Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Longe dos olhos de ver

MÍDIA & ATEÍSMO

Daniel Sottomaior (*)


“Quando teu irmão, filho da tua mãe, ou teu filho, ou tua filha, ou a mulher do teu seio, ou teu amigo que te é como a tua alma, te incitar em segredo, dizendo: Vamos e sirvamos a outros deuses! – deuses que nunca conheceste, nem tu nem teus pais, dentre os deuses dos povos que estão em redor de ti, perto ou longe de ti, desde uma extremidade da terra até a outra – não consentirás com ele, nem o ouvirás, nem o teu olho terá piedade dele, nem o pouparás, nem o esconderás, mas certamente o matarás; a tua mão será a primeira contra ele para o matar, e depois a mão de todo o povo; e o apedrejarás, até que morra, pois procurou apartar-te do Senhor teu Deus, que te tirou da terra do Egito, da casa da servidão.” Deut 13:6ss

“Não penseis que vim destruir a lei ou os profetas; não vim destruir, mas cumprir. Porque em verdade vos digo que, até que o céu e a terra passem, de modo nenhum passará da lei um só i ou um só til, até que tudo seja cumprido. Qualquer, pois, que violar um destes mandamentos, por menor que seja, e assim ensinar aos homens, será chamado o menor no reino dos céus; aquele, porém, que os cumprir e ensinar será chamado grande no reino dos céus.” Mat 5:17ss


Ninguém sabe ao certo quantos ateus existem no mundo. A maior parte das fontes, como a Enciclopédia Encarta ou o site <www.religioustolerance.org>, fala em 4% da população. Geralmente esse número se refere àqueles que aderem ao chamado ateísmo forte ou positivo, que nega a existência de quaisquer deuses. As pesquisas internacionais apontam também para a existência de 15% de “não-religiosos”.

Segundo o IBGE, no Brasil são 7,3%. De acordo com a “Pesquisa Sobre Comportamento Sexual e Percepções da População Brasileira Sobre HIV/AIDS”, realizada pelo Ministério da Saúde em 1998 [disponível em <http://www.aids.gov.br/final/biblioteca/avalia4/perfil/conteudo/perfil.htm#4>], esse número é de 9,7% para indivíduos de 16 a 65 anos moradores de áreas urbanas. Já a revista IstoÉ publicou os números de uma pesquisa Brasmarket que ouviu 200 mil eleitores em 449 cidades do país e indicou 1,4% de ateus (“Religião e Voto”, em <http://www.terra.com.br/istoe/Reportagens/religiao.htm>).

No último censo brasileiro a categoria dos sem-religião incluiu formas de teísmo, mas internacionalmente ela costuma ser descrita em termos de partidários do ateísmo fraco ou negativo, que é a ausência de crença em deuses não acompanhada da sua negação. Esse grupo inclui também os agnósticos, além dos livre-pensadores, secularistas e humanistas que não são ateístas fortes. Os ateus, portanto, compõem cerca de 20% da população mundial. Não é pouco, especialmente considerando que a religião mais popular atualmente conta com cerca de 33%. Se é que todos os grupos cristãos podem ser agrupados num único credo, já que eles negam a cristandade uns dos outros.

Para quem prefere considerar somente o ateísmo forte, é interessante notar que o espiritismo e o espiritualismo contam com 1,4% da população brasileira, talvez tanto quanto os ateus no país, e cerca de três vezes menos que a proporção de ateus no mundo. O judaísmo reúne ainda menos: 0,6%, quase sete vezes menos do que o ateísmo no mundo. Candomblé e umbanda totalizam 0,33%. Budismo e outras religiões orientais, 0,25%. Os índices de todas essas religiões somam apenas 65% da proporção de ateus no globo, e ainda assim é difícil negar que os primeiros parecem muito mais presentes e visíveis na sociedade do que os últimos. Por quê?

Há um motivo óbvio. Muito do que faz a religião estar em evidência simplesmente não existe no ateísmo: os ateus não crêem que há uma divindade ditando normas de gastronomia e vestuário; não têm suas datas incorporadas oficialmente a calendários nacionais; não gozam de isenção fiscal determinada pela constituição para fazer o que bem quiserem, inclusive amealhar imóveis e concessões de rádio e tevê; não podem consumir drogas ritualmente sob as bênçãos do poder público; não se manifestam em bloco contra homossexualidade, avanços científicos, controle da natalidade ou camisinha; não fazem guerra ou terrorismo em nome de suas descrenças; não possuem bancadas no Legislativo; não têm organizações que determinam que políticas sociais e econômicas estão de acordo com a vontade divina, e assim por diante. E ainda por cima os cultos fornecem excelentes imagens para as matérias na TV. Não dá pra competir com esse tipo de notícia!

Mas creio haver outros motivos para nossa pouca visibilidade.

Sintomaticamente, o censo de 2001 não se deu ao trabalho de discriminar os ateus dentro do grupo de não-religiosos. Por isso não é possível saber se o país possui taxas de ateísmo substancialmente inferiores à média mundial que ajudem a explicar o fenômeno. É bem possível que o IBGE tenha feito pesquisas-piloto, mais detalhadas, para saber que tipo de perguntas incluir nos questionários finais do censo. Essa é uma prática comum em levantamentos estatísticos. Mas é difícil de crer que o ateísmo tivesse índices tão pequenos quanto os alcançados por crenças pouco populares no país mas que não obstante mereceram discriminação individual na lista de posições religiosas utilizada no censo. Apesar de os menos de três mil hinduístas do país inteiro representarem 0,0018% da população, eles foram contados à parte dos demais religiosos. Raros são os jornais que se dão ao trabalho de publicar uma matéria que fale sobre números tão pequenos.

Tática da negação

Ao que parece, o ateísmo foi excluído do censo por desinteresse e descaso. Ou pelo interesse em ignorá-lo ativamente. O que não aparece nas estatísticas para todos os efeitos não existe. Não pode receber atenção oficial nem destaque na mídia. Manipular dados e negar a existência de grupos dissidentes é uma prática muito antiga e muito eficaz de manipulação.

Bem, é claro ninguém acreditaria que os argutos jornalistas brasileiros poderiam cair nesse truque tão barato. Mas uma das grandes lições do ateísmo é que antes de crer ou descrer é preciso olhar as evidências. Vamos a elas.

Quando os dados do IBGE foram divulgados, a imprensa naturalmente procurou identificar as tendências de mudança mais importantes. Uma delas foi o expressivo crescimento do grupo dos sem-religião, que saltou de 4,8% para 7,3% em dez anos. Embora o aumento absoluto represente uma perda pequena para o total de religiosos, o aumento relativo foi de 52%, só superado pela explosão do grupo evangélico. E a mudança entre religiões sempre causa menos espécie do que aquela em direção à descrença completa.

A revista Veja reportou os dados com absoluta precisão, e apontou a existência de teístas, religiosos “não-praticantes”, naqueles 7,3% (“Nós somos ateus”, número 1754, em <http://veja.abril.uol.com.br/050602/p_084.html>). Mas muitas outras matérias não tiveram tanta sorte. No SBT, por exemplo, assim como em outros canais da TV aberta, sempre que se procurava esmiuçar o grupo dos sem-religião os únicos citados eram os ateus. É certo que o jornalismo televisivo tem limitações de espaço especialmente duras, mas chega um ponto em que a suposta concisão torna os dados irreconhecíveis. Também seria difícil explicar matérias como a da IstoÉ (“Raio X do brasileiro”, em <http://www.terra.com.br/istoe/1702/brasil/1702_raio_x.htm>), que atribui aos ímpios fluminenses o número que na verdade pertence aos sem-religião, como se fosse tudo a mesma coisa.

É possível que os jornalistas estivessem somente tentando apimentar um pouco o seu trabalho. Afinal, os ateus se juntam aos comunistas na lista de infantívoros e inimigos públicos por vocação. Mas isso só teria sentido em manchetes e lides. Trocar maçãs por laranjas no meio do texto ? ou, se preferirem, pêssegos por nectarinas ? não é boa prática jornalística. A correção e a fidelidade dos dados são, ou deveriam ser, inegociáveis. A menos, talvez, quando se trata de gente chata, assuntos desimportantes ou detalhes irrelevantes.

Recentemente fui a um programa de TV que se dizia secular, apesar de ser gravado e transmitido por uma rede evangélica. A despeito da presença óbvia de descrentes diante das câmeras durante duas horas, o programa se intitulava “Existem ateus?”. A tática da negação da existência pareceu ter funcionado muito bem, e precisei comparar os ateus ao chupa-cabras para que a produção entendesse quão infeliz era sua proposta e prometesse uma mudança. Mas o nome continuou o mesmo, e a matéria de abertura colhia respostas populares à pergunta “o que você acha de ainda hoje existirem ateus?”. O mediador do programa, um pastor que “não está lá como pastor”, teve a delicadeza de não repetir a pergunta aos convidados. Em o nome de o senhor Jesus, é claro.

Clichê popular

Não tenho notícia se o instituto Barna Research é confiável, mas, em 2002, publicou dados que entendo muito bem e podem ser consultados em <http://www.barna.org/cgi-bin/PagePressRelease.asp?PressReleaseID=119>: entre quatro grupos cristãos e os ateus/agnósticos norte-americanos, os últimos são os que se consideram mais estressados (42% ante 16% a 33% dos demais grupos), menos satisfeitos com suas vidas (68%, ante 75% a 91%), mais preocupados com o futuro (68% ante até 54%) e mais solitários (14% ante até 8%).

Aqui não deve ser muito diferente. Não sei se ateísmo e pessimismo são causa e efeito, efeito e causa, ou ambos efeitos de um terceiro fator. Mas acredito que há excelentes motivos para aborrecer-se num país em que jornalistas não têm o menor pudor de publicar opiniões próprias e de terceiros no sentido de que os criminosos “não têm deus no coração”. Dizer que um meliante “é nordestino”, qualificar um serviço “de preto” ou se referir a “um judeuzinho” são, felizmente, atitudes que geram comoção nacional e dão cadeia. Mas o desprezo pelo ateísmo passa nas mais brancas nuvens e não faz ninguém piscar, mesmo fora dos circuitos evangélicos.

Diz-se dos ateus hoje o que por muito tempo se disse dos negros e ainda se diz dos homossexuais: que são moralmente e até intelectualmente inferiores. Os negros ainda podiam tentar se defender alegando não terem culpa de sua condição. Os ateus, por outro lado, são deficientes por opção! Só podem ser criminosos, mesmo.

É óbvio que os maiores opositores do ateísmo são os religiosos e as igrejas, historicamente grandes promotores do escravagismo, do anti-semitismo e da homofobia. Hoje em dia, a maior parte das igrejas cristãs renega suas raízes escravocratas e anti-semitas. O judaico-cristianismo e o islã são duas das raras instituições que ainda atacam abertamente os homossexuais e/ou a homossexualidade, junto com a Ku Klux Klan e os grupos neonazistas. O fato de, apesar desse posicionamento, a religião ser invariavelmente tratada com todo respeito pela mídia, é um feito que não tem par.

Tome-se como exemplo o comportamento da Folha de S.Paulo. Seu atual ombudsman apontou um comportamento enviesado em edição recente do jornal quando uma seção dedicada à Bíblia, a cargo de um católico, fez recomendações de leitura que não contemplavam outros pontos de vista. Ele apontou até o favorecimento em espaço gráfico que algumas religiões receberam em detrimento de outras (“Para reflexão”, <http://www.teste.observatoriodaimprensa.com.br/artigos/voz251220022.htm>). Confesso que sua postura me pareceu rigorosa demais. Afinal, é difícil dividir espaço de maneira rigorosamente igual, e o pluralismo é sempre irreconciliável com o dogma.

Mas compare-se esse cuidado com o especial online de 2001 sobre
religião (<http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/2001-religiao.shtml>).
Foram abordadas dez religiões e o ateísmo. Quase todas
elas mereceram um logotipo próprio em uma caixa com destaque,
ao passo que só um olho mais atento descobriria também
a seção de ateísmo, a partir de um quadro de
links à esquerda que não pertence à seqüência
do texto.

Mas o conteúdo é mais revelador ainda. Até a página sobre Santo Daime, que mereceu um link bastante visível, reconhece ser comum “que pessoas, mesmo as mais experientes, vomitem ou tenham fortes diarréias durante os rituais que podem se estender por até 14 ou 15 horas”. Mas a julgar pelo tom impessoal do texto, nem parece que estamos falando de pessoas que ingerem psicotrópicos com motivos bastante elaborados.

O hinduísmo, com seus 0,0018% da população brasileira, teve posição visível na página. O islã também ganhou seu espaço. A reportagem repete o popular clichê de que “a mesma doutrina que ensina a não-violência e o bem também pode ser distorcida por fanáticos”. É verdade que os preceitos de Maomé “podem ser bem ou mal interpretados”, como de resto tudo na vida, mas o texto não fornece uma única evidência da suposta cordialidade do islamismo.

Quando o texto da Folha foi escrito, o Taleban estava no poder havia cinco anos, as torres do World Trade Center haviam sido derrubadas algumas semanas antes e, segundo Amir Tahiri, do Politique International, de Paris, das 30 guerras então em curso, 28 envolviam muçulmanos. Portanto, mais do que nunca seria preciso fundamentar muito bem a afirmação de que o islamismo é não-violento.

Nenhuma resposta

É sempre bom lembrar que indivíduos islâmicos podem ser violentos ou pacíficos, assim como religiosos ou arreligiosos de todas as cores e matizes. Mas o que está em questão é o islamismo, então cabe analisar o que dizem seus textos sagrados.

Similarmente ao cristianismo, o islã tem citações para todos os gostos, do angelical ao hediondo, do amor ao assassinato em massa. E como tudo o mais em religião, muitos crêem sem ver que esses textos são só de paz e amor. Ofereço uma pequena contraprova dos textos muçulmanos, em tradução livre:


“Lembra que teu Senhor inspirou os anjos (com a mensagem): ?estou contigo. Dai firmeza àqueles que crêem. Eu instilarei terror nos corações dos descrentes. Golpeai-os acima do pescoço e cortai as pontas dos seus dedos?.” Surah 8:12

“Contra eles [os descrentes] disponha sua força ao máximo de suas capacidades, incluindo cavalos de guerra, para instilar terror aos (corações dos) inimigos.” Surah 8:60

“Mas quando os meses proibidos se passarem, então lute e mate os pagãos onde quer que os encontre, e os capture e cerque, e fique a sua espera em todo tipo de estratagemas (de guerra)” Surah 9:5

“Lutai contra aqueles que não crêem em Alá ou no Último Dia… (mesmo se forem) Pessoas do Livro [judeus e cristãos], até que paguem a Jizya [imposto cobrado de não-muçulmanos] com voluntária submissão, e se sintam subjugados.” Surah 9:29

“Perguntou-se ao Apóstolo de Alá ?qual a melhor ação de todas??, e ele respondeu ?acreditar em Alá e seu Apóstolo [Maomé]?. O inquiridor então perguntou ?e qual a segunda melhor??, e ele respondeu ?participar da Jihad em favor de Alá?”. Bukhari 1:2:25

“O Apóstolo de Alá disse ?recebi o mandamento de lutar com as pessoas até que digam ?ninguém pode ser adorado senão Alá?.” Bukhari 4:52:196

“Disse o Profeta: ?Aquele que participa [em batalhas sagradas] em nome de Alá e nada o motiva a não ser a crença em Alá e seus Apóstolos será recompensado por Alá com uma recompensa, ou espólio (se ele sobreviver) ou entrará no Paraíso (se ele for morto em batalha como mártir). Se eu não achasse isso penoso para meus seguidores, então eu não ficaria para trás em nenhuma saryia [uma espécie de incursão militar] que acontecesse em razão de uma Jihad e teria adorado ser martirizado pela causa de Alá e entao revivido, e depois martirizado e revivido, e de novo martirizado em Seu nome?.” Bukhari 1:2:35


E há muitos outros exemplos, como a recomendação de apedrejamento de adúlteros, penas de mutilação, morte a apóstatas, proibição da pena de morte a muçulmanos que matem infiéis, absurdos científicos de todos os tipos. Maomé em pessoa também deu diversas mostras de crueldade e violência. Não sei que tipo de “má interpretação” seria necessária pra se pensar mal do islamismo. Apesar de tudo isso, a Folha tratou esse credo, e todos os outros, com todo respeito. Publicou textos puramente descritivos, escritos por jornalistas, sem quaisquer menções desonrosas ou julgamento de valores.

Essa é uma política jornalística plenamente
justificável. O curioso é que ao mesmo tempo o escondido
texto sobre ateísmo (“Gratry e o ateísmo”, <http://www1.folha.uol.com.br/folha/almanaque/leituras_10abr01.shtml>)
tenha sido escrito por um filósofo francês morto em
1872. Católico. O trecho mais descritivo diz o seguinte:


“O ateísmo, teórico e prático, é um vício profundo, ou, em termos mais claros, o vício radical do coração e do espírito humano”.


Vamos ver se eu entendi bem: as religiões que drogam, que mutilam e que matam são pintadas somente naquilo que não lhes é desfavorável por jornalistas isentos. O ateísmo, que não possui sequer algum tipo de doutrina, ao invés de ser descrito é atacado virulentamente pelos seus maiores opositores. É bastante razoável supor que essa brutal diferença de tratamento entre a religião e o secularismo também se reflita em diferenças artificiais de visibilidade. Isso explicaria por que é que mesmo os grupos religiosos têm muito mais espaço do que os ateus, na mídia e na sociedade, mesmo quando representam frações bem menores da população.

Muitos meses atrás mandei um e-mail de protesto ao jornal pedindo providências, e dei conhecimento ao ombudsman. Não tive nenhuma resposta além da menção de encaminhamento. E nenhuma providência foi tomada, pois as páginas continuam no ar exatamente como antes. Atitudes desse calibre só poderiam vir mesmo é de gente com muito deus no coração.

(*) Engenheiro, membro da Sociedade da Terra Redonda <http://www.str.com.br>