Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Lavagem de dinheiro e os desafios da reportagem

JORNALISMO INVESTIGATIVO

Frederico Vasconcelos (*)

É boa notícia o fato de que jornalistas de vários estados dedicaram um sábado inteiro [7/12, nas dependências da ECA-USP] a discutir a criação de uma entidade independente, voltada ao aperfeiçoamento da investigação jornalística.

Ao escolher a lavagem de dinheiro como tema de uma das reuniões de trabalho, esses profissionais admitiram a necessidade de melhorar a cobertura de um assunto complexo. Aproveitaram também para conhecer técnicas usadas pela criminalidade para limpar o dinheiro proveniente do narcotráfico, do contrabando, da sonegação fiscal, da corrupção e da extorsão. Como se sabe, a lavagem consiste em sucessivas transações disfarçadas para reintroduzir no sistema financeiro dinheiro de origem ilícita, que ganha a aparência de recursos limpos, sem que fique exposta a origem desses valores.

Em duas sessões muito concorridas, o coordenador-geral de Pesquisa e Investigação da Receita Federal, Deomar Vasconcellos de Moraes, e o procurador da República Celso Antônio Três (responsável pela maior investigação já feita no país sobre o uso das contas CC-5 na lavagem de dinheiro ilícito) revelaram como atua o Executivo e qual a visão do Ministério Público sobre o combate a essas práticas ilícitas.

A qualidade das exposições e o interesse da plat&eacuteeacute;ia obrigaram os organizadores a estender o limitado tempo das sessões.

As idéias expostas a seguir, sobre os limites da ação oficial e da cobertura da imprensa, são opiniões deste jornalista, a título de contribuição ao debate.

A investigação oficial

Somente depois de longa pressão internacional, o governo brasileiro despertou para a urgência de atacar, de forma organizada, esse tipo de crime que se desenvolve e se sofistica em constante processo de transformação.

O Brasil optou por um modelo preventivo (e não punitivo) de combate à lavagem, com ênfase em ações na esfera administrativa. Atribuiu a coordenação desse trabalho a um órgão colado no Executivo, o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf). Em vários países, essa atividade está mais próxima das atribuições do Ministério Público e tem nítida função repressiva.

Investigações bem-sucedidas, no país e no exterior, alcançando conhecidas figuras políticas, foram deslanchadas graças ao trabalho da imprensa local. Algumas apurações foram emperradas por conflitos de competência entre os órgãos oficiais envolvidos.

O balanço dos quatro anos de atividades do Coaf não é muito animador. Não há números consolidados sobre condenações e sobre valores recuperados. É verdade que houve a desmontagem de esquemas sofisticados, desbaratando-se quadrilhas, fruto de atuação conjunta dos órgãos de fiscalização e de repressão. É o caso, por exemplo, de operações bem-sucedidas, entre outras, no Paraná e em Santa Catarina.

Mas essa é uma guerra em que a criminalidade aparentemente está levando vantagem. O procurador Celso Três entende que "a prioridade deve ser a repressão ao crime originário do dinheiro mal havido, como o narcotráfico e a corrupção".

"De per si, a lavagem não é hedionda. Escandaliza-se a opinião pública, criam-se órgãos, impõem-se obrigações aos cidadãos, em nome do combate à lavagem, esquecendo-se de igual aparato aos delitos originários da criminalidade", diz ele.

No Brasil, a longa conivência dos órgãos de fiscalização desautoriza maior otimismo. O combate à lavagem depende da colaboração de agentes tratados com leniência (ele cita, por exemplo, o perdão ao sonegador que paga a dívida antes de ser denunciado).

Nos últimos anos, houve o branqueamento de muitos bilhões por trás da quebra de grandes bancos. O Brasil antecipou-se ao mercado internacional no descrédito das firmas de auditoria. A promiscuidade e a conivência de fiscais e auditores facilitaram a bilionária lavagem de dinheiro por trás dos rombos dos bancos Nacional, Econômico e Noroeste.

Em relação a esse último, houve uma lavagem surrealista: quase metade do patrimônio da instituição foi desviada para paraísos fiscais e contas no exterior, sob a alegação de que os recursos haviam sido investidos na construção de um aeroporto africano ou doado a um terreiro de mãe-de-santo. Trata-se do mesmo banco em que foram feitas remessas de dinheiro do ex-juiz Nicolau dos Santos Neto, o Lalau, no caso do milionário desvio de recursos do Tribunal Regional do Trabalho (TRT), em São Paulo.

A raiz dessa monumental tolerância foi a longa liberalidade permitida ao mercado. Balanços maquiados, triangulações ilegais, as chamadas operações "esquenta-esfria" nas Bolsas (para legitimar receita ilícita, numa ponta, e reduzir ganhos elevados, para pagar menos imposto, na outra) sofriam multas inexpressivas. A abertura de contas-fantasma por "laranjas", passo inicial da lavagem, geralmente resultava em penalidades simbólicas a funcionários inferiores dos bancos.

Durante muitos anos, o Banco Central chamou para si atividades típicas do Ministério Público, ao definir quais práticas eram ilícitas e quais eram mera infração administrativa. Antecipou acordos entre as partes, longe dos tribunais.

Muitas punições foram transformadas em advertências ou arquivadas pelo Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional, espécie de junta de conciliação, órgão paritário com representantes do governo e do mercado. Ex-punidos pelo colegiado atuaram como julgadores de recursos. Não faz muito tempo, bancos punidos por fraudes cambiais milionárias tiveram multas reduzidas.

O combate à lavagem de dinheiro no país depende, principalmente, de informações sobre operações suspeitas, prestadas por bancos, instituições do mercado de capitais, seguradoras, imobiliárias, bingos e intermediários do mercado de artes e antiguidades.

Os bancos alegam que também são vítimas da ação de criminosos. Assim como ocorre na Suíça, as instituições financeiras no Brasil têm colaborado informando operações suspeitas, mas também resistem às ações para quebrar o sigilo bancário e violar a privacidade de seus clientes. Como diz o procurador Três, "impor que o mercador denuncie seu cliente, causa de seu sucesso empresarial, fere a natureza do próprio sistema capitalista".

A investigação jornalística

Há excelentes trabalhos de investigação jornalística realizados no Brasil, tanto sobre lavagem de dinheiro como sobre os crimes antecedentes. Muitos dos autores participaram do seminário. Mas a imprensa, vez por outra, "compra" facilmente a suposição de que as provas já estariam evidentes. Ou "vende" ao leitor a idéia de que essa comprovação virá na edição seguinte.

Não são raras as reportagens com denúncias açodadas, a partir de simples depoimentos, sem provas, criando a expectativa de que elas surgirão, tão logo seja quebrado o sigilo dos suspeitos.

Eis um exemplo na contramão desse voluntarismo: um ano depois de o Superior Tribunal de Justiça haver quebrado o sigilo bancário de um magistrado denunciado sob a acusação de favorecer um traficante ? em investigação que apura a suspeita de lavagem de dinheiro ? mais da metade dos bancos não havia fornecido as informações como determinara aquela Corte Superior.

Investigações preliminares tratadas pela mídia como condenações públicas definitivas ajudam a alimentar a indústria das indenizações. Uma vez livres de inquéritos mal-instruídos, ou beneficiados por sentenças contraditórias, os acusados da véspera correm para "lavar a honra ofendida", oferecendo ações de danos morais contra a imprensa.

Novos desafios para a mídia

Em resumo, o jornalismo investigativo encontra-se, hoje, diante dos seguintes cenários:

1) A expectativa de uma nova safra de denúncias, com a posse de um governo cujo discurso sempre pregou o combate à corrupção.

2) O enxugamento das redações, com a crise econômica, limitando ou inviabilizando as reportagens de apuração mais demorada.

3) A escalada de sentenças judiciais com indenizações elevadas, capazes de inibir jornalistas e acuar veículos de comunicação, principalmente no interior.

4) O risco de uma "lei da mordaça", dificultando, ainda mais, o acesso a informações públicas.

A combinação desses fatores vai exigir dos jornalistas um cuidado cada vez maior em seu ofício.

Algumas medidas para enfrentar esses desafios podem ser discutidas na associação recém-criada. Outras, contudo, dependem da capacitação individual e do intercâmbio de experiências, uma prática saudável, não muito cultivada entre nós, mas que ganha espaço adequado na nova entidade.

(*) Repórter especial da Folha de S.Paulo, mediador do workshop sobre lavagem de dinheiro no seminário promovido sobre jornalismo investigativo pelo Centro Knight para o Jornalismo nas Américas, em 7/12/2002, em São Paulo

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