Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Jornalismo público, “publijornalismo” e cidadania

Alexandre Freire (*)

 

A

final, o que é o jornalismo? Para além do sorriso sardônico que essa pergunta provoca nos profissionais da área, pressionados pela iminência de deadlines para o fechamento de edições ou movidos pela fé que tomaram emprestada aos marqueteiros, estes praticantes de uma nova alquimia, que muda o jornalismo em um arremedo envergonhado da publicidade, a indagação continua a nos desafiar com insopitável e oportuna insistência.

A literatura sobre o assunto propõe várias respostas. Como não é o objetivo deste artigo fazer um levantamento delas, permito-me apenas tecer breves considerações sobre o conceito, antes de passar ao ponto que realmente anima este texto: o de propor uma mudança na formulação da questão inicial. Em vez de “o que é jornalismo”, talvez a pergunta ganhe novo sentido se inquirirmos sobre “o que deve ser o jornalismo”. A nova formulação leva à discussão daquilo que a literatura anglo-saxônica denomina de “public journalism“.

Voltando às primeiras considerações e tomando por base a referida literatura, é possível afirmar que as definições de jornalismo se articulam em torno da idéia de verdade. Jornalismo seria então uma prática social mediadora entre os eventos que ocorrem no nosso dia-a-dia, no mundo, e o público, que tem deles uma leitura, um entendimento, a partir dos fatos divulgados pela imprensa. Tais fatos representariam a verdade, na medida em que estabeleceriam um nexo entre as palavras e as coisas. Fato, convém lembrar, é o produto, de natureza simbólica, que surge a partir da intervenção do jornalista no mundo. É o recorte que é apresentado pela consciência do sujeito cognoscente no seu diálogo com o objeto em foco.

Livros e manuais de jornalismo, contudo, estão distantes de um consenso sobre a relação desse com o conceito de verdade. Ideologia, narrativa, discurso, interpretação, representação, manipulação, produto – são, todas, expressões interpostas entre os fenômenos que se desenrolam à nossa volta e o relato proposto pela prática jornalística. Todas são expressões que modulam o sentido da idéia de verdade, aludindo desde à parcialidade do texto jornalístico, como manifestação ideológica, até a sua completa negação, como manipulação.

Promover cidadania

Este artigo argumenta que uma definição de jornalismo não consegue avançar enquanto não trouxer para o bojo da empreitada o aspecto normativo embutido no conceito. É o que a noção de “public journalism” na tradição anglo-saxã contempla. Glasser e Craft afirmam, no trabalho citado acima, que o “jornalismo público” se funda numa premissa simples: “o propósito da mídia é promover e implementar a cidadania e não apenas descrevê-la ou criticá-la”. Num texto mais antigo, eles afirmam que esta modalidade de jornalismo (que não invalida outras formas da atividade: serviço, entretenimento, esportes, etc.) espera que a mídia reconheça seu papel de fortalecer a participação do público no debate dos temas importantes para a cidadania.

O que o “public journalism” advoga pode ser visto como a recuperação da dimensão que levou o jornalismo a desempenhar um papel importante na criação e na manutenção da esfera pública política burguesa na virada do século 17 para o século 18. Por esfera pública ou espaço público, entende-se (segundo a definição proposta pelo sociólogo alemão Jürgen Habermas, herdeiro da Escola de Frankfurt) o lugar, hoje ocupado em parte pela mídia, onde uma genuína opinião pública pode ser formada. Opinião pública, nesse contexto, não deve ser confundida com os humores do público, medidos pelas pesquisas de opinião, uma vez que aquela pressupõe o uso crítico da razão num processo dialógico. É através do debate que as alegações das partes em confronto ganham consistência em seus aspectos de verdade de fato e de correção normativa.

No outro pólo da discussão sobre a definição de jornalismo está o que o editor do suplemento Mais!, da Folha de S. Paulo, Alcino Leite Neto, caracteriza pelo neologismo de publijornalismo. Ele define o termo como sendo “um híbrido que incorpora mecanismos de publicidade, bem como do entretenimento”. Acrescenta ainda que a mutação do jornalismo em seu avatar “presume que todos os elementos morais ou transcendentes agregados ao jornalismo ao longo de sua história já se extinguiram ou estão associados a ele apenas como caricatura”.

Despido dos aspectos normativos, o jornalismo, segundo Neto, teria se reduzido à sua dimensão de produto. Daí que o “publijornalismo” só conteste ou investigue para oferecer uma mercadoria mais bem acabada, não por que alimente veleidades de influir na realidade das coisas. A mesma Folha de S. Paulo, entretanto, publica duas matérias, numa mesma edição (24 de maio de 1998), que pressupõem a influência do jornalismo: “Mídia gera euforia na luta anticâncer” (pág. 26 do primeiro caderno) e “Mídia pode alimentar ou parar guerras” (pág. 24 do primeiro caderno).

Serviço público e produto

Se persistem as dúvidas sobre os efeitos da mídia na audiência, no que diz respeito à determinação de comportamentos, as últimas eleições mostram a Europa escolhendo governantes de centro-esquerda, num momento em que a vaga neoliberal perde o fôlego, com a visível fragilidade do sistema financeiro internacional e das políticas sociais domésticas. Com a eleição do social-democrata Gerhard Fritz Schroeder para primeiro-ministro na Alemanha, as quatro principais economias da União Européia (Alemanha, França, Itália e Reino Unido) estão sob governos de centro-esquerda. O fenômeno acontece justamente em países onde a imprensa tem fortes vínculos com o conceito de “public service broadcasting”, o qual vê na concessão de rádio e televisão um serviço público que tem o compromisso de informar a comunidade de maneira consistente. Também é nesses países que a legislação é mais dura na prevenção da formação de grupos hegemônicos no controle da mídia.

Do outro lado do Atlântico, nos Estados Unidos, onde o “publijornalismo” é mais forte, a nação inteira é submetida a uma dieta diária de detalhes íntimos sobre o relacionamento sexual entre o presidente Bill Clinton e a ex-estagiária na Casa Branca Monica Lewinsky. Lá, porque a notícia é encarada como produto, é que o jornalismo hesita em tomar partido pela democracia e prefere se instalar comodamente na prateleira do supermercado virtual.

Segundo depoimento do professor de jornalismo da Universidade de Columbia (Nova York) James W. Carey, o papel da mídia no escândalo não se limita à retransmissão dos achados do inquérito que investiga o caso: “A mídia alimenta o drama. Com a multiplicação dos meios televisivos, a audiência das grandes redes não pára de diminuir. Elas buscam produtos baratos, mas que possam atrair grandes porções do público.”

Em tempos de crise, como os que vivemos, a discussão sobre o jornalismo precisa levar em conta a sua função normativa. Daí que seja oportuno o debate sobre a possibilidade da existência do jornalismo público, ainda que num ambiente dominado pelas leis de mercado. Do contrário, a sociedade continuará à mercê do jornalismo tradicional, enfraquecido pelos imperativos imediatistas do faturamento, ou de algum neologismo que afaste a imprensa da formulação de interpretações do mundo que tenham compromisso com a emancipação dos seres humanos. Do contrário, continuaremos a presenciar a corrupção da cidadania.

(*) Doutorando em jornalismo e filosofia política na University of Wales College of Cardiff, financiado pelo CNPq.