Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Jornalismo esportivo usa linguagem de guerra

Entrevista de Guilherme Filgueiras a Victor Gentilli

 

G

uilherme Filgueiras é professor de Educação Física. Durante muitos anos, batalhou em defesa do esporte e contra a violência. Hoje, aposentado como professor da Universidade Federal do Espírito Santo, é assessor do governo do Estado na área de esportes.

Guilherme Filgueiras é um atento observador dos jornais. Mais do que isso. Ele guarda, com extremo carinho, mais de 30 mil recortes e incontáveis fitas de vídeo. Coleção que começou em 1983 mas tomou forma sistemática em 1987, quando iniciou um projeto visando diminuir a violência no esporte. Sua preocupação era com as regras, com o jogador, com o árbitro, com o policiamento e também com a imprensa. Guilherme acreditava poder contar com a imprensa como uma parceira na sua luta contra a violência. Em entrevista concedida ao OBSERVATÓRIO DA IMPRENSA, o professor conta como foi se dando conta de que o jornalismo esportivo usava termos impróprios e inadequados.

Na sua leitura sistemática dos jornais, o professor Guilherme começou a observar que a linguagem do jornalismo esportivo não era uma linguagem esportiva. Era uma linguagem bélica. E começou a preparar cartolinas com recortes de matérias, que ilustravam as inúmeras palestras que fazia por todo o Espírito Santo em defesa da paz no esporte.

No final de 1992, 111 presos foram mortos na Casa de Detenção em São Paulo. Os jornais qualificaram, acertadamente, o episódio, de massacre. Na mesma semana, um time amador ganhava de 15 a 0 numa partida de futebol. No título, em oito colunas, a mesma palavra: “time massacra adversário”.

A lista de termos bélicos anotados pelo professor Guilherme é quase infindável. Jamais um atleta é goleador. Ele é artilheiro. Ninguém busca a moldura, como dizem os jornais portugueses. O gol é o alvo. Chute? É bomba, tiro, petardo.

Campeonato, jogo? Não é guerra, contenda. Campo de futebol? Não é melhor chamar de arena?

Um jogador está inseguro? Não, ele é covarde.

Um ponta e um lateral vão se enfrentar: é duelo. Um jogador é arisco, ágil? Os jornais o classificarão de matador, de instinto assassino, como atributos positivos.

O zagueiro é eficiente? É a sua crueldade.

Em 1950, lá se vai quase meio século, o Uruguai venceu o Brasil na final da Copa do Mundo, no Maracanã. Até hoje, quando Brasil e Uruguai jogam¸ há uma certeza, a palavra vingança estará no texto.

 

Até João Saldanha

Nem o saudoso João Saldanha escapou do olhar atento do professor. Uma de suas crônicas foi selecionada para uma cartolina porque dizia que um time fez “picadinho” de outro. Essa expressão é humilhante, diz Guilherme, não é esportiva.

Outros exemplos, da coleção: “duelo de vida ou morte”, “animal estraçalha em treino”. O início do campeonato brasileiro de 1992 foi qualificado, na capa da revista Placar como “20 nações em guerra”.

“Vingar o vexame”, “entrar de sola”, “botinada”, são mais exemplos de sua coleção.

O professor Guilherme chama a atenção que a linguagem bélica não está isolada:

“Nas narrações e nos textos, esta linguagem vem sempre acompanhada de emoção. E esta linguagem emocionada vem sempre acompanhada de publicidade de bebidas alcoólicas. A associação guerra, emoção e álcool só pode produzir violência. Não há nada de esportivo nisso.”

O professor mostra que, nesta Copa, além da publicidade de bebidas alcoólicas, vemos ainda um anúncio onde o jogador Roberto Carlos tem seu chute forte associado diretamente a um tiro.

Para Guilherme, o problema não será resolvido pela substituição destas expressões por outras. “O esporte já é em si um espetáculo, uma arte. No futebol temos passes, dribles, domínios de bola, jogadas geniais. É verdade – reconhece – que o futebol nasceu de uma brincadeira onde a bola era um crânio humano de um adversário derrotado. Mas hoje ele é um meio de integração, de confraternização, de paz. Veja que a Fifa tem mais membros do que a ONU.”

Guilherme ensaia uma explicação:

“Um jogador de futebol tem uma carreira curta, ao contrário do cronista esportivo, que pode ingressar com cerca de 20 anos e permanecer até os 80 ou mais. O jornalista não joga, mas viaja, hospeda-se em hotéis cinco estrelas, convive com os jogadores. Além disso, todo jornalista é também torcedor e é permanentemente estimulado a enfatizar as disputas, a criar um clima de confronto. Assim, o espetáculo esportivo é transformado num espetáculo bélico.”