Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Jornalismo decepciona periferia

ECOS DA INTERCOM

André Azevedo (*)

"O que mais choca quando se vê a forma com que jornalistas tratam a vida humana, especialmente os pobres, é quando a gente pensa: onde é que esses caras se formaram?" Essa questão foi levantada por Tânia Maria Gonçalves Palma, presidente da Federação das Associações de Bairro de Salvador (Fabs), durante o painel "Violência: do real às imagens", na manhã de 3/9, no 25? Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação da Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação (Intercom), realizado em Salvador.

Um dos problemas apresentados foi a diferença na cobertura que a imprensa dá a fatos semelhantes em contextos sociais diferentes. "A gente tem que brigar bastante com a mídia. Até o tipo de linguagem que usam, quando se referem aos pobres, vira uma coisa tão violenta quanto a que já sofremos no dia-a-dia." Ela observa que, quando um crime ocorre na classe média, a vítima tem nome, residência, profissão, amigos, "mas quando é pobre, não. A pessoa não tem identidade, não tem residência, não tem parentes. É menos gente". Quando se trata de apontar culpados, a coisa é diferente (veja entrevista abaixo).

Tânia disse que os moradores se espantam muito quando, de repente, abrem o jornal e se deparam com a foto de um conhecido do bairro, às vezes sem qualquer identificação, nas páginas policiais. "Nós não conseguimos chegar aos meios de comunicação para dizer que, nos bairros, as pessoas trabalham, vivem suas vidas, têm diversas atividades, e não são só aquilo que sai nos jornais." Para ela, a imprensa precisa aprender a cultivar ? e não estragar ? a vida das pessoas.

A ativista defende que o jornalista tem papel importante na tradução do discurso das classes sociais para que se torne possível, pelo menos, conversar. "O problema é sério, não pode ser banalizado. O jornalista pode ajudar, dizer que as pessoas têm uma vida". Para ela, matéria bem-escrita é aquela em que os leitores de jornal, quando terminam o texto, passam a se perguntar: "Caramba, o que posso fazer para ajudar?"

"A gente fica decepcionada com os profissionais da imprensa. Claro que há pessoas dedicadas, comprometidas, que se envolvem, e isso é bom." Tânia afirma que bairros pobres se ressentem muito por serem citados apenas quando acontecem crimes. "Os jornalistas têm que repensar isso, especialmente na editoria de polícia. O repórter chega lá, em cinco minutos quer terminar a matéria, e aí pede ao suspeito, às vezes um garoto, para tirar foto com a arma na mão! Isso não pode! Informação mexe com as pessoas. Temos que ter responsabilidade", cobra.

Tânia lembra que é muito clara a existência de duas Bahias: a do turista, bonita, limpa, com policiais risonhos; e a outra, onde o povo mora, sem escola, sem coleta de lixo, onde a polícia arrebenta. "Mas nós, descendentes de escravos, somos resistentes e vamos ocupando o lado bom da cidade também." Ela reafirma a importância de a imprensa relatar também o que está fora do cartão postal, lembrando sempre que esses personagens ? freqüentemente estereotipados ? são seres humanos.

A palestrante concluiu sua fala com um texto que o pensador uruguaio Eduardo Galeano apresentou no Fórum Social Mundial, onde ele convida a um mundo onde "a comida não será uma mercadoria e nem a comunicação um negócio, porque comida e comunicação serão direitos humanos".

"Nunca somos ouvidos!"

Qual a grande decepção que moradores de bairros pobres têm com a imprensa?

Tânia Palma ? Nessa perspectiva do trabalho na Intercom, que é a questão da violência, é a inexistência do direito de você responder a uma matéria que foi colocada sobre algum bairro de Salvador, envolvendo uma vítima de violência. A gente não consegue falar com os editores, o direito de resposta, na maioria das vezes, não entra nas pautas. A gente não consegue colocar nossa opinião acerca do fato acontecido. Para nós, isso é muito grave. Porque, na medida em que um jornal de grande circulação comete uma injustiça e você não consegue ter direito de resposta, aquele fato, na vida daquela pessoa, acaba carregando problemas para o resto da vida.

Vocês não conseguem contar as suas versões em grandes jornais, é isso?

T.P. ? É. E isso é terrível, a gente não consegue estabelecer contato ? inclusive com sindicatos de jornalista, com o pessoal da associação de imprensa. Nós precisamos que a população tenha também voz acerca de determinadas matérias que são colocadas, não só com relação à violência, mas com relação à invasão de terra, à derrubada de casas, e outras.

Jornais só procuram bairros pobres quanto acontece crime?

T.P. ? É o que temos visto. Quando a gente programa eventos nas comunidades, nos bairros, a gente chama a mídia e não dão nenhuma importância. Quer dizer, o fato de você produzir coisas diferentes, em lugares para onde a mídia não está com os olhos voltados, deixa muito claro o recorte de classe social. Quando é um bairro periférico, o que acontece lá de bom, que envolve a comunidade, que busca articulação e mobilização da comunidade, isso não vende para o jornal. Então é esse contato que a gente não consegue manter com a imprensa.

Como o jornalista deve trabalhar com isso?

T.P. ? Fazendo matérias sobre o que os bairros populares produzem, o que eles têm de cultura, o que têm de atividades de renda, de mobilização social, para que isso também possa ser colocado para as pessoas. Pelo fato de ocorrerem crimes envolvendo vítimas não quer dizer que ali também não se produzam outras coisas. Ali tem trabalhadores, estudantes, operários; é também um bairro que está preocupado com a questão da política em geral.

Essas matérias de jornais sobre preferências políticas procuram os bairros pobres?

T.P. ? Nunca somos ouvidos. Inclusive eu falava com uma jornalista que a gente precisava dar a nossa opinião sobre o que é que a gente acha dos candidatos. Não precisa sair só pelas universidades entrevistando os alunos, ou nos shopping centers, onde a população pobre não anda. Precisa ir aos bairros, ver se as pessoas estão preocupadas com a questão da política, da Alca, o que elas entendem por isso. Isso é jornalismo para a população.

Jornalista costuma dar sua própria opinião, em vez de dar a opinião das pessoas que foi entrevistar?

T.P. ? Percebo isso também. Parece que há um grande problema nessa coisa da construção do texto. Às vezes o jornalista faz uma leitura dele, pessoal, sobre aquele fato, e acaba colocando a impressão que ele tem sobre aquilo, e não, na verdade, o que a gente falou. Então eu tenho muita preocupação com essa coisa da entrevista. Se ele está compreendendo bem. Você está entendendo bem? Como é que é? O que entendeu que a gente quer dizer? O que a gente está querendo traduzir com isso? O que a gente quer chamar a atenção? Isso é no sentido de ele não fazer uma coisa contrária. E, nesse caso da violência, uma coisa que a gente precisa chamar a atenção é de que, às vezes, até colocam a gente em posição ruim no bairro.

Como assim?

T.P. ? Por exemplo, colocam que você sabe quem é o culpado, dão a entender que você conhece quem foi que matou. Aí, publicam seu nome, seu endereço, onde você mora. Querem que você fale sobre onde achar no bairro o lugar mais violento. Quer dizer, te colocam a todo momento numa situação muito vulnerável. E não conseguem estabelecer uma outra leitura do ocorrido, nem de como é que a gente está enfrentado e tratando daquele problema.

(*) Estudante de Jornalismo na Universidade de Uberaba