Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Laura Mattos e Cláudia Croitor

MULHERES APAIXONADAS

"Estética da encrenca", copyright Folha de S. Paulo, 3/08/03

"Não basta estar nas revistas de fofoca, nos programas de besteirol vespertinos da TV e ser assunto no café da manhã, almoço e jantar dos telespectadores. Novela de sucesso que se preze vira tema de discussão na prefeitura, no Congresso, no governo, na igreja.

A atual novela das oito, ?Mulheres Apaixonadas?, é um marco na ?estética da polêmica?. Desta vez, o autor, Manoel Carlos, polêmico de longa data, não perdeu a chance de plantar a semente da repercussão, por mais coadjuvante que pudesse ser o personagem.

Exemplo claro é a família de Carlão (Marcos Caruso). Fora do núcleo central, a casa vive num eterno barulho. O filho, virgem, já falou sobre masturbação. A filha maltrata os avós, que têm dúvida se devem ou nãatilde;o morar num asilo. Já apanhou do pai de cinta.

E isso não é nada perto do casal teen de lésbicas, do padre apaixonado por uma socialite, do marido espancador, da professora que quer namorar um aluno menor…

Tanto assunto transbordou o simples bate-papo de telespectador. Por um lado, o Ministério Público reclassificou a novela para as 21h e a Prefeitura do Rio dificultou a gravação de uma cena de morte por bala perdida. Por outro, gerou no Congresso discussão sobre direitos dos idosos e ampliou o número de mulheres em grupos anônimos de ajuda.

E, no Ibope, o resultado não poderia ser diferente: na semana passada, ?Mulheres? bateu recorde, com 55 pontos de média (mais de 2,6 milhões de domicílios só na Grande SP). Manoel Carlos, 70, não entrou ontem nessa escola. Sua primeira ?aula? foi como colaborador de Gilberto Braga, em ?Água Viva? (1980). A novela, estréia dele em horário nobre, teve topless, um escândalo na época.

Em ?Laços de Família?, o autor também foi ?rei? da notícia. A Justiça proibiu a participação de menores, a igreja não liberou paróquias para a cena de um casamento em que a noiva estava grávida, e a novela ganhou prêmio por abordar a doação de medula. Batizadas de merchandising social, as ações ?instrutivas? agradam a audiência. A prevenção ao câncer de mama, tratada em ?Mulheres?, já foi abordada em outra de Manoel Carlos, ?História de Amor? (96), gerando procura por exames preventivos.

Para o autor, as polêmicas são necessárias ao sucesso e sustentam a longa duração das novelas. ?São mais de 200 capítulos. Se considerarmos que cada capítulo tem um mínimo de 25 cenas, serão 5.000 a serem criadas.?

Ele diz que, ao elaborar a história, tem idéia da repercussão que causará. ?Procuro pensar em tudo, já que uma novela precisa de muitos ingredientes para decolar. Uma boa história exige uma pitada de vários condimentos.?

Num ramo diferente da ?estética da encrenca? está Carlos Lombardi, de ?Kubanacan?. A atual novela das sete está na mira do Ministério da Justiça, que vê excesso de violência e sexo na história. Problema semelhante teve a trama anterior do autor, ?Uga Uga?, exibida na mesma época de ?Laços?. A Globo afirma que as novelas são adequadas ao horário. E Lombardi, que não cria ?polêmica alguma junto ao público. Quem cria é a mídia?. E a fórmula dá certo: as duas novelas são sucesso de ibope. ?Kubanacan? bateu 40 pontos de média nacional.

A ?escola da polêmica? já mexeu com eleições e até com a lei do divórcio. Em 1978, a questão ?Quem matou Salomão Ayala??, de ?O Astro?, ?parou? o país. Após o fim da trama, Carlos Drummond de Andrade escreveu: ?Agora que ?O Astro? acabou vamos cuidar da vida, que o Brasil está lá fora esperando?. Vamos?"

 


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"?A TV deve fornecer de tudo, como uma padaria?", copyright Folha de S. Paulo, 3/08/03

"Manoel Carlos não esconde: gosta de criar polêmica. ?É o que faz a novela ultrapassar seu horário de exibição, transbordando para o dia seguinte, com comentários nas ruas?, diz o autor de ?Mulheres Apaixonadas?.

Se dependesse dele, o primeiro beijo lésbico em uma novela iria ao ar em sua trama, entre as adolescentes Clara e Rafaela. E o autor admite que, se fosse ministro, não liberaria sua novela para antes das 21h (há cerca de um mês, ?Mulheres?, antes liberada para as 20h, foi reclassificada para as 21h). Leia trechos da entrevista que ele concedeu à Folha.

Folha – Se a história do Brasil atual fosse uma novela, seria das seis, sete ou oito? Com qual título?

Manoel Carlos – Seria um mix das três, mais ?Malhação?, das 17h. Isso pela necessidade de atingir a todas as faixas etárias, para que todos tenham um retrato das transformações pelas quais este país está passando e pela esperança de que ele alcance seus ideais.

Folha – Se o sr. fosse ministro da Justiça, ?Mulheres Apaixonadas? teria qual classificação?

Manoel Carlos – A classificação que tem: 21h. Sempre batalhei para que não entrasse antes desse horário, desde ?Laços de Família?. Não vejo impropriedade para o horário anterior, 20h50, mas um pouco adiante é ainda mais adequado e melhor para a audiência.

Folha – TV deve educar, entreter, informar, tudo isso ou nada disso?

Manoel Carlos – A TV é um veículo democrático. Ali está uma grade de programas à disposição de quem ligar o aparelho: num casarão ou numa choupana. A TV está obrigada a fornecer de tudo, como uma boa padaria: do pãozinho ao brioche. Informar e entreter com responsabilidade. E bem informar e entreter com bom nível é educar. Acima de tudo, o que a TV não deve fazer é deseducar, informando errado, com parcialidade e distorção.

Folha – Pela primeira vez, um casal de lésbicas ganha simpatia do público. Quando o sr. acredita que virá o beijo gay em horário nobre?

Manoel Carlos – Gostaria que esse beijo se realizasse na minha novela, com Clara e Rafaela, mas penso que ainda seja prematuro. De qualquer modo, tem sido gratificante verificar a aceitação às meninas, que são personagens positivos, sinceros. Tenho muito cuidado ao enfocar o assunto em cada cena, porque meu interesse único é revelar que existe dignidade e beleza em todas as opções sexuais, e não afrontar as pessoas que pensam diferente de mim.

Folha – Reescreveria algum capítulo que já foi ao ar? Por quê?

Manoel Carlos – É comum eu assistir e não gostar do que escrevi em determinada cena. Ou porque o texto ficou duro, pouco coloquial, ou porque não fui suficientemente claro ao expressar o que eu queria. Com toda certeza, reescreveria muitas cenas.

Folha – Mulheres desequilibradas: Dóris, Heloísa, Raquel, Marina, Santana. Homens desequilibrados: Marcos. Não é um desequilíbrio?

Manoel Carlos – O nome ?Mulheres Apaixonadas? aponta para a tentativa de criar um painel de mulheres. E, entre as mulheres, pinçar as que apresentam um comportamento atípico, como o do ciúme doentio, o alcoolismo etc. Em meio a isso, destaquei a normalidade de várias personagens. E mostro que o casal formado por Clara e Rafaela é um dos mais equilibrados da novela. Mas já recebi sugestões para fazer ?Homens Apaixonados?, em que as mulheres seriam coadjuvantes."

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"Autor diz que ficou surpreso com a repercussão do tiro", copyright Folha de S. Paulo, 3/08/03

"Só quem passou longe de jornais, revistas e programas de fofoca no último mês não ouviu falar da polêmica da bala perdida em ?Mulheres Apaixonadas?. Mesmo sem ter sido sequer mencionada na novela, a história já corre entre os telespectadores e foi parar na Prefeitura do Rio.

O tiro irá matar a personagem Fernanda (Vanessa Gerbelli) numa rua do Leblon (zona sul do Rio), provavelmente no capítulo da próxima sexta. Ao ficar sabendo da cena -que foi divulgada com antecedência, como sempre ocorre nas histórias de Manoel Carlos-, a Associação Brasileira da Indústria Hoteleira e o Sindicato de Hotéis, Restaurantes e Bares do Rio protestou, dizendo que a novela afastaria os turistas.

O subprefeito da zona sul, Cláudio Versiani, negou autorização para que a Globo gravasse a cena, alegando que atrapalharia o trânsito. O prefeito Cesar Maia, que estava em Barcelona, teve de entrar na confusão e acabou liberando a gravação. ?A intervenção do setor público seria a volta da maldita censura. Acho essa discussão [sobre a cena] uma bobagem?, afirmou o prefeito à Folha.

O secretário estadual de Segurança do Rio, Anthony Garotinho, também considerou a eventual proibição como censura. ?O que afeta a imagem do Rio é o que as autoridades estão fazendo pela segurança?, disse, por meio de sua assessoria de imprensa.

Manoel Carlos diz que ficou surpreso com tanta repercussão: ?[Bala perdida] É bastante comum no Brasil e, acentuadamente de uns tempos para cá, no Rio. Não esperei a reação que foi esboçada por alguns, considerando a cena negativa para a cidade. Mas o prefeito houve por bem acabar com a onda que ameaçava se transformar no mico do ano?.

Na opinião da socialite Vera Loyola, moradora do Rio que já inspirou uma personagem de Manoel Carlos em ?Por Amor? (1998), o autor deveria desistir do tiro. ?Estamos numa campanha contra o desarmamento. Todo mundo sabe que há balas perdidas, mas para que ficar mostrando na novela? Pode tornar as pessoas mais paranóicas.?

Para o diretor de fotografia do filme ?Carandiru?, Walter Carvalho, o que há na novela não é uma real discussão sobre a violência. ?A qualidade dramatúrgica da TV é desqualificada, porque os contatos que ela tem com a realidade são só para atingir ibope. Não se procura aprofundar a visão sobre a questão da violência.?

Fernanda, que nem faz parte do núcleo de protagonistas, vai morrer ao passar de carro por um tiroteio entre bandidos e a polícia, deixando sua filha órfã. Não é um fato inédito nas tramas de Manoel Carlos: em 2000, a personagem de Lilia Cabral em ?Laços de Família? também morreu desse jeito, na Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio, deixando uma filha."

 


"A morte anunciada de Fernanda", copyright O Estado de S. Paulo, 3/08/03

"Na quinta-feira, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva tentava resolver o nó górdio em que se transformou a reforma da Previdência. O foco estava nas negociações com o Congresso e temporariamente, pelo menos, as associações de juízes, promotores e procuradores estaduais, trabalhistas e militares dos Estados haviam decidido suspender a greve de terça-feira. O assunto poderia e talvez até devesse estar em todas as rodinhas de conversa, mas não. O Brasil inteiro passou a semana em suspense, à espera do tiro fatal que vai atirar Fernanda em coma profundo.

A reforma da Previdência vai atingir o bolso de milhões de contribuintes.

Fernanda é só uma personagem de ficção, criada por Manoel Carlos em Mulheres Apaixonadas. Especialistas estimam que, no dia em que Fernanda receber o tal tiro, a audiência da novela baterá em 70 pontos, um daqueles índices que nem a Globo consegue mais atingir. Manoel Carlos acertou na mosca. Ele sabe que País é este.

Vamos aos fatos. Fernanda, interpretada por Vanessa Gerbelli, é mãe de Salete (Bruna Marquezine) e ex-affair de Téo (Tony Ramos). A garota anda tendo sonhos premonitórios de que a mãe vai morrer. Na lógica dos enredos de novelas, isso deve ocorrer para forçar Téo a assumir a guarda da criança.

Seria uma solução catártica de folhetim televisivo, para liberar a emoção do público, se não tivesse se transformado num assunto de segurança nacional.

Compare: os americanos esperaram durante meses até que o presidente George W. Bush lançasse o país em guerra contra o Iraque. Aqui, a expectativa é outra: Fernanda morre? E, se isso ocorrer, de que forma vai atingir o público brasileiro, que tem problemas concretos com que se ocupar?

Desemprego? Esqueça. Ou melhor, a morte de Fernanda ficou subitamente associada à questão do desemprego que assola o País e um ministro desastrado – o do Trabalho – até veio a público para dizer que não é tão grave, pondo a culpa na imprensa. O prefeito do Rio está preocupado, a associação de hotéis também. Depois que a notícia da morte anunciada de Fernanda – Casseta & Planeta tem deitado e rolado sobre o assunto, chegando a colocar um alvo na cabeça da moça, para facilitar o trabalho do atirador – chegou ao Corriere Della Sera, na Itália, políticos e empresários estão preocupados com o impacto que isso poderá ter no turismo carioca. O Rio é uma cidade – maravilhosa – que tem no turismo uma de suas principais fontes de renda. Se a morte de Fernanda afastar os turistas das praias e dos morros (Corcovado, Pão de Açúcar), ninguém pode prever o que uma população que já vive de economia informal poderá fazer pela sobrevivência.

Imagine o quadro: hotéis fechando ou, pelo menos às moscas, com todas as conseqüências daí decorrentes. É grave, mas – espere! – Fernanda é só uma figura de ficção e o público brasileiro e internacional tem condições de separar a fantasia da realidade. Por que toda essa importância atribuída à morte de uma figura fictícia? Esta semana, o traficante Marcinho VP foi assassinado no presídio de Bangu 3 e, no mesmo dia, um turista foi morto numa tentativa de assalto, no Rio. Nenhum dos dois fatos provocou essa comoção toda. Afinal, turista morrer em tentativa de assalto no Rio é coisa normal e não diminui o fluxo de estrangeiros que chegam ao País para divertir-se. Já Fernanda…

Cariocas de associações de bairro e da indústria hoteleira chegaram a dizer que Fernanda deveria fazer uma viagem a São Paulo e morrer aqui, sabe-se lá de que maneira. Sugeriram envenenamento. São Paulo não tem bala perdida (ou tanta bala perdida), como o Rio, mas é uma selva de concreto e, portanto, não causaria espanto vê-la tropeçar num copo de curare, por exemplo. Essa preocupação excessiva com a ficção pode ser mais um pretexto para que se invoque o velho marechal Charles de Gaulle, ex-presidente da França, que disse um dia que o Brasil não é um País sério. Mas pode ser outra coisa.

Pressionado por uma realidade asfixiante que não é só brasileira – o desemprego é um problema mundial, nesta época de globalização -, o público não agüenta ver o último oásis que ainda restava, a novela das 8, sendo invadido assim pelos enredos da vida. Manoel Carlos é um autor que gosta de enxertar a realidade em seu trabalho de ficcionista, mas em geral os telespectadores conseguem discernir melhor as coisas. Aqui, o meio-de-campo embolou. Estamos todos colados à TV. A agonia de Fernanda, que ainda não começou, já é a do povo brasileiro."