Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Lisbela e os prisioneiros do tédio

VIDAS NA TELA

Sérgio Domingues (*)

O filme de Guel Arraes tem a marca de seu gênio televisivo. Controla a narrativa com talento usando os elementos que o tornaram famoso na tevê. Cortes rápidos, intercalação de histórias, diálogos inteligentes e o maravilhoso humor nordestino. Humor de um povo submetido a condições tão precárias que fazer piada com Deus e Jesus lhe é perdoado, pois parecem ser estes a fazer piada daquele.

Mas, o que chama a atenção no filme é o papel que a indústria do entretenimento cumpre na vida atual. Pela ambientação, cenários e figurinos, a história se passa em algum momento antes da ditadura da TV na vida do dia-a-dia. Mas há um seu ancestral na forma dos filmes seriados que enchiam as salas de cinema quase todos os dias por volta dos anos 1960. Lisbela (Débora Falabella) é uma fã do gênero. Está tão acostumada a acompanhar os episódios que adivinha o andamento das histórias pela seqüência lógica da narrativa. Por exemplo: “Se o mocinho se desentendeu com a mocinha, em certo momento algo vai acontecer para provar que ambos nasceram um para o outro. Depois de derrotar o vilão, o mocinho fica finalmente com a mocinha etc etc.” De tal forma que Lisbela está sempre um passo à frente do que a narrativa vai mostrar. No entanto, ela jamais deixa de ir ao cinema, pois é lá que faz suas viagens pelo mundo das emoções e aventuras. Quando a luz apaga, diz ela, parece-lhe que não está mais naquela sala e nem continua sendo ela mesma.

Ora, podemos dizer que o que serve para Lisbela serve para os milhões que acompanham as novelas diariamente ou assistem aos filmões norte-americanos do tipo blockbuster.

Basta ter assistido a mais de 10 horas de novelas ou filmes para começar a dominar as fórmulas da narração, antecipar desdobramentos e finais felizes. É o caso, por exemplo, do mocinho ou mocinha pendurada pelas pontas dos dedos na beira de um precipício. Sabemos todos que a personagem vai se salvar no último momento. Mas, assim mesmo, continuamos a assistir até que o fim previsível nos cause o também previsível alívio porque tudo acabou bem.

Essa repetição de fórmulas que continua atraindo público somente pode ser explicada porque a vida que levamos é tediosa e previsível ao mesmo tempo. Tediosa, ao não apresentar perspectivas de mudanças. Previsível, ao assegurar-nos de que o desemprego e a doença podem nos levar a um final nada feliz. A grande maioria das pessoas tem um emprego que não as satisfaz profissional ou financeiramente. Cumprem horários cansativos, enfrentam um trânsito enlouquecedor, tentam acompanhar o ritmo de uma sociedade consumista sem dinheiro para tanto. Por outro lado, não têm a mínima idéia de como será o amanhã caso fique sem emprego ou adoeça. Tudo isso é produto da sociedade capitalista, em que alguns poucos podem se dar ao luxo de planejar o futuro, trabalhar no que gostam, gastar sem preocupações, contar com boa assistência médica e passar as férias em praias ou estações de esqui, conforme o estado de ânimo.

Jogo de espelhos

Como este não é o caso da grande maioria, deparar-se com histórias com começo, meio e fim, temperadas com fortes emoções, acaba sendo uma forma de viver por tabela. A tabela, no caso, são os modernos meios de entretenimento, principalmente a TV e o cinema.Esta função dos meios de entretenimento poderia ser até positiva. Mas não passa de uma forma de manter as pessoas conformadas a suas pequenas frustrações e cegas para a grande frustração que é trabalhar sem prazer, por longas horas e pressionado por exigências sociais como a moda, o carro do ano, a educação dos filhos, o lazer mais chique etc.

Vivemos numa sociedade cada vez mais proletarizada. Cada vez mais pessoas vendem sua força de trabalho e trabalham em condições que não estão sob seu controle. Isso é verdade tanto para camelôs que trabalham em barracas que não são suas, como para operários, advogados de empresas, professores, médicos do serviço público etc. Neste tipo de sociedade, a grande mídia tornou-se uma válvula de escape. Uma forma de viver no além de sua vida sem morrer. São janelas que se abrem em nossas prisões de tédio para mostrar um mundo arejado e vivo apenas para nos manter abafados e solitários.

O filme de Arraes dá uns toques sobre isso. Leléu (Selton Mello) é o malandro por quem Lisbela se apaixona. Para alguém que como ela vive das fantasias do cinema, Leléu é a própria encarnação dessas fantasias. Ele vive de cidade em cidade, mudando de nome e profissão, passando-se por ator, vidente, vendedor de afrodisíacos e empresário de circo. Coisa que todo espectador de novela ou filme está acostumado a ver acontecer com seus atores favoritos.

Fagulhas de entendimento

Aléeacute;m disso, o diretor faz um jogo em que público e mídia olham-se como num espelho. É o caso do momento em que Leléu e Lisbela trocam o primeiro beijo. Claro que isso acontece dentro do cinema. E o casal do filme que está sendo exibido simplesmente volta seus olhos para a platéia para ver a cena, mas acaba olhando para nós, que estamos assistindo ao filme.

O final feliz também recebe esse tratamento. É óbvio que o casal acaba junto, mas dispensa o característico beijo de encerramento para encarar a câmera e se dedicar a imaginar a alegria que sentirão os vários casais na platéia diante de um desfecho tão bonito. E quando os créditos começam a passar pela tela, o fundo da cena é uma platéia deixando o cinema aos poucos, sem pressa, como se estivesse a retardar a saída do mundo mágico da sala escura. Ficamos todos meio hipnotizados. Agora somos nós, na platéia, que olhamos para a platéia no filme. Esperamos o letreiro desaparecer e o último espectador mostrado no filme deixar a sala. Também saímos devagar… como se estivéssemos a retardar a saída do mundo mágico da sala escura. A resistência em sair é a vontade de ficar no espelho. Evitar o momento de enfrentar a realidade.

Como já disse, essa força do cinema e da tela pequena acaba sendo usada para anestesiar as pessoas. Mas, uma produção como a de Arraes, apesar de saída das entranhas de uma das maiores máquinas de ilusões do mundo (a Globo), acende fagulhas que ajudam no entendimento do poder da grande mídia.

(*) Sociólogo, assessor sindical e integrante do Núcleo Piratininga de Comunicação