Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Jornalismo e lições de democracia

ENTREVISTA / ALMYR GAJARDONI

Luiz Egypto


Idiotas & Demagogos ? Pequeno manual de instruções da democracia, de Almyr Gajardoni, 157 pp., Ateliê Editorial, São Paulo, 2002. R$ 25


Está nas livrarias desde quarta-feira, 21/8, o livro Idiotas & Demagogos ? Pequeno manual de instruções da democracia, do jornalista Almyr Gajardoni. Como se verá na entrevista abaixo, o autor revela que esse volume "nasceu de uma implicância: há muito tempo não vejo nos meios de comunicação nenhuma notícia sobre o trabalho rotineiro do Congresso". De fato, aí está uma das pedras de toque do livro: nos seus quase 50 anos de profissão, Gajardoni notabilizou-se por ser um garimpeiro do trabalho legislativo, tendo iniciado a carreira e dela passado boa parte na cobertura do Congresso Nacional e assembléias legislativas.

Em 1960, estava em Brasília para reportar a inauguração da nova capital e ali permaneceu os dez anos seguintes, cavoucando diariamente notícias e reportagens no Congresso. Nessa condição, passou pela Folha de S.Paulo ("Folha da Manhã, quando comecei"), Correio da Manhã ("muito brevemente, antes do golpe de 1964"), Veja, Jornal do Brasil e IstoÉ. Sua última cobertura política foi a morte de Tancredo Neves e os primeiros momentos do governo José Sarney.

Fora do dia-a-dia da política, fundou e dirigiu por oito anos a revista Superinteressante, da Editora Abril; e, com Jorge Escosteguy, reformou e dirigiu, por um ano e meio, a revista semanal da Fiesp ? "um grande sucesso político, não editorial, porque não era vendida". Atualmente Gajardoni é editor da revista D.O. Leitura, da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo. Diz ele: "Quando me chamam para fazer palestras a estudantes de jornalismo, sempre dou jeito de aconselhar: jornalista tem de saber jornalismo, as outras coisas a gente pergunta para os informantes".

A seguir, sua entrevista ao Observatório. Nas telas seguintes [clique em PRÓXIMO TEXTO], o prefácio de D?Alembert Jaccoud ao livro; texto de Gajardoni para o prólogo do volume; e a nota de Alberto Dines publicada na "orelha" de Idiotas & Demagogos.

Como nasceu Idiotas & demagogos? Como e por que decidiu pela publicação do livro?

Almyr Gajardoni ? Nasceu de uma implicância minha: há muito tempo não vejo nos meios de comunicação nenhuma notícia sobre o trabalho rotineiro do Congresso. Atualmente ele aparece apenas como o palco onde se apresenta o espetáculo político da hora ? a cassação do Collor, as complicações do Jáder Barbalho e do Antônio Carlos Magalhães, a dinheirama da Roseana Sarney, a CPI disso e daquilo. Antigamente, os jornais podiam credenciar três jornalistas na Câmara: um para cobrir essa fofocagem política, um para cobrir o trabalho do plenário, um para cobrir o trabalho das comissões. Durante muito tempo minha tarefa diária foi assistir a sessão da Câmara e escrever uma matéria sobre os discursos, os debates, os projetos apresentados ou votados. Outro colega fazia o mesmo com as comissões. Todos os dias havia notícias, boas notícias saídas desses locais, e eram publicadas. O leitor sabia o que os deputados faziam diariamente. Hoje não sabe, alimenta essa idéia absurda de que são todos vagabundos. Pois posso afirmar sem medo de erro: não existe deputado vagabundo. Nenhum. O vagabundo perdeu a última eleição, ou vai perder a próxima. Então verifiquei que os próprios jornalistas, sobretudo os que nas redações cuidam da edição do noticiário, passaram a ter também essa visão distorcida, não conhecem direito o mecanismo do processo democrático representativo. E resolvi escrever sobre isso.

O livro é lançado às vésperas de eleições gerais no país, de todo polarizadas pela disputa à presidência da República. A que atribuir a desatenção (ou pouco-caso?) do eleitor com as eleições para os legislativos estaduais e federal?

A.G. ? Sem dúvida a essa informação distorcida que se fornece ao público sobre o Congresso e à falta de conhecimento sobre o funcionamento do regime. No livro eu cito três presidentes da República que não puderam cumprir seus mandatos integralmente porque não conseguiram ajustar suas idéias com as idéias predominantes no Congresso. O presidente é um subordinado da Casa legislativa, mas se faz o eleitorado acreditar que é o contrário.

Um exercício revelador, na proximidade das eleições, é perguntar ao eleitor, qualquer eleitor, em quem ele (ela) votou para deputado no pleito anterior. Impressiona o número de pessoas que não lembra do voto dado quatro anos antes. "É verdadeiramente grande o número de idiotas (no seu significado grego) dentro do eleitorado", você escreve. Como avalia o desempenho da mídia no esforço para superar essa distorção? Ajuda ou atrapalha? Avança ou empaca?

A.G. ? Não vejo a mídia fazendo esforço algum para isso. Sem dúvida ela é a principal responsável pela distorção.

"Nenhuma atividade humana é mais exposta do que a política. Provavelmente, por isso mesmo, nenhuma outra é tão desconhecida do grande público", escreve o jornalista D’Alembert Jaccoud no prefácio de Idiotas & demagogos. A cobertura da atividade parlamentar também implica encarar um trabalho "lento, demorado, chatíssimo" [você] pelos corredores das comissões, nas consultas a documentos e dossiês técnicos, em conversas com especialistas sobre assuntos à primeira vista apenas áridos. É a dedicação requerida do repórter, do editor e do veículo comprometidos com o interesse público ? em tese, pelo menos. Por que a mídia não acompanha mais atentamente o trabalho parlamentar? É uma questão de seleção editorial (opção pelos grandes nomes, grandes assuntos e grandes escândalos, que vendem) ou da baixa produtividade dos legisladores?

A.G. ? Essa pergunta dá pano para uma tese de doutoramento. Com certeza há um pouco de tudo isso, ou muito de tudo isso. Fico com o que nos diz respeito, os jornalistas. Como lembrei acima, antigamente tínhamos três repórteres credenciados na Câmara e apenas um no Senado. Cada um fazia a cobertura integral do seu setor. As sucursais em Brasília eram pequenas ? a da Folha de S.Paulo, no meu tempo, tinha sete pessoas. As do Estado de S.Paulo e do Jornal do Brasil eram pouco maiores. Fiquei dez anos fora de Brasília. Quando voltei, descobri que a sucursal do JB tinha 38 jornalistas e o diretor lutava para criar mais três vagas. Na Câmara, havia um encarregado de cobrir o seu presidente, outro a liderança da Arena, outro a liderança do MDB. Dois coleguinhas tinham a única preocupação de cobrir Ulysses Guimarães.

Fragmentou-se a apuração da informação política, mas o fato político nunca é fragmentado, nunca nasce e se realiza numa única pessoa ou num único local. Então o noticiário político se tornou uma sucessão de declarações que nada, ou pouco, têm a ver com o que realmente se articula, se projeta, se encaminha. Pior ainda, nada têm a ver com o que se pretende alcançar. Mas também não vamos exagerar a nossa culpa. Falta nesse universo político atual uma geração que foi afastada da atividade pela ditadura, muitos daqueles cassados seriam os líderes que estariam hoje dando mais brilho e relevo ao Congresso.

Deputados e senadores conservam ainda um sentimento de inferioridade em relação ao Executivo. Só isso explica o fato de que as autoridades da famigerada equipe econômica se metam em tantas trapalhadas e não sejam chamadas a se explicar, por exemplo. O Congresso permite uma presença muito direta e pessoal do presidente da República e dos seus auxiliares nas atividades legislativas. Devia haver um distanciamento maior.

O novo liberalismo confirma, a partir dos anos 1980, a ascendência do capital sobre o Estado por meio da desregulamentação e das privatizações, globalização de mercados e sistemas produtivos e, via mídia, conquista diuturna de corações e mentes como forma de garantir sua própria reprodução. A democracia está em risco? Ou a forte exclusão, de proporções planetárias, suscitada pelo modelo de livre crescimento dos "mercados" não é uma forma de ditatura?

A.G. ? Isso é um perigo, sem dúvida, mas a catástrofe depende de como se comportam os representantes do povo diante da ameaça. O prefaciador do meu livro, D?Alembert Jaccoud, acusa o FHC de tudo isso, desregulamentar, privatizar, globalizar e de formar uma maioria parlamentar para aprovar essas coisas. Não concordo com isso. O presidente não forma maioria nenhuma, ele trabalha com a maioria que o eleitorado pôs lá no Congresso. Se a maioria que o FHC encontrou no Congresso ao ser eleito a primeira vez fosse formada pelo PSDB, o PT, o PPS, o PC do B, acredito que teria feito um governo muito mais ao seu gosto pessoal, não precisaria pedir que esquecêssemos o que escreveu na universidade e a entrada do Brasil no mundo globalizado seria diferente do que tem sido. Mas a maioria era do PFL, do PMDB, do PPB.

A democracia sempre foi o melhor tipo de governo, desde os gregos antigos. A burguesia, no fim do século 18, apropriou-se dela como se fosse coisa exclusivamente sua, o que não é. Os líderes socialistas que conseguiram conquistar o poder foram nessa conversa e se recusaram a estabelecer sistemas democráticos em seus países. Como o FHC, quebraram a cara. A democracia haverá de se adaptar, como se adaptou em outras eras, para governar esse novo mundo. Por que não um governo socialista democrático mundial, com Legislativo, Executivo e Judiciário mundiais?

Quais as melhores lições aprendidas pelo repórter Almyr Gajardoni durante os anos em que cobriu o Congresso Nacional, no DF?

A.G. ? Acho que o destino me reservou um privilégio, meio amargo, é verdade: vivi metade da minha vida de repórter político na democracia, metade na ditadura. Não entendia a má vontade de colegas mais antigos ? o Carlos Castello Branco, por exemplo ? para com o senador Filinto Müller. Uma flor de pessoa, delicadíssimo, ótimo informante, sempre disponível. Eles conheceram o Filinto chefe de polícia da ditadura, eu ainda não sabia o que era uma ditadura. Agora sei, por isso tenho a mesma má vontade com Delfim Netto, Paulo Maluf, Antônio Carlos Magalhães, José Sarney, que conheci combatendo corajosamente a mais atrasada oligarquia daquele tempo, chefiada pelo Vitorino Freire, só para se tornar, ele próprio, o chefão da oligarquia. Até o Ciro Gomes entra nessa minha má vontade.

É claro que as pessoas podem trocar de opinião, mas devem provar que realmente se transformaram declarando isso publicamente e se arrependendo do antigo pecado. Algumas aparecem no meu livro fazendo essa penitência. Por isso não acredito que se possa pretender fazer um bom governo com a ajuda dessa gente. Fernando Henrique quis fazer e quebrou a cara. Ciro Gomes vai pelo mesmo caminho. Serra tentou jogar essa carga ao mar, jogou e descobriu que ela era muito maior do que ele pensava.

Aprendi ainda que é um erro imaginar que os congressistas sejam todos vagabundos, ignorantes, desonestos, mal-intencionados, submissos ao poder, farinha do mesmo saco. Que tenham só características negativas. Convivi com muitas pessoas preciosíssimas, admiráveis; conversar com elas, ouvir seus discursos, seus debates, me fez conhecer um Brasil que eu ignorava quase completamente, aprender esses mecanismos que descrevo no livro, que a democracia funciona devagar, nunca leva a soluções que satisfaçam integralmente, mas é, com certeza, a única forma viável de governar um país.

Com desculpas pela subjetividade da pergunta, como comparar a estatura moral do Congresso confrontado pela ditadura (1966, 1977 e 1969) e o atual Parlamento brasileiro, em final de mandato mas eleito e atuante em plena democracia?

A.G. ? O Congresso é uma representação da sociedade. A melhor possível. Sua estatura moral é a mesma da sociedade, em cada momento. Inútil ficar procurando fases melhores ou piores, mas o Congresso da ditadura era pior, porque não era uma boa representação da sociedade: do lado da esquerda, muitos políticos foram cassados e impedidos de disputar eleições; do lado da direita, muitos bons políticos se desinteressaram da vida pública, pois o parlamentar não tinha influência alguma, e foram cuidar da própria vida.

O que espera do seu livro? Que leitores procura?

A.G. ? Acho que todo escritor deseja vender tantos livros quanto o Paulo Coelho e ficar famoso e rico. Isso é impossível, claro, no meu caso até porque não imprimimos tantos exemplares que pudessem provocar um sucesso desse tipo. Tento me dirigir aos companheiros de jornalismo, convidando-os a pensar nesse assunto e tentar oferecer aos leitores e ouvintes uma imagem mais precisa do universo político. Claro que não é possível voltar aqueles velhos tempos e suas práticas profissionais; nem sei se as empresas jornalísticas de hoje lhes concedem poder para tomar decisões desse porte. Mas alguma coisa podemos fazer, creio eu. Precisamos fazer.