suas candidaturas. Às vezes, a própria coluna deixa pistas sobre a maneira enviesada que tais notas chegam ao jornal. Foi o que aconteceu sexta-feira na coluna de Sônia Pinheiro, onde duas notas faziam propaganda política de candidatos a deputado estadual. Acima das fotos dos candidatos, lia-se o crédito “Álbum de Família”, denunciando, num rasgo de humor involuntário, a origem das esdrúxulas notinhas.

Copyright O Povo, 4/9/98.

 

O que é a ABO

Estatuto

Código de ética do Ouvidor/Ombudsman

Diretoria da ABO

Email: jcthomps@uol.com.br