Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Jornalões cariocas fizeram fuzuê e não viram a banda podre

A esta altura quase tudo já foi dito sobre os aspectos legais do “caso João Moreira Salles”. Falta analisar o modo como a mídia carioca cobriu um caso iniciado por ela mesma. Eis os fatos e a sua avaliação:

  • O Jornal do Brasil, sob nova direção, vinha apostando num jornalismo “de raça”. Abriu mão do pedigree e resolveu fazer barulho. Uma das últimas façanhas foi o acompanhamento de um marginal classe média, Mauricinho Botafogo, chefe de um bando especializado em assaltar apartamentos dos ricos.
  • Atento ao movimento do antigo rival, O Globo deixou de lado suas preocupações com O Dia – seu verdadeiro concorrente – e também subiu de tom. A informação trazida à direção da empresa de que o documentarista João Moreira Salles estava sendo chantageado pela polícia foi transformada numa enorme e espalhafatosa matéria dominical assinada pelo próprio diretor do jornal (convém acrescentar que, em sua nova fase, o JB concedeu um certo, digamos, “protagonismo” ao diretor que assumia).
  • A estridência da matéria de O Globo, como não poderia deixar de ser, mudou o foco do caso: a ilegalidade estava na ação de policiais que rastrearam as conversas telefônicas do documentarista com o seu personagem, Marcinho VP. E não no fato de um artista-jornalista (documentário é forma de reproduzir a realidade), coerente com seus princípios éticos e sociais, financiar um marginal para ajudar sua reabilitação.
  • Acrescente-se uma informação que escapou aos jornais, revistas e emissoras de TV: João Moreira Salles é também editor de livros, sócio da Companhia das Letras. Ao dar dinheiro ao traficante estava cumprindo com um dos procedimentos regulares da indústria: o advance, adiantamento de direitos autoriais.
  • Convém registrar que o início da celeuma deu-se no seio do próprio governo fluminense: o governador Anthony Garotinho (imaturo, dividido entre suas inclinações conservadoras e seus compromissos com a esquerda), comandou o coro das cassandras que condenaram o documentarista. No que foi apoiado pelo secretário de Segurança, feliz com a oportunidade de tirar a sua polícia do centro das atenções. Mas o subsecretário Luís Eduardo Soares, cientista social qualificado e consciente, colocou-se ao lado do documentarista.
  • O confronto aberto no comando do órgão máximo da segurança fluminense, magnificado pelas ambigüidades de Garotinho e pela histeria da mídia local, acabou por produzir, três semanas depois, a surpreendente acusação do subsecretário sobre a “banda podre” na cúpula policial e a conseqüente exoneração pelo pusilânime governador (num programa de TV).
  • Registre-se igualmente a posição adotada pelo JB de juntar-se aos que não aprovaram a atitude do documentarista, numa clara demonstração de que a questão não era moral ou legal mas apenas concorrencial.
  • Imperiosa uma remissão histórica: no início dos anos 90, os dois jornalões paulistas empenharam-se numa competição de baixíssimo nível da qual resultou uma degradação generalizada da imprensa diária, já que os jornalões cariocas estavam inteiramente atrelados ao desvario da paulicéia (na ocasião este Observador fez o reparo neste mesmo “Circo da Notícia”, que então se publicava na revista Imprensa).
  • Os diários paulistas trataram o caso de João Moreira Salles na sua devida proporção.
  • O desempenho mais perturbador não veio do Rio, mas de um semanário nacional hoje aparentemente empenhado em espelhar o que há de pior na imprensa brasileira, de norte a sul. A matéria de Veja (edição 1.639, págs. 28-31) é uma das peças mais insidiosas já aparecidas na chamada “imprensa de qualidade” [veja no Entre Aspas desta edição]. Já no índice está o espírito que regeu a edição da matéria: A polêmica ligação do cineasta com o traficante. E no corpo da matéria sobram expressões como “relação próxima e duradoura”, “envolvimento”, “relacionamento íntimo” etc. E foi a esta revista com suas insondáveis opções que o documentarista JMS concedeu o seu único depoimento. Nesta história toda, seu único erro.