Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Língua!? Pra que te quero?

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FALAR PORTUGUÊS

Vera Silva (*)

Nos últimos dias comecei a questionar qual seria o problema das palavras: por que elas podem ser violadas desta forma sem que percebamos? Então lembrei-me de uma frase que li há algum tempo (cito-a de memória) do poeta Octávio Paz: "Quando uma nação vai mal, a primeira coisa que gangrena é a língua."

A gangrena é a morte da carne por falta de irrigação do sangue seguida, ou não, de invasão bacteriana e de decomposição tecidual, diz o dicionário. Pode ser também aquilo que produz corrupção moral. Interessante, não é? Morte e corrupção da língua são sinais de que uma nação vai mal.

Seria exagero do poeta? Não pude evitar uma nova associação. "A leitura do mundo precede sempre a leitura da palavra, e a leitura desta implica a continuidade da leitura daquele" ? escreveu o professor Paulo Freire.

O poeta não exagerou, não. Se leio o mundo com as palavras e preciso lê-las para continuar a ler o mundo, a mentira, o analfabetismo funcional e a distorção das palavras podem atrapalhar o meu pensamento e interferir na minha leitura do que acontece ao meu redor.

Assim, é possível entender que o momento que vivemos é de extremo perigo para este país. É um momento em que a corrupção da língua indica que a nação vai mal. Lendo os jornais e vendo TV percebemos que as palavras já não significam aquilo que o dicionário descreve. Quedamo-nos perplexos, ouvindo e lendo uma montanha de palavras que não significam nada porque não sabemos mais com quem está a verdade.

Exemplos ao acaso

** Por que será que a cena é dominada (epa!) por siglas como FHC e ACM? Seria muito difícil chamá-los de presidente e de senador? Ou seria uma forma prática de se referir ao poder ditatorial de um rei? Rei tem três letras e se escreve em maiúsculas, como DEUS. Ou seria o fato de eles representarem as grandes empresas que sempre têm seus enormes nomes abreviados a tal ponto que a sigla vira um nome? De qualquer modo, só gente muito poderosa é reconhecida assim.

** O que você pensa de chamar as meninas de "cachorras" e os meninos de "tigrões"? Gracinha, não? Você já parou para pensar que, exceto nos filmes da Disney, os cachorros não formam família? E que tal um relacionamento entre uma cachorra e um tigrão? Meio estranho. Não sou especialista nisso, mas acho que há uma incompatibilidade entre as duas espécies.

** O que você acha de "vou botar você na mão e te dar muita pressão"? É o hit romântico do Brasil-século 21. É acompanhado de uma dança muito sugestiva.

** O que você acha da declaração do ACM de que não mandou violar o painel? Mas gostou, não é, tanto e tanto que usou o que leu (ou inventou).

** O que você pensa, quando lê um enorme artigo de um jornalista no seu jornal preferido, em que o jornalista diz que ACM e Arruda só fizeram aquilo que todos nós queríamos fazer: ler a lista? Por isso, conclui, querer cassá-los é um absurdo, isto não foi crime.

** O que você pensa de abominar alguém porque gravou escondido uma fita e depois a destruiu e premiar com um tremendo espaço na mídia (até entrevistas, beija-mão) alguém que leu uma lista de um painel violado do qual era guardião?

** O que você pensa de uma sociedade que considera operar um traficante num hospital do Estado um acinte ao cidadão que está na fila da saúde sem atendimento? Onde está o erro: na cirurgia ou na fila?

** O que você pensa de tanta interrogação? É o que sobra num país onde as palavras estão morrendo porque perderam o seu significado.

Aquele deputado que apresentou um projeto punindo o uso de palavras estrangeiras no Brasil foi quase crucificado. Mas neste momento estou pensando que ele estava muito certo. De tanto ler e cantar o que não entende, o povão vai mesmo é acabar falando com palavras que não entende, igual àquelas crianças que cantam em inglês nos programas de TV.

Daí a achar que violação é sinônimo de curiosidade, que cachorra é sinônimo de tigresa, que tigre é sinônimo de homem carinhoso, que vou te dar muita pressão é sinônimo de eu gosto de você, que assinatura não é palavra dada, que público é sinônimo de privado, e assim por diante, é um passo que já foi dado. Ou o povo na Bahia não gritou "rei, rei, ACM é nosso rei" e o FHC não disse que era uma deformação moral associar a liberação de verbas a instrumento político?

Tomara que o lema do Observatório da Imprensa se espalhe e a gente não seja mais ameaçado de botarem um X no final do nosso nome para que pareçamos mais modernos e vitoriosos. Eu não quero me chamar Verax.

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