Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Jungmann, tempos verbais e sutilezas da grande mídia

MST EM BURITIS

Isabel Rebelo Roque (*)

A respeito do texto de Gilson Caroni Filho ("Do erro tático ao acerto editorial", OI de 27/3/02, remissão abaixo), acrescento um comentário sobre uma sutileza que, ao que parece, passou despercebida por muitos ? embora nem seja das mais sutis.

Ao assistir, na noite de 23 de março, pelo Jornal Nacional, à cobertura da invasão da propriedade de FHC pelas famílias do MST, causou-me estranheza ouvir, na declaração do ministro do Desenvolvimento Agrário, Raul Jungmann, que as famílias invasoras recebem entre R$ 20 mil e R$ 25 mil.

Sem querer aborrecer os leitores com "gramatiquês", julgo importante fazer algumas lucubrações (bela palavra, não?). Notem que o verbo "receber" foi conjugado no tempo presente do modo indicativo. Em qualquer velha e boa gramática, podemos ver que o tempo presente é empregado para indicar 1. ação praticada no momento em que se fala; 2. ação habitual, constante; 3. ação praticada até o momento da declaração; 4. em lugar do pretérito perfeito em narrações históricas (presente histórico). Notem, também, que, na fala do ministro, "recebem" poderia perfeitamente ser substituído por "têm recebido", pretérito perfeito composto, que significa ação habitual, que continua a ser praticada.

Ao ouvir a declaração do ministro, reagi com estupefação: "Será que ouvi direito? Recebem? Como assim? Todo mês?" Imaginemos, então, essa reação multiplicada pelos milhões de telespectadores ligados no JN. Uma rápida olhada pelos jornais no dia seguinte me tranqüilizou acerca de minhas condições auditivas: o ministro realmente havia conjugado o verbo no presente do indicativo, como é possível ver no próprio texto de Gilson Caroni Filho, ao transcrever trechos da matéria publicada em 24 de março pelo Jornal do Brasil.

Porém, tanto o Estado de S. Paulo como o Jornal da Tarde, em matérias também do dia 24 de março, traziam o seguinte texto:


"Segundo ele [o ministro Raul Jungmann], os invasores receberam do poder público entre R$ 20 mil e R$ 25 mil durante o processo de assentamento. "Não estamos diante de uma situação aguda que pudesse justificar o injustificável", disse. "A invasão foi um total desrespeito, um descaso dos sem-terra para com qualquer tipo de ordem instituída pública ou privada", completou o ministro.


Notem, mais uma vez, que o verbo, aí, aparece conjugado no pretérito perfeito: "receberam". Mas notem, também, que aqui o recurso utilizado não foi a transcrição exata, entre aspas, desse trecho específico da fala do ministro, mas o relato em terceira pessoa: o verbo, portanto, passou para o pretérito perfeito. Recurso que acabou por "mascarar" para o leitor do Estadão a surpreendente declaração do ministro. Já o restante da fala do ministro Jungmann ganha aspas e transcrição fiel.

Entre o fato e a notícia

Sutil, não? Seria interessante confrontar o número de leitores diários do Estadão com o número de telespectadores do Jornal Nacional… Mais interessante ainda seria comparar o efeito, sobre a opinião pública, entre um relato impresso na terceira pessoa e uma declaração "ao vivo e em cores": qual deles ecoaria mais profundamente na cabeça de milhões de pessoas que têm de se haver com seus salários de fome?

Quanto à cobertura pela Folha de S.Paulo, nada encontrei lá que me pudesse fornecer munição para tão interessantes digressões de cunho gramatical. Em compensação, o jornal fez amplo uso da máxima "uma imagem vale mais do que mil palavras", ao montar um "imparcial" álbum de retratos no qual se viam imagens da desordem deixada pelas famílias na propriedade do presidente e uma (sutilíssima!) foto de garrafas de "bebidas alcoólicas" (palavras da legenda) abandonadas à sombra de uma árvore.

Sutilezas verbais e fotográficas à parte, resta a questão: tais famílias de fato recebem? Tais famílias de fato receberam? A julgar pelas palavras de Frei Betto, em seu artigo para a seção Tendência, "A encruzilhada de Buritis" (Folha de S.Paulo, em 30 de março), nem uma coisa nem outra:


"Há mais de 500 famílias assentadas na região de Buritis. Querem o assentamento de mais 80 famílias que se encontram acampadas em situação de miséria. Há anos, todas elas lutam por viabilização do assentamento, moradias e créditos para a produção. A cada vez que, para se fazer ouvir, os assentados se aproximavam da fazenda presidencial, o ministro Raul Jungmann prometia atendê-los. Nunca o fez. Chegou a declarar que cada família recebera R$ 23 mil. O que não confere com os cadastros do Pronaf e do Incra."


Com as devidas escusas, volto ao gramatiquês: notem que Frei Betto escreveu que, segundo o ministro, cada família "recebera", pretérito mais-que-perfeito (a ação de receber já passou), e não "recebia", pretérito imperfeito (a ação de receber era simultânea à fala do ministro). Meu Deus, até a Frei Betto escapou a sutileza?

Por que será, então, que a fala do ministro no JN continua a zumbir em minha cabeça? Será que me livrei da consulta a um otorrinolaringologista, mas ainda assim terei de recorrer a um neurologista?

Mas para que tudo isso, afinal, se entre o fato e a notícia, o dito e o não dito, o recebido e o não recebido, tudo parece submergir num oceano de sutilezas?

(*) Editora de livros didáticos

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