Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Álbum de formatura

Carlos Vogt

“Ficção num palco sem tábuas
Vestida de papel de seda
Mima uma dança de mágoas
Para que nada suceda.”
Fernando Pessoa

 

A

educação salva? Ou, neste mundo infernalmente globalizado, com a cornucópia de Pandora aberta e chicoteando enlouquecida a maldade do capital financeiro, já não há mais salvação estrutural? Só se salvam, contingencialmente, entre aqueles que se preparam para saltar no lombo do cavalo que passa, os que têm a chance de cair sentados no arreio de oportunidades ou na carroça de oportunismos?

Se o cidadão hoje, no Brasil, quiser buscar uma resposta clara e objetiva a essas questões, que, é claro, dizem respeito às suas chances de trabalho e de vida decente, e for recorrer ao noticiário de nossa imprensa, é provável que ele, depois de ter lido várias matérias sobre o assunto, saia mais atordoado com as respostas que teve do que com as dúvidas com que entrou.

Algumas semanas atrás, a revista Época (Ano I, nº 11, 3/8/98) trouxe reportagem de capa – A busca do primeiro emprego – sobre as grandes dificuldades profissionais que os jovens hoje enfrentam no Brasil, dificuldades que, segundo a revista, nem mesmo o diploma de curso superior e a capacitação técnica do candidato conseguem superar.

A revista Veja (Ano 31, nº 34, 26/8/98), com o título O Pesadelo do fim do século, traz matéria sobre o candente tema do desemprego no mundo e, citando o trabalho de uma empresa americana de consultoria, conclui, apontando para o Brasil com o auxílio do depoimento de autoridade no assunto, que o excesso de regulamentação trabalhista é o responsável pela falta de maiores ofertas de emprego no país.

A mesma revista Veja (Ano 31, nº 38, 23/9/98), agora em matéria de capa, traz novamente uma longa reportagem com o título A chave do emprego, anunciando logo o segredo desse cofre lacrado: – Como a educação abre novas oportunidades/ – Cada ano de estudo aumenta em 15% o salário/ – As profissões que estão em alta e em baixa.

Nesse caso, a educação salva e aquilo que era pesadelo anteriormente agora vira sonho, independentemente da paisagem árida desenhada pela outra revista concorrente.

E aí, a educação salva ou não salva?

A revista Época diz que não. A Veja diz que sim, embora antes já tenha pintado o purgatório do desemprego.

O jornal O Estado de S. Paulo trouxe na edição de 24/9/98 um encarte publicitário chamado Caderno Universitário, pago pelo Sindicato das Entidades Mantenedoras de Estabelecimentos de Ensino Superior no Estado de São Paulo, um deus-nos-acuda louvaminheiro das qualidades e do papel social do sistema privado de ensino superior.

Chama logo a atenção a manchete de primeira página – Universidades privadas democratizam acesso à educação -, tendo abaixo e ao lado um quadro, em forma de banner, com números e percentuais, que pretende, com dados do MEC, certamente mostrar as próprias maravilhas de eficiência e eficácia comparativamente ao sistema público.

Sem surpresa, as páginas centrais do caderno, com as indefectíveis fotos e depoimentos, imprimem, em manchete, a razão de tanta cor, texto e esforço organizado: Ensino superior privado reivindica maior apoio oficial.

De modo recorrente, cada vez que aparece, na mídia, matéria positiva sobre educação, pode-se apostar que é para cantar as graças do ensino pago. Mesmo em matérias que parecem apenas louvar os milagres das modernas tecnologias de apoio, como o uso de computadores e da Internet (Sem giz nem lousa, Veja, ano 31, nº 39, 30/9/98, págs. 72/73), lá está a famigerada comparação a sugerir as maravilhas do privado contra o público. Falando do número de computadores nas escolas, lê-se: “Entre os colégios privados o percentual sobe a 28% contra 1,2% na escola pública”. Os números são do MEC, mas o torneio da frase é de Veja. Será merchandising?

A educação salva ou não salva?

Pelo encarte do Estadão não só salva como dá garantias de longo prazo ao produto. É o que pensa também a Rede Globo, pelo carnaval que está fazendo com a educação e os 500 anos do Brasil descoberto.

A cada vez que a mídia se dispõe a essas apologias ficamos intrigados em saber se há ou não uma orquestração de propósitos um pouco menos nobres do que os que se anunciam explicitamente e se toda essa conversa encantatória em torno da educação não estaria fazendo marketing de mais um bem privatizável em meio a tantos outros que já foram.

Não vou aqui fazer novamente a defesa das universidades públicas, embora nunca seja demais insistir em sua importância e no papel social, científico e cultural que desempenharam, desempenham e deverão desempenhar no país.

O fato, para voltar ao nosso tema, é que relativamente ao papel da educação como mecanismo de mobilidade social, tudo o que a mídia vem dizendo poderia ser aplicado a gerações mais velhas – a minha, por exemplo – que passaram pelo crivo do mesmo processo.

A diferença, hoje, é que a oferta de emprego encolheu e o número relativo de formados aumentou, fazendo a competição acirrar-se e as incertezas crescerem a níveis jamais conhecidos. A educação virou cifras. Repete-se, à exaustão, que mesmo para serviços menos qualificados tecnicamente exige-se segundo grau completo. Aqui a educação, além de cifra, virou expediente. Da qualidade mesmo, pouco se fala. É como se tivesse sido armado um grande circo cuja quantidade de atores fosse o espetáculo mais importante do que a qualidade do próprio espetáculo. Desconfio, muitas vezes, que estamos vivendo uma chanchada, um arremedo de outros que nos convenceram de que eles podem fazer melhor do que fazemos e ainda podem ganhar dinheiro, inclusive com um bom negócio, como parece ser o da educação.

A educação salva ou não salva?

Não há dúvida de que ela é fundamental.

E tão fundamentalmente constitutiva da qualidade da vida social que os governos não deveriam ficar regateando a responsabilidade do Estado diante da necessidade de aprimorar a cada dia o sistema educacional do país, público e/ou privado, nem a mídia ficar servindo de gôndola de supermercado para a reposição de produtos duvidosos ou, no mínimo, controversos, dados os ingredientes de intenções pouco claras que entram na sua composição. Os rapazes e as moças de chapeuzinho de formatura e de sorriso confiante que compõem o álbum de formatura da capa da revista Veja estarão rindo por que, de que ou de quem?

A se acreditar no que dizem os entendidos e na sinceridade contida do discurso do presidente da República, na terça-feira, dia 22/9, a coisa vai ficar preta e o difícil parto para fazer nascer do país, onde muitos mamam um pouco e poucos mamam muito, o Estado, em que só poucos mamem muitíssimo, vai tardar ainda algum tempo.

Que a educação não seja só para aumentar o número de consumidores tecnicamente qualificados para o exigente mercado das tecnologias.