Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Jornalismo, autópsias e badalos

José Antonio Palhano (*)

 

Reaberta a temporada de queima de arquivos nas Alagoas (as matanças que não se enquadram na categoria, como essa patrocinada pelo tal Talvane, prescindem de calendários, pobre e infeliz lugar), celebre-se o artigo do professor Rogério Cezar de Cerqueira Leite, recentemente publicado na Folha de S.Paulo (14/4). O eminente e arguto físico ali não se limita a diagnosticar a causa mortis da badalada carreira profissional do legista Badan Palhares – overdose de jactâncias, vaidades e deslumbramentos vários. Ao baixar o sarrafo sem dó nas nossas universidades, sua Unicamp em particular, ele acerta na mídia com precisão digna de um bisturi a laser.

“A universidade é uma instituição encarregada de produzir, organizar e difundir o conhecimento. Um departamento de Medicina Legal deveria se ocupar do desenvolvimento de novas técnicas nesse campo, da difusão de conhecimento (ou seja, da publicação de resultados de pesquisas) e da formação de recursos humanos em sua área. As tentações para transgressões gratificantes, nessa como em outras áreas acadêmicas, são, entretanto, muitas […]”, escreveu o físico. “A cultura universitária, com sua milenar tradição, contém elementos de correção de desvios extremos. Freqüentemente, mas nem sempre, esses elementos conseguem prevalecer. No Brasil, o método de eleição de reitores, diretores etc. é uma agravante, pois, por vezes, promove a escolha de dirigentes populistas e propicia a formação de alianças espúrias. Como conseqüência, a saudável prática de prestação de contas à sociedade degrada-se em mera propaganda personalista. No caso Badan Palhares, entretanto, todos os limites foram transgredidos. O que ele faz dificilmente pode ser chamado de pesquisa. Suas técnicas, usadas em casos de características jornalísticas, são convencionais. Por outro lado, ele se beneficia principalmente da credibilidade acadêmica da Unicamp […].”

Não se trata aqui somente de admirar a coragem do professor em promover algo como uma vivissecção do hipertrofiado ego de Badan. Picaretagem por picaretagem, tem por aí para todos os gostos. A grande tacada do seu texto é escancarar as pré-condições necessárias para que espécimes desse tipo façam o maior sucesso. Quando desqualifica o volúvel legista por limitar suas técnicas aos “casos de características jornalísticas”, o doutor Cerqueira Leite deixa bem claro a que tipo de jornalismo está se referindo.

Traduzindo, o nosso outrora popstar de IMLs sombrios e mal-assombrados chegou aonde chegou por encontrar à sua disposição uma mídia sôfrega por pautas (ou cardápios) de que ele dispunha de montão: cadáveres ilustres, crimes violentos, mistérios de folhetim. Mais: ele próprio encarnava essa aparição tão cara ao nosso subdesenvolvimento futurista, o super-herói sabidão e charmoso, diplomado, capaz não só de identificar múmias milenares como também de ressuscitá-las, conforme o ibope da hora. E dá-lhe entrevistas do mestre Badan ao estilo “professor doutor” quando da pajelança cirúrgica perpetrada no pré-defunto Tancredo Neves.

E a mídia babava, extasiada e liberta de maiores (e tolas) reflexões. Aos fatos:

Ao cabo da tanatognose do par de defuntos alagoanos autopsiado (?) por Badan, cujo laudo foi festiva e histericamente espalhado Brasil afora na conta de um documento mais definitivo que as Escrituras, o que fez a revista Veja? Publicou uma matéria de tal maneira subserviente aos encantos do barbudo legista que só faltou proibir expressamente os seus leitores de sequer pensarem numa outra possibilidade que não aquela sacramentada nos eruditos e glamourosos papiros do seu ídolo. Quando até os canaviais sabiam que PC Farias e sua companheira estavam praticamente proibidos de morrer que não de morte matada. É de morrer de rir reler, hoje, edição de tamanha sabujice.

É isso aí. Mais e mais somos uma nação medularmente epidérmica. Mulheres, por exemplo, renunciam a seus cérebros em favor das ancas. Desde que estas sejam exuberantes e oferecidas. Quanto mais nosso cotidiano for efêmero, festivo, fútil e escandaloso, melhor. Se a ostentação predominar, aí fica como o diabo gosta. Falando em PC Farias, vale a pena citar um seu antípoda, aliás o único à época do seu reinado. O advogado Motta Veiga, aquele da Petrobrás que se recusou a abastecer os aviões da Vasp na faixa, por ordem de PC, deu outro dia uma declaração que diz bem dessa obsessão.

Perguntado sobre os rumos da CPI dos bancos, alertou para sua irremediável tendência à esculhambação. Via mídia, evidentemente. E dá o exemplo: quando se noticia que um banqueiro posto sob suspeita por aquela comissão foi para Angra dos Reis no seu helicóptero, está-se noticiando tão somente que o dito cujo tem uma casa em Angra dos Reis e um helicóptero. Zero de eficiência e de resultados práticos para quem chama a si a responsabilidade de desratizar o nosso sistema financeiro. Mas fofoca capaz de fazer os Ratinhos da vida entrarem em êxtase e multiplicarem seu faturamento às custas de uma gente desgraçadamente desinformada.

(*) Médico e cronista, Campo Grande (MS)

 

Victor Gentilli

 

O jornalismo econômico brasileiro nunca economizou elogios aos vencedores do Prêmio Nobel de Economia. Eram citados, paparicados, editados, traduzidos; viraram autores da moda. Eram também sempre liberais (ou neoliberais). Há dois anos, a Academia Sueca premiou dois especuladores, autores cujos estudos centravam-se nas novas formas globais de trocas de capitais, os chamados derivativos. Os premiados tinham até seu fundo de investimento, onde aplicavam na prática sua teoria – e o dinheiro deles e dos que acreditaram neles. Quebraram. Eles e os que acreditaram neles.

Os jornais noticiaram a quebra, contaram que eles tinham faturado o Nobel, mas tudo com discrição.

Este ano, a Academia Sueca optou por dar o Prêmio Nobel de Economia a um professor e economista indiano, especialista em pobreza, fome desigualdade, essas coisas que atingem alguns países. Todos estes problemas que infestam a Índia e outras nações, como se diz mesmo?… emergentes.

Diz a mídia que a escolha de Amartya Sem foi, assim, como que para consertar o vexame da escolha do ano anterior.

A origem indiana do economista é sempre enfatizada nas poucas matérias que trataram do premiado, nos dias seguintes à indicação.

Amartya Sen é conhecido não apenas na Índia. Doutor em Cambridge, lecionou em Harvard e diversas universidades da Europa, dos Estados Unidos e da Índia. Hoje, ocupa o lugar de master no Trinity College, de Cambridge. Na Europa e nos Estados Unidos, seus trabalhos são lidos e discutidos, ele participa regularmente de encontros, congressos, seminários. O prêmio não mudou sua vida. Era e é figurinha fácil na mídia européia.

Amartya Sen não é propriamente um homem de esquerda. Mas são os homens de esquerda de cabeça aberta os principais estudiosos e leitores de sua obra.

Infelizmente, no Brasil, Amartya Sen continua um ilustre desconhecido. Prêmio Nobel, agora, não merece nem pé de página. Nenhum caderno cultural tratou o Prêmio Nobel com a consideração que merecia. Nenhuma editoria de Economia preocupou-se em apresentar suas idéias. Nenhum livro seu foi publicado.

Sintomaticamente, Sen continua ignorado no Brasil. Não há obra sua traduzida, nenhum jornal republica artigo seu, ninguém polemiza com ele. Pior do que discordar de alguém é ignorá-lo.

Amartya Sen é um pensador e tanto. Lamentavelmente, desconhecido no Brasil.

 

Djalma Luiz Benette (*)

 

A capa com informações mentirosas de um jornal de circulação regional – o Cruzeiro do Sul, de Sorocaba (SP) – virou tema de matéria jornalística em rede nacional de televisão e em outros jornais impressos do país.

Aconteceu em 2 de abril, um dia depois de o jornal ter decidido correr o risco de estabelecer um tipo diferente de relação com seus leitores, sem que deixasse de manter o princípio que rege a publicação em seus 95 anos de existência (é um dos mais antigos em circulação contínua no país) e não deixasse dúvida ao leitor sobre a confiança existente nessa relação.

As brincadeiras do Dia da Mentira, o 1º de abril, se mantêm na região onde o jornal circula, principalmente entre as crianças. A idéia de brincar com a data foi do gerente comercial do jornal, que viu ali uma possibilidade de mexer com o mercado publicitário e, com isso, alavancar mais recursos financeiros para o jornal. Ele consultou o jornalista-responsável e, então, a idéia original percorreu um tortuoso caminho até virar fato.

Ex-aluno do professor Alberto Dines, o editor lembrou-se de uma das primeiras lições do grande mestre: “Quando as idéias do Comercial começam a aparecer muito no jornal é porque alguma coisa está errada…” E essa era, evidentemente, uma sugestão do Comercial.

Restava saber se era “muito”, a ponto de beirar uma interferência que comprometesse qualidade, credibilidade e independência do jornal.

De outro lado, o editor também havia sido aluno do professor Carlos Alberto Di Franco, que ensinou: “Ganhar dinheiro com jornalismo é o primeiro ponto ético porque somente um veículo independente financeiramente pode ter posturas e atitudes que, quando necessário, desagradem interesses econômicos”.

Origem do processo

A decisão de publicar uma capa mentirosa foi calcada nesses dois aspectos, dentro de uma clara circunstância: o jornal precisa ampliar sua participação no mercado publicitário.

Dessa forma, nascia um paradoxo: mentir para falar a verdade. Ou seja, só era possível brincar com uma capa mentirosa se ela remetesse o leitor a refletir sobre o atual momento da sociedade ao longo de um processo histórico, levando o leitor a pensar nele mesmo. Como isso seria possível?

Queríamos aproveitar a Páscoa – a maior festa do calendário cristão –, que renova e confirma a crença naquele que se sacrificou para salvar a humanidade. Ora, há elemento mais rico no imaginário popular, no inconsciente coletivo, do que uma crença que evoca confirmação?

O leitor entenderia o motivo da capa mentirosa – mais que uma simples brincadeira – se ela pudesse ser explicada. Daí, então, foi tomada a decisão de mudar a estrutura do jornal: na página 2, ficaria a capa da edição verdadeira e, na página 3, um texto que fizesse o elo entre a intenção do jornal com a mentira e os valores evocados pela celebração da Páscoa.

Apesar de estruturada, nada até então garantia que a mensagem tivesse o significado esperado entre os leitores do jornal. Havia necessidade de pelo menos mais um elemento dando base à estrutura de comunicação planejada. Nasceu então a idéia de mentir somente com informações passíveis de serem verdadeiras no universo do jornal. Ou seja, tratar de informações comuns não apenas aos leitores habituais do jornal, mas de quem está inserido na mesma comunidade em que o jornal circula. A idéia de fronteira, que poderia barrar ou no mínimo dificultar a compreensão da mensagem (a inusitada forma de propor reflexão ao leitor), estava claramente eliminada com essa decisão.

A capa mentirosa

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De todas as 13 informações contidas na capa mentirosa, somente uma é impossível de se realizar. Duas extremamente difíceis e outras dez, na verdade, dependem de ações das autoridades e de um exercício de cidadania mais apurado da população.

A informação impossível é o número de páginas da edição: 237. Um jornal com número ímpar de páginas – até que a ciência mostre o contrário – é impossível.

As duas difíceis: Ronaldinho ser contratado pelo São Bento (time de Sorocaba da terceira divisão do futebol paulista) e a Academia de Hollywood ter promovido reunião extraordinária para corrigir um erro e dar a Fernanda Montenegro o Oscar de melhor atriz.

As outras 10 notícias, enfim, são sonhos que um dia – mais cedo ou mais tarde – vão virar realidade.

Só para citar dois exemplos: o Rio Sorocaba (que corta a cidade, que nasceu e se organiza a partir dele) estar totalmente despoluído e navegável em seu perímetro urbano; a Rodovia Raposo Tavares, que está no perímetro urbano da cidade, ter sido duplicada e devidamente sinalizada (luta de mais de três décadas de toda a cidade).

Repercussão

A maioria dos leitores entendeu que se tratava de uma forma diferente de abordar assuntos sérios. Até o momento do envio do jornal à impressão havia a dúvida: funcionaria a comunicação que estava sendo proposta? Vão entender?

Deu certo. O jornal recebeu cartas de leitores de Sorocaba e região, mas também de Brasília, Fortaleza, Rio de Janeiro, Curitiba, de pessoas que viram pela TV (o Jornal da Band em rede nacional veio até o Cruzeiro do Sul e fez uma reportagem; o SBT também veiculou a informação) ou nos jornais locais (a Agência Estado deu a notícia). A maioria apoiou, sem dúvida.

As autoridades, que tanto usam dos mecanismos disponíveis na sociedade para virar notícia, ficaram fora da capa mentirosa. Não houve reação deles de forma pública. Mas nos bastidores muitas autoridades sentiram-se magoadas porque não foram citadas; afinal o jornal falava de assunto sério, apesar das mentiras, e eles estavam de fora da repercussão que, de fato, mexeu com a comunidade.

Futuro

Um leitor, entre as centenas que escreveram ao jornal, após elogiar expressou sua expectativa com o 1º de abril de 2000.

Hoje, confesso, não creio que será possível dialogar como desta vez. Repetir a experiência não teria o mesmo efeito. Seria uma brincadeira sem graça, nada mais.

(*) Editor responsável do jornal Cruzeiro do Sul