Wednesday, 25 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Lampião e a construção do mito

IMPRENSA & CANGAÇO

Leneide Duarte, de Paris


Lampião, vies et morts d?un bandit brésilien, de Élise Grunspan-Jasmin, Le Monde/PUF, 292 pp, 22 euros

A francesa Élise Grunspan-Jasmin chegou ao Recife em 1991 e, até então, nunca ouvira falar de Lampião. Mas logo tomou conhecimento desse personagem quase onipresente na vida do Nordeste brasileiro, tão construído e mitificado com o passar do tempo que a legenda se mistura com a realidade no imaginário popular. Livros de cordel, filmes, músicas, bonecos de barro, todo o universo do cangaço e dos cangaceiros começou a invadir o cotidiano da jovem historiadora francesa, formada em história da arte, com especialização em fotografia.

Impressionada com a força do mito, logo Élise decidiu iniciar uma pesquisa sobre Lampião. Anos depois, em 1999, apresentava sua tese de doutorado em História, na Universidade de Paris IV, com o título "Lampião, seigneur du sertão: vers 1897-1938".

O trabalho foi premiado com o "Prix Le Monde de la recherche universitaire" e publicado no fim do ano passado pelo jornal Le Monde, em edição conjunta com as Presses Universitaires de France, transformando-se no livro Lampião, vies et morts d?un bandit brésilien. Um título que explica ao público francês quem é o tal "senhor do sertão" da tese.

Lampião não é uma referência para o público francês e a palavra "sertão" também não funcionaria no título de um livro. Por isso, Élise cedeu à proposta de chamar Lampião de bandido brasileiro, o que parece à primeira vista redutor para quem conhece de perto as contradições de um personagem complexo, que se tornou um "fora da lei" para cobrar justiça para seu pai injustiçado.

Espetáculo da vida

Em um dos capítulos do primoroso texto sobre o "senhor do sertão", Élise dedicou-se a explicar como a imagem de Lampião foi construída pela imprensa que, ao mesmo tempo que atacava o banditismo e seus horrores, ajudava a criar o mito do herói invencível, de corpo fechado, que se evaporava quando chegavam as forças da lei. De bandido a herói popular foi um pulo, como lembra o jornalista Ignacio Ramonet, diretor do Le Monde Diplomatique, autor da apresentação do livro. Escreve ele:


"O itinerário de Lampião ?bandido brasileiro? é o de um revoltado social que se torna herói popular. Um revoltado incapaz, por falta de cultura, de teorizar sua própria prática de delinqüente e de propor uma leitura política para ela. Mas um rebelde que se insurge concretamente, de armas na mão, contra a hierarquia do poder no sertão, contra a justiça de classe, contra a ordem dos ?coronéis?, contra uma sociedade colonial, e que, na sua escala, opta por uma contra-sociedade, a do cangaço".


Em suma: com um pouco de teoria Lampião poderia ser o que não foi porque não tinha condições para elaborar um conteúdo político para seu percurso. Mas tinha um agudo senso de marketing e foi, com alguns jornalistas que o entrevistaram, também responsável pela construção do mito. "Havia um prazer em Lampião em posar para fotografias. Existe uma aparente contradição entre sua clandestinidade e a enorme quantidade de fotos que foram feitas dele e de seu grupo, entre 1926 e 1938. Essa contradição é apenas aparente pois havia uma vaidade em Lampião, um enorme prazer em se preparar para fotos. Há aí uma dimensão do desafio e a literatura de cordel mostra bem isso", assinala Élise. Segundo ela, deixar-se fotografar é uma forma de conjurar a morte; há uma conservação simbólica do grupo, que tem relação com o mito do corpo fechado que acompanhava Lampião, cangaceiro desde 1922.

A exposição de Lampião e de seu grupo na imprensa começou, na realidade, em 1926 e durou até sua morte, em 1938. A pesquisa incluiu jornais do Rio, de Pernambuco e do Ceará para entender como um personagem é construído através da imprensa e como a imagem e o texto estabelecem uma dinâmica poderosa. Antes de 1926, os artigos na imprensa eram factuais, davam contas das cidades atacadas, das pilhagens levadas a cabo pelo grupo de cangaceiros. A partir de 1926 começa uma narrativa do espetáculo de sua vida, para o qual os jornalistas contribuem; os folhetos de cordel descobrem o personagem e começa a legenda.

Cenas preciosas

Para a autora, Lampião passou de indivíduo a personagem graças à mídia impressa dos anos 30. O cangaceiro fez uso de um senso inato de marketing para se comunicar com o mundo exterior, manipulando jornais e jornalistas na construção de seu mito. Para os jornalistas, descrever um personagem temível, aparentemente indescritível, pode ter a função de exorcismo: descrever serve para se tranqüilizar, apropriar-se do objeto temido para dominar o medo.

E o próprio Lampião gostava de se ver nos jornais. Várias pessoas servem de intermediários para entrevistas com o cangaceiro, que se preocupava com os comentários de jornalistas sobre ele e se deixou fotografar por Benjamin Abrahão, em 1936, lendo matérias que falavam dele.

Os jornalistas não deixam de ressaltar a imagem de um grupo de arrivistas amantes do luxo e vestidos ricamente. Numa matéria de 14 de julho de 1936, o jornalista Antônio Napoleão, editor do jornal sertanejo O amigo do matuto, descreve uma horda de bandidos fascinados pelo luxo e pela riqueza.

Um dos artigos publicado no jornal Diário de Pernambuco, de 30 de maio de 1935, assinala que até os cachorros de Lampião não escapavam ao gosto do luxo que reinava no grupo: "Dourado", o cachorro do cangaceiro, que será morto depois por uma "força volante", usava um "precioso colar de ouro e prata".

A "moda cangaço" ou "cangaceiro" também foi divulgada e sedimentada pelas fotos. Num artigo do Diário de Pernambuco (6 de dezembro de 1935), o jornalista ressalta que "as ?forças da ordem? que vinham de Recife utilizavam sandálias, calças e um chapéu do tipo Lampião". Em outra matéria do mesmo jornal (12 de novembro de 1936), o jornalista descreve a "força volante" de "Mimosa vestida à moda de Lampião".

Numerosos artigos de jornal insistem em descrever os óculos que o cangaceiro usava: alguns falam de coqueteria, para esconder seu olho doente (ele era cego e tinha um olho de vidro). Outros atribuem os óculos a uma necessidade de melhorar a visão e atenuar sua fotofobia. O Povo, de Fortaleza, descreve na edição de 5 de agosto de 1928 os óculos "de lentes escuras, em armação de ouro e tartaruga, usados para esconder uma doença que atingiu a córnea do olho direito".

Pensando em controlar sua imagem mais de perto, Lampião permitiu, em 1936, ao cinegrafista e fotógrafo Benjamin Abrahão fazer fotos e um filme que foi intitulado Lampião, o rei do cangaço. O Diário de Pernambuco publicou em primeira mão um depoimento de Abrahão sobre o filme e as condições em que foi rodado. A revista O Cruzeiro, de 27 de março de 1937, deu a notícia do filme como um furo de Benjamin Abrahão. Toda a imprensa falou do filme rodado no sertão, mostrando a vida cotidiana dos cangaceiros.

Abandonado em um depósito úmido até 1957, o filme foi quase totalmente perdido. Dele restam 10 minutos com cenas de Lampião dando ordens a seus homens, falando a um público virtual, costurando numa máquina de costura e dirigindo uma missa, rodeado de seus cangaceiros. Perderam-se cenas preciosas em que o cangaceiro era penteado por Maria Bonita, lia um livro de Edgar Wallace, acariciava seus dois cachorros, entre outras do grupo rindo ou dançando. Mas para as autoridades da época, o bandido midiático e seu cineasta eram igualmente perigosos. Benjamin Abrahão foi assassinado em maio de 1938 e Lampião foi morto em julho do mesmo ano.

A autora observa que o poder do Estado tinha todo interesse em que o filme desaparecesse num momento em que operações de propaganda do governo Getúlio Vargas apresentavam os cangaceiros como bandidos abjetos, sistematicamente violentos, cruéis, inimigos da sociedade e da civilização.