Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Jornalismo-ficção vs. jornalismo-verdade

TRÓIA E IRAQUE

Humberto Crivellari (*)

No Último Segundo, Leão Serva devaneia. Procura um motivo para a Guerra Santa que Bush desfecha contra o Iraque. E acha! Mas vamos devagar, sem precipitações. Afirma Leão Serva: "Conta a história que, apaixonado, Páris, filho de Príamo, o rei de Tróia, rapta Helena, a mulher de Menelau, o rei da cidade grega de Esparta. Os gregos formam uma aliança militar (uma espécie de Otan, digamos) em que cada cidade-estado cede suas forças para compor um exército único que vai ao ataque contra Tróia". E vem mais: "Narrada na Ilíada e na Odisséia, de Homero, a guerra espraia conseqüências sobre a literatura grega e ocidental (todos os povos, depois, quiseram ter sua Ilíada, sendo a mais próxima de nós, brasileiros, Os Lusíadas, de Camões), que se manifestam no cotidiano de todos os povos atuais".

Não entendi bem o que se manifesta no cotidiano de todos os povos atuais: a guerra de Tróia, a literatura grega e ocidental, a Ilíada, a Odisséia ou os Lusíadas? Faltou ao Leão Serva contar que Camões era cego de um olho, que perdeu numa batalha… será que foi na própria Guerra de Tróia?

Aí ocorre realmente um milagre, ou descoberta sensacional, sei lá: "Quando os historiadores estudam o confronto entre os helenos (como eram chamados os gregos) e Ílion (como Tróia era chamada pelos gregos, daí o nome dado ao livro de Homero, Ilíada, que quer dizer ?de Tróia?) detectam razões mais amplas, digamos, para o conflito". Fico imaginando como se deu a confirmação histórica da lenda mitológica: será que acharam o fóssil do cavalo de Tróia em alguma pesquisa arqueológica de um haras da região?

"Tróia era uma cidade-estado poderosa, mais do que cada uma das gregas, capaz sozinha de enfrentar, como ocorreu, todos os gregos juntos." (É, enfrentar enfrentou, mas apanhou!) "Localizada na Ásia Menor (onde hoje está a Turquia), ela limitava a expansão marítima e comercial dos estados gregos. Para crescer, os gregos precisavam tirar Tróia de seu caminho". "Mas já àquela altura, a opinião pública interna de cada cidade grega e a ?internacional? (a do conjunto dos estados gregos) não estavam prontas a aceitar que um interesse comercial (necessariamente de uns poucos em cada sociedade) se impusesse como ?interesse público?". Gente sabida aquela, hein? Leiam de novo: "…não estavam prontas a aceitar que um interesse comercial (necessariamente de uns poucos em cada sociedade) se impusesse como ?interesse público?". E já naquele tempo! Quem sabe, sabe!

Na dúvida a gente vai ao Google, tecla "guerra de tróia", e já de cara lê:


"A Guerra de Tróia é um dos episódios que compõem o Ciclo Troiano, nome tradicional do complexo conjunto de lendas relacionado à conquista e destruição da cidade de Tróia por uma coalizão de povos helênicos. Discute-se, ainda, a possibilidade de a lenda ter algum fundamento histórico; de qualquer forma, tanto a tradição como os arqueólogos e historiadores situam a lendária, rica e próspera cidade de Tróia (ou Ílion) a noroeste da Ásia Menor, perto do Helesponto. Dárdano, tido por ancestral dos reis troianos, era filho de Zeus e de Electra, uma das Plêiades; reinou em toda a região, chamada de Dardânia em sua homenagem. Ganimedes era filho de Trós, que deu nome à Tróade (um outro nome da região). Ilo, irmão de Ganimedes, fundou a cidade de Tróia perto do monte Ida. Segundo a lenda, as muralhas foram construídas por Apolo e Poseidon (o mitológico, não o navio!) durante o reinado de Laomedonte, famoso pelo não-cumprimento de suas promessas e também por se dar mal em razão disso. Títono, um de seus filhos, foi amado por Eos, a aurora; a filha Hermíone participa da lenda de Heracles."

"Na época da Guerra de Tróia, a cidade estava no apogeu. Seu rei, Príamo, casado com Hécuba, tinha enorme quantidade de filhos e filhas (14, 19 ou 50, conforme a versão). Segundo a lenda, um deles, Páris, foi a causa imediata da guerra: raptou a belíssima Helena, esposa de Menelau, rei de Esparta, e foi se refugiar com ela em Tróia. Para vingar a afronta, Menelau e seus aliados atacaram a cidade e, após anos de cerco, arrasaram-na, mataram quase todos os habitantes e recuperaram a fugitiva."


Afinal, já naquele tempo se podia afirmar, como hoje se faz, que o amor é lindo. E termina nosso historiador Leão: "Por isso foi necessário o estopim moral, o rapto de Helena" (!!!!!). "Hoje, mesmo sendo o mundo mais comercial do que ético, mais coletivo do que pessoal, um caso de amor não justificaria uma guerra. Mas nem por isso o simples interesse comercial ou estratégico é assumido como motivo justo. É preciso mais, e esse ?mais?, no caso do Iraque, é atribuir a ele a imagem de país-demônio. Missão, a rigor, fácil, pois Saddam encarna de fato o papel".

"Cuma?", diria o Didi Mocó. Foi isso mesmo que todo mundo leu: "É preciso mais, e esse ?mais?, no caso do Iraque, é atribuir a ele a imagem de país-demônio".

E vem aí, portentoso e soberano, o precioso arremate, aquele que termina com um corte rápido e genial qualquer artigo ou ensaio de peso, que fornece o motivo que o Bush tinha o tempo todo e não sabia: "Missão, a rigor, fácil, pois Saddam encarna de fato o papel".

Não sairia mais barata uma baita sessão de descarrego tamanho-família, digo tamanho-país?

(*) Neurologista em Belo Horizonte