Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Lolita mal-ajambrada

FOLHA & BRINDODEPENDÊNCIA

Deonísio da Silva (*)

O latim vulgar deu-nos strambus, variação vulgar do clássico strabus, provável origem remota de estrambótico. No latim, strabus e strambus apontam para o significado de vesgo, caolho, indivíduo de olho torto. No espanhol, virou zambo, passando depois ao português como zambro, de que se formou azambrado com a variante ajambrado. Em resumo, seja qual for a variante utilizada, o significado é de coisa torta, fora das normas. Mas não bastava e foi duplicada para mal-ajambrado.

Mal-ajambrada. Eis o que pode caracterizar a edição de Lolita que ora chega às bancas. Não são poucos os críticos e resenhistas pátrios que com freqüência embarcam na canoa furada de achar que Vladimir Nabokov antecipou na literatura os dramáticos impasses do quarentão (ou cinqüentão) que se perde de amores pela viçosa ninfeta que o arrebata para os abismos de paixões desesperadas.

Para uma geração de resenhistas que parecem duvidar de que, antes de Caetano Veloso, tenha havido alguma coisa na cultura ocidental que valha a pena considerar, é mais difícil ainda admitir o pioneirismo de Adelino Magalhães, que antecipou James Joyce com o monólogo interior, e o de Mário Donato, que criou sua Lolila avant la lettre uma década antes de Vladimir Nabokov.

No caso do primeiro, quem sabe os comentaristas pensaram ser "monólogo do interior" e não monólogo interior, já que o autor vivia e escrevia em Niterói. No caso do segundo, nem o arrasador sucesso da minissérie baseada na ninfeta nacional foi capaz de diluir o erro consolidado.

Surpresas desagradáveis

É preciso ter a coragem de reconhecer que a literatura brasileira é verdadeira mina de ouro diante de temas e problemas que demoraram um pouco mais a chegar às literaturas dos latins do império, de que o inglês é hegemônico. Não saiu em inglês? Então, o mundo não reconhece sua existência. Ou melhor, na literatura os brasileiros somente podem reconhecer os autores reconhecidos por outros que não sejamos nós?

Os editores sabem disso e escrevem nas orelhas de livros de autor nacional que ele está traduzido para essas e aquelas línguas. Mas onde o autor brasileiro é mais importante? E para quem? No Brasil e para os brasileiros. As traduções são acréscimos, jamais a aura mais importante de uma obra. Daí a busca do original, da edição original, das circunstâncias em que surgiu, os contornos biográficos de seu autor etc.

A Folha de S. Paulo começa a perder outra boa chance de atestar aos leitores que dá atenção a importantes livros de autores nacionais. Lança uma nova coleção de livros nas bancas, mas a presença brasileira ali é muito rarefeita. É louvável sua iniciativa, evidentemente. O Brasil tem cerca de 3.000 editoras (três mil, isso mesmo, dados da Câmara Brasileira do Livro) e pouco mais de 900 livrarias, a menos que sejam incluídas farmácias, mercados e bancas de revistas e jornais. Ainda na década de 1970, a Editora Abril lançou 50 (cinqüenta) volumes de uma coleção intitulada Os Imortais da Literatura Universal. Alguns volumes superaram os 300.000 exemplares vendidos. Trinta anos depois, nem o mais relaxado best-seller alcançou tal marca. Os leitores têm bom gosto e querem o que é bom, mas onde encontrar bons livros por preços acessíveis?

O primeiro volume é Lolita. O leitor está com problemas. O livro de capa dura, azul, é bonito. Mas, ao abri-lo, eis algumas surpresas desagradáveis, duas insuportáveis: a letra é muito miudinha e a encadernação não soube considerar que as linhas das páginas pares devem ser lidas até o mais amargo fim. E a costura ou a dobra esconde, não apenas letras, mas sílabas.

Que pena! Esperamos que a Folha de S. Paulo corrija o defeito nos próximos volumes, se ainda der tempo, e dê um jeito de ressarcir os leitores de Lolita, o primeiro volume. Ainda mais que o célebre prefácio de John Ray, Jr, Doutor em Filosofia (Widworth, Massachusetts), data de 5 de agosto de 1955, é simplesmente imperdível. E está ilegível na segunda página (p.6).

(*) Escritor, professor, escreve semanalmente neste espaço; seus livros mais recentes são A vida íntima das palavras, A melhor amiga do lobo e Os segredos do baú