Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Justiça francesa chama imprensa às falas

BOURDIEU & HOUELLEBECQ

Leneide Duarte, de Paris

Nos últimos dias, a imprensa francesa esteve duas vezes no banco dos réus. Num caso, diretamente; noutro, indiretamente. Num, questionava-se o direito de publicar um texto; noutro, o próprio conteúdo de uma entrevista.

O primeiro caso envolvia um jornalista, um texto inédito de um
intelectual recém-falecido e o direito de publicá-lo sem
autorização dos herdeiros. A Justiça fora chamada
a responder sobre o direito de uma revista de publicar um texto inédito
de Pierre Bourdieu. E o tribunal de Paris foi categórico: na quarta-feira
(11/9), o semanário Le Nouvel Observateur foi considerado
culpado de "reprodução fraudulenta" e condenado
a pagar 3.000 euros como custas de Justiça e de advogado.

No segundo caso, a primeira audiência na Justiça foi em
18/9. Não era a revista Lire que estava no banco dos réus,
mas seu entrevistado, o escritor Michel Houellebecq, por idéias
expressas numa entrevista, publicada no ano passado, por ocasião
do lançamento de seu livro Plataforma. À época,
a entrevista fez um barulho ensurdecedor, gerando imediatos protestos
de várias personalidades e organizações do mundo
muçulmano, pois nela, entre outras pérolas, o escritor desancava
todos os monoteísmos e acrescentava: "Mas a religião
mais babaca é ainda a muçulmana. Quando a gente lê
o Alcorão fica impressionado".

O escritor compareceu diante da Justiça, num processo movido pela Liga dos Direitos Humanos e por associações muçulmanas, para ser julgado no que a lei prevê como "provocação à discriminação, ao ódio ou à violência em relação a um grupo de pessoas por pertencerem a uma religião". O julgamento final será em 22 de outubro, mas a primeira audiência já mobilizou alguns intelectuais franceses a favor de Houellebecq e da "liberdade de expressão". Escritores como Philippe Sollers, Dominique Noguez e Fernando Arrabal compareceram ao tribunal como testemunhas para socorrer o escritor, autor do best seller Partículas Elementares. Provocador, o escritor soube agitar o tribunal de Paris com frases do tipo "perguntar minha opinião sobre um assunto, para quem me conhece, é um absurdo porque eu mudo de opinião com freqüência". E acrescentou que a revista deformou parcialmente sua entrevista. Depois de dizer que muda de opinião freqüentemente, quem pode saber se foi a revista que deformou suas frases ou ele mesmo que mudou de opinião?

Texto de Bourdieu

A viúva e os três filhos de Pierre Bourdieu, morto em janeiro deste ano, contestavam na Justiça o direito do Nouvel Observateur de publicar o belo texto "Pierre, par Bourdieu", em que o sociólogo conta sua vida no internato, quando tinha 15 anos. A edição de 31 de janeiro deste ano trazia a foto de Bourdieu na capa e vários artigos sobre ele. Alguns dos artigos reconheciam Bourdieu como o maior sociólogo francês e louvavam sua obra, outros eram reticentes. A revista, que nunca tivera uma relação muito cordial com o sociólogo, tem entre seus colaboradores o filósofo Didier Eribon, um dos intelectuais mais próximos de Bourdieu. Eribon tinha recebido deste, pouco antes de sua morte, um texto inédito para ler e não hesitou em dá-lo à revista. O fato tem um agravante: Bourdieu havia escrito, no alto do texto: "Não divulgar".

A questão que levantava o advogado da família ? que não pedia nenhum centavo de reparação a título de danos morais ? era "quem tem o direito de publicar os textos inéditos de um autor e sob que forma". A jurisprudência, segundo ele, mostra que o direito de divulgação é exercido pelos herdeiros. A publicação foi, pois, considerada ilegítima. Havia, ainda, um sentido mercantilista na publicação do texto: a chamada na capa como se fosse um furo, revelava um interesse em vender revista às custas de um texto inédito de um respeitadíssimo intelectual de esquerda, engajado e corajoso, um dos últimos grandes ícones da intelectualidade francesa, que nem sempre foi bem tratado pelos jornalistas do Nouvel Observateur. O advogado da família fez questão de frisar que não se tratava de reivindicar reparação financeira, mas de mostrar que Pierre Bourdieu teria se manifestado contra a publicação.

Condenada, a revista foi obrigada a publicar a decisão da Justiça no número seguinte ao julgamento, no seu sítio na internet e em mais três outros jornais. Mas o juiz fez questão de frisar que a publicação causou à família Bourdieu "um prejuízo moral que as desculpas da revista não são suficientes como reparação".

Houellebecq e o islamismo

Ao ofender a religião muçulmana, Houellebecq ofende toda a comunidade muçulmana? A revista Lire deformou suas palavras para enfatizar sua crítica ao islamismo, como alegou Houellebecq no tribunal? Em nome da liberdade de criação, tudo pode ser escrito numa obra de ficção? E, como cidadão, o escritor tem o direito de dizer tudo o que pensa, valendo-se da liberdade de expressão? Faz sentido levar um escritor a um tribunal acusando-o de "incitador ao ódio contra a comunidade muçulmana" e de disseminador de "injúrias raciais" por ter dito o que disse à revista Lire?

Essas são algumas das principais perguntas que entram no debate do affaire Houellebecq.

"Eu não manifestei jamais o menor desprezo pelos muçulmanos, mas tenho um grande desprezo pelo Islã ", afirmou o escritor no tribunal, onde um grupo de políticos chegou a distribuir um panfleto intitulado "Não à censura dos imãs". No texto, eles diziam rejeitar a censura de uma "religião estranha à tradição francesa e à civilização européia". Novo front na proclamada "guerra das civilizações"?

Inquirido se reconhece a existência de um racismo antimuçulmano, Houellebecq respondeu: "Isso não faz nenhum sentido".

"A liberdade de expressão termina onde ela pode fazer mal. Considero que minha comunidade foi humilhada e minha religião insultada. Peço justiça", declarou o reitor da mesquita de Paris. A procuradora Béatrice Angelleli replicou: "Não se pode dizer que quando se exprime uma opinião sobre o Islã isso implique um ataque à comunidade muçulmana".

IMPRENSA AFEGÃ


L.D.

Um novo jornal semanal acaba de nascer no Afeganistão, com o apoio dos franceses. É Les Nouvelles de Kaboul, cujo primeiro número saiu há uma semana com artigos de Jacques Chirac, Dominique de Villepin, ministro das Relações Exteriores, do presidente Hamid Karzaï, do ex-ministro Bernard Kouchner e do jornalista Alexandre Adler.

Um dos responsáveis pelo novo jornal é o filósofo francês Bernard-Henri Lévy, que garante parte do suporte financeiro ao veículo por meio da Fundação André-Lévy. Com uma tiragem inicial de apenas mil exemplares, o novo jornal custa 8 mil afeganis, o equivalente a 0,20 euros ? ou seja, o preço de quatro pãezinhos.

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