Carlos Vogt
“Ficção num palco sem tábuas
Vestida de papel de seda
Mima uma dança de mágoas
Para que nada suceda.”
Fernando Pessoa
educação salva? Ou, neste mundo infernalmente globalizado, com a cornucópia de Pandora aberta e chicoteando enlouquecida a maldade do capital financeiro, já não há mais salvação estrutural? Só se salvam, contingencialmente, entre aqueles que se preparam para saltar no lombo do cavalo que passa, os que têm a chance de cair sentados no arreio de oportunidades ou na carroça de oportunismos?
Se o cidadão hoje, no Brasil, quiser buscar uma resposta clara e objetiva a essas questões, que, é claro, dizem respeito às suas chances de trabalho e de vida decente, e for recorrer ao noticiário de nossa imprensa, é provável que ele, depois de ter lido várias matérias sobre o assunto, saia mais atordoado com as respostas que teve do que com as dúvidas com que entrou.
Algumas semanas atrás, a revista Época (Ano I, nº 11, 3/8/98) trouxe reportagem de capa – A busca do primeiro emprego – sobre as grandes dificuldades profissionais que os jovens hoje enfrentam no Brasil, dificuldades que, segundo a revista, nem mesmo o diploma de curso superior e a capacitação técnica do candidato conseguem superar.
A revista Veja (Ano 31, nº 34, 26/8/98), com o título O Pesadelo do fim do século, traz matéria sobre o candente tema do desemprego no mundo e, citando o trabalho de uma empresa americana de consultoria, conclui, apontando para o Brasil com o auxílio do depoimento de autoridade no assunto, que o excesso de regulamentação trabalhista é o responsável pela falta de maiores ofertas de emprego no país.
A mesma revista Veja (Ano 31, nº 38, 23/9/98), agora em matéria de capa, traz novamente uma longa reportagem com o título A chave do emprego, anunciando logo o segredo desse cofre lacrado: – Como a educação abre novas oportunidades/ – Cada ano de estudo aumenta em 15% o salário/ – As profissões que estão em alta e em baixa.
Nesse caso, a educação salva e aquilo que era pesadelo anteriormente agora vira sonho, independentemente da paisagem árida desenhada pela outra revista concorrente.
E aí, a educação salva ou não salva?
A revista Época diz que não. A Veja diz que sim, embora antes já tenha pintado o purgatório do desemprego.
O jornal O Estado de S. Paulo trouxe na edição de 24/9/98 um encarte publicitário chamado Caderno Universitário, pago pelo Sindicato das Entidades Mantenedoras de Estabelecimentos de Ensino Superior no Estado de São Paulo, um deus-nos-acuda louvaminheiro das qualidades e do papel social do sistema privado de ensino superior.
Chama logo a atenção a manchete de primeira página – Universidades privadas democratizam acesso à educação -, tendo abaixo e ao lado um quadro, em forma de banner, com números e percentuais, que pretende, com dados do MEC, certamente mostrar as próprias maravilhas de eficiência e eficácia comparativamente ao sistema público.
Sem surpresa, as páginas centrais do caderno, com as indefectíveis fotos e depoimentos, imprimem, em manchete, a razão de tanta cor, texto e esforço organizado: Ensino superior privado reivindica maior apoio oficial.
De modo recorrente, cada vez que aparece, na mídia, matéria positiva sobre educação, pode-se apostar que é para cantar as graças do ensino pago. Mesmo em matérias que parecem apenas louvar os milagres das modernas tecnologias de apoio, como o uso de computadores e da Internet (Sem giz nem lousa, Veja, ano 31, nº 39, 30/9/98, págs. 72/73), lá está a famigerada comparação a sugerir as maravilhas do privado contra o público. Falando do número de computadores nas escolas, lê-se: “Entre os colégios privados o percentual sobe a 28% contra 1,2% na escola pública”. Os números são do MEC, mas o torneio da frase é de Veja. Será merchandising?
A educação salva ou não salva?
Pelo encarte do Estadão não só salva como dá garantias de longo prazo ao produto. É o que pensa também a Rede Globo, pelo carnaval que está fazendo com a educação e os 500 anos do Brasil descoberto.
A cada vez que a mídia se dispõe a essas apologias ficamos intrigados em saber se há ou não uma orquestração de propósitos um pouco menos nobres do que os que se anunciam explicitamente e se toda essa conversa encantatória em torno da educação não estaria fazendo marketing de mais um bem privatizável em meio a tantos outros que já foram.
Não vou aqui fazer novamente a defesa das universidades públicas, embora nunca seja demais insistir em sua importância e no papel social, científico e cultural que desempenharam, desempenham e deverão desempenhar no país.
O fato, para voltar ao nosso tema, é que relativamente ao papel da educação como mecanismo de mobilidade social, tudo o que a mídia vem dizendo poderia ser aplicado a gerações mais velhas – a minha, por exemplo – que passaram pelo crivo do mesmo processo.
A diferença, hoje, é que a oferta de emprego encolheu e o número relativo de formados aumentou, fazendo a competição acirrar-se e as incertezas crescerem a níveis jamais conhecidos. A educação virou cifras. Repete-se, à exaustão, que mesmo para serviços menos qualificados tecnicamente exige-se segundo grau completo. Aqui a educação, além de cifra, virou expediente. Da qualidade mesmo, pouco se fala. É como se tivesse sido armado um grande circo cuja quantidade de atores fosse o espetáculo mais importante do que a qualidade do próprio espetáculo. Desconfio, muitas vezes, que estamos vivendo uma chanchada, um arremedo de outros que nos convenceram de que eles podem fazer melhor do que fazemos e ainda podem ganhar dinheiro, inclusive com um bom negócio, como parece ser o da educação.
A educação salva ou não salva?
Não há dúvida de que ela é fundamental.
E tão fundamentalmente constitutiva da qualidade da vida social que os governos não deveriam ficar regateando a responsabilidade do Estado diante da necessidade de aprimorar a cada dia o sistema educacional do país, público e/ou privado, nem a mídia ficar servindo de gôndola de supermercado para a reposição de produtos duvidosos ou, no mínimo, controversos, dados os ingredientes de intenções pouco claras que entram na sua composição. Os rapazes e as moças de chapeuzinho de formatura e de sorriso confiante que compõem o álbum de formatura da capa da revista Veja estarão rindo por que, de que ou de quem?
A se acreditar no que dizem os entendidos e na sinceridade contida do discurso do presidente da República, na terça-feira, dia 22/9, a coisa vai ficar preta e o difícil parto para fazer nascer do país, onde muitos mamam um pouco e poucos mamam muito, o Estado, em que só poucos mamem muitíssimo, vai tardar ainda algum tempo.
Que a educação não seja só para aumentar o número de consumidores tecnicamente qualificados para o exigente mercado das tecnologias.