Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Jornalismo que vale (entre gargalhadas)

DIPLOMA EM XEQUE

Lúcio Flávio Pinto (*)

Em metade do livro Isto não deu no jornal (Editora do Brasil, 190 páginas), José Louzeiro é um causeur divertidíssimo. As histórias hilariantes que relembra de sua passagem pelos principais jornais cariocas, entre as décadas de 50 e 60, equivalem a uma boa conversa de botequim, a melhor que existe. Sua memória afiada e seu estilo tranqüilamente irônico emolduram situações propícias a saudáveis gargalhadas. À beira da lágrima, levantei meu brinde ao maravilhoso Louzeiro. Depois suas histórias encompridam demais e, buscando uma temática, perdem a fruição prazerosa. Ainda assim, chega-se em boa companhia ao fim do texto.

Ele deixa uma pergunta na mente de quem riu muito sem perder a atenção no enredo: o que provocou a visível diferença entre o jornalista do período áureo dos cinco principais jornais cariocas em cujas redações Louzeiro brilhou (três já extintos: Diário Carioca, Correio da Manhã e Última Hora; e dois no vai-e-vem das circunstâncias: Jornal do Brasil e Tribuna da Imprensa) e o atual? No meu ponto de vista, a regulamentação da profissão, estabelecida via decreto (e por isso imposta) pela tristemente obscura Junta Militar de 1969, que preencheu o vácuo institucional (um golpe dentro do golpe) entre o impedimento e a morte do marechal Costa e Silva e a ascensão do general Garrastazu Médici.

A junta inventou uma roda quadrada: somente pessoas formadas pelos cursos superiores de Comunicação Social poderiam exercer a profissão de jornalistas. Seria fechado, nos anos seguintes, o principal canal de drenagem de talentos para as redações: o impulso vocacional, o sortilégio das circunstâncias, o feliz acaso, o estalo. As empresas se valeram dessa vertente natural para esvaziar movimentos reivindicatórios, conquistas profissionais e independência editorial. Recrutavam colaboradores para tapar buracos e enfraquecer lideranças. Mas o contrário em extremo não atendeu às antigas aspirações e tornou a emenda muito pior do que o soneto. Não por acaso, aliás.

Voz das ruas

Escolas de Jornalismo há em todos os países ocidentais, algumas delas notáveis. Mas nenhuma precisou de reserva de mercado para se estabelecer. Metade dos jornalistas nas redações da imprensa americana (ainda nosso espelho, a nos refletir e distorcer) provêm dessas escolas. A outra metade segue o curso espontâneo da oferta e da procura. Só a nefanda junta brasileira estabeleceu a via única do canudo, não de um curso de jornalismo específico, mas de uma deletéria, inodora e insossa comunicação social. Feita mais para explicar (sem necessariamente ser entendida) do que para fazer jornalismo.

A preocupação, obviamente, era com os elementos incômodos nas redações, pessoas acostumadas a pensar com o próprio cérebro, dispostas a iniciativas pessoais, desacostumadas ao viés imposto a suas cabeças por um pensamento único (ou centralizado), anárquicas e irreverentes, indisciplinadas mas obsessivas, sujeitas a corrupção e compromissos antiéticos, mas também a rompimentos; enfim, impossíveis de enquadramento. Mal-acostumadas pelo longo (para o padrão brasileiro) período democrático, de 1946 a 1964.

Pensado no quartel, o enquadramento seria dado nas universidades, sob o controle de um big brother para valer, não esse ser minimalista a cavoucar excrementos da alma via TV escancarada pelo comercialismo. O jornalista sairia dessa lata de sardinha acadêmica ou sob viseira ou sem chão debaixo dos pés. O jornalismo bateu pendularmente entre os projetos de yuppies celebrizados pelas lentes da câmera ou aqueles outsiders desnorteados. Seus parâmetros passaram a ser releases, dossiês de papel, fontes em off, e muito pouco a visão da realidade, o contato direto com os fatos, a malícia formada e testada no testemunho, na sensibilidade para a voz das ruas, raramente capazes de sair das páginas de livros de comunicólogos e antropólogos equivalentes.

Burocracia, o pior vírus

Essa avaliação não desemboca num discurso saudosista do "bons tempos eram aqueles". Havia gente execrável naqueles tempos, como David Nasser e seu patrão, Assis Chateaubriand, e pecados mortais em instituições notáveis, como a idiossincrasia do Correio da Manhã com Lima Barreto, liquidado em vida por ter cometido a heresia de satirizar (e que sátira inesquecível) Edmundo Bittencourt, o patrão mais importante do jornalismo brasileiro até 1964.

Há prós e contras antes e agora. O problema é que o "agora" ainda é o falsete montado pela junta em 1969 e incorporado como conquista pelos profissionais de hoje, esquecidos daquela máxima lusitana de que é a competência a base sólida do estabelecimento profissional, não a confraria do canudo do curso de Comunicação Social.

Talvez só quem usufruiu os ventos da liberdade e da autonomia pode rir a bandeiras soltas (infladas ao vento do espírito) dos causos de Louzeiro. Os demais, depois de rir, podem cair na prostração que a sensação da perda, irremissível, provoca.

Só levantarão se, revigorados pelo exame realista do passado, ajudarem a construir um presente com as sementes do futuro, e não com o veneno da escuridão, incompatível com a meridiana clareza do único jornalismo que vale a pena: o independente, crítico, livre. Ainda que até a próxima trombada. Viver sempre foi perigoso para esse jornalismo. Mas essa é a única maneira de vivê-lo de fato, imunizando-se contra o pior vírus que pode atacá-lo: o da burocracia.

(*) Jornalista, editor do Jornal Pessoal, Belém (PA)