Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

L. F. Inveríssimo

 

Eduardo Martinez (*)

Dizem que a esquerda só se une na cadeia. Às vezes, a cadeia pode ser uma grande rede de mídia, e a união da esquerda, com as meias verdades que meio explicam, meio informam, meio omitem e satisfazem por inteiro a liberdade de a imprensa pautar a sociedade. Segundo os interesses de seus sócios e patrocinadores, majoritários, e o suposto interesse público, microscópico, a mídia vai levando as coisas em virtual equilíbrio. Até aí tudo bem. A gente já abriu, fechou e reabriu essa página.

Quando um mestre como Luis Fernando Verissimo chama de burrice, inocência e ingenuidade perigosa, na Zero Hora (26/7/99), o que definiu como assédio à sede da RBS pelos participantes da Marcha dos Sem Terra, continua tudo bem. A gente já rasgou essa página, fez um aviãozinho de papel e jogou o passado no Rio da Prata.

O que surpreende é a falta das outras partes da verdade, por exemplo: quando a RBS assedia os movimentos sociais legítimos e intimida a esquerda. Quando acusa o MST e uma fundação ligada a ele de ser escola de guerrilha através de um histérico-comunicador – a repetição das sílabas iguais é intencional – e omite da opinião pública a condenação, pela Justiça, do caluniador. Ou será que a informação é inveríssima?

Me faz lembrar a história da sopa de pedra. Um homem faminto bate à porta de velha senhora rica. Ela atende. Ele pede comida. Ela diz não. Ele, então, pede para cozinhar uma sopa de pedra. Ela se espanta. Curiosa, não caridosa, atende o mendigo. Ele pede panela, colher e água. Excitada, ela cede. Ele põe a pedra na panela e começa a cozinhar – sopa e senhora – em fogo brando. Ela pergunta se fica boa assim só com água e pedra. Ele responde que fica ótima mas ficaria melhor com sal e azeite. Ela satisfaz a curiosidade, não a necessidade dele, e questiona se ficaria boa. Ele diz que ficaria melhor com carne. Ela deu. Carne, batatas, ovos, massa, tempero verde, queijo ralado, rádios, tevês, estatais, blocos parlamentares no Congresso, ministérios e franqueou a cozinha, o quarto, a sala e a chave do Banco Central. No final, ele a convidou para provar a enigmática sopa. Ela aceitou depois de ter posto à mesa baixelas de juros acompanhadas de altas doses de cotação do dólar, pratos de porcelana com gravuras em relevo da Casa Branca e oferecido o amargo caviar do exílio como entrada escancarada na intimidade da República. Ele, então, retirou a pedra da panela com o cassetete, digo, a colher, guardou numa gaveta na esquina da Avenida Ipiranga com a Erico Verissimo para jogar nos janelões do Palácio Piratini e ambos consumiram um ao outro entre privatizações de telefonia íntima e traições com o Ricardão espanhol: a Telefônica. Para fazer a digestão resolveram dar uma esticadinha nas canelas de alguns sem-terra no Paraná, ele ao abrigo da mídia bahiana, ela nua com as estrias institucionais à mostra provocando a tiazinha: – eu sou você amanhã nas Caras de Bundas.

A velha é a República. O papel de mendigo é representado pelos meias, pontas e laterais esquerdos e direitos, centro-médios e avantes em quaisquer esquemas táticos reinados ou reinantes, dentro e fora de campo, profissionais na privatização do gol contra e amadores na estatização da defesa exposta às bolas nas costas de duzentos milhões de frangueiros involuntários da pátria.

Parece que existe um imposto invisível rondando a lucidez nacional, isento de responsabilidade com a história contemporânea, cobrado pelo quarto – onde as coisas acontecem – poder, impondo à palavra um desconto de 50%, pelo menos, sobre a circulação da verdade bruta. Assim não há liquidez que garanta boa produtividade na próxima safra de grãos, ou melhor, cidadãos, neste caso. A diferença entre os dois é que os vegetais são considerados em toneladas e os humanos são simplesmente desconsiderados pelas estatísticas oficiais. A não ser que resolvam atravessar o Dilúvio só para dizer que a RBS mente. O que, convenhamos, não acontece todo dia.

Não conheço todos os lados do que ocorreu em Porto Alegre. Mas um só não basta para ser Verissimo. Tem o lado da Ipiranga e o daquela travessa atrás da sede da Zero Hora. Além disso, tem o lado de cima, o lá de baixo, o lado de fora e o lá de dentro. De cada um destes pontos de vista a verdade é vista de um jeito. Para uns mostra a cara. Para outros, mostra a bunda. O que não é mostrado pode se tornar o mais eloqüente discurso contra ou a favor de uma causa. Ou da cauda da causa. Depende da parte que se vê, da que só pode ser imaginada e da que sobra na panela. A sopa de pedra, na verdade, não leva pedra. É só pretexto para encher a barriga com a curiosidade e a boa fé pública. Se a verdade em todas as dimensões é arquivo protegido, quem tem a senha e não abre a porta aos que vêm tropeçando nas pedras drummondíacas espalhadas pelo caminho escolhe a ideologia que pratica. Ainda que seja refém inocente da ingenuidade perigosa. Mais conhecida como burrice.

Desculpe, sei que não sou o dono da verdade. Sou apenas um acionista minoritário e quero minha cópia, ou minha culpa, do balanço patrimonial. Ou peço encarecidamente. Ou sugiro humildemente. Ou, ainda, envio ofício ao Observatório da Imprensa reclamando – no bom sentido – a falta do verbo faminto de sopa sem pedras e danos ao organismo.

(*) Jornalista de Bagé, RS