Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Luiz Caversan

QUALIDADE NA TV

ASPAS

BOICOTE E BAIXARIA

"Uma janela para o inferno", copyright Penstata <http://www.folha.com.br/pensata>, 20/4/2001

"Quando tinha cerca de 10 anos de idade, nos anos 60, minha mãe chegou a me levar ao médico por um motivo no mínimo original: achava que eu estava viciado em televisão. Naquela época, a TV brasileira tinha o jeitão de uma adolescente e, talvez influenciada pela pouca idade, era um prato cheio para a criançada: desenhos animados granel e seriados a granel. Todo aquele mundo de Hanna e Barbera, Pica-Pau, Zé Colmeia, Rin-Tin-Tin, Nacional Kid, Vigilante Rodoviário etc etc. era mais que uma justificativa para eu ficar horas e horas defronte à telinha; tratava-se de verdadeira adoração. Daí a preocupação da zelosa dona Júlia, que temia os efeitos perniciosos que eventualmente a TV (ou pela menos sua luz, dizia ela) pudesse causar na minha mente então em formação. Claro que eu sabia que a TV brasileira está infestada de lixo. Já abordei inclusive neste espaço a exploração da sexualidade da mulher, por meio das popuzudas, como exemplo da apelação vigente. Lixo que, aliás, inspirou a criação de uma corrente na internet, propondo o boicote à televisão neste sábado, entre 20h e 20h15. Imagino que será mais uma louvável iniciativa que não vai dar em nada. Uma pena, porque, pelo que pude ver na TV por esses dias, há motivo de sobra para protestar.

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"Guerra do mertiolate", copyright no, 19/04/01

"Você já deve ter recebido o e-mail convocando para o Dia Nacional de Protesto Contra a Televisão – e logo neste sábado, 21, o único dia que você tinha para se jogar no sofá e se dopar com a coisa. Você já deve ter visto também a notícia de que proibiram o mertiolate – e justo agora que você cortou o dedão da mão direita com uma folha assassina no escritório. Pois, então. Percebe que são acontecimentos iguais? Uma vida inteira consagrada a curar com o mercuriozinho qualquer ferimento, físico ou da alma (um amigo-poeta passava mertiolate no peito a cada punhalada amorosa, e ficava bom), e o Zé Serra quer te convencer que era só frescura, tintura. Semana que vem, prepare-se, ele vem com a descoberta de que o Óleo de Fígado de Bacalhau também não fortalecia nem dava mais memória aos meninos dos anos 50 e 60. O emplastro Sabiá, então, coitado, que se cuide. Os técnicos do Ministério da Saúde estão prestes a concluir que ele não serve para nada quando o mal é o da terrível espinhela caída. Zé Serra vai tirar o mertiolate dos postos de Saúde e país vai ficar estarrecido com o que se seguirá: os velhinhos continuarão a morrer de madrugada na fila. É a eterna paranóia de culpar o vermelho. O mertiolate não tem anti-séptico nenhum, da mesma maneira que não há qualquer bruxa prestes a invadir o quarto – mas, como sabe a mamãe, na hora de convencer uma criança a dormir, vale tudo. Deixem o mertiolate, deixem o Sílvio Santos em paz.

Se a convocação para desligar a televisão fosse para esta quinta-feira, 19, Dia do Índio, a coisa seria mais convincente e pelo menos jogaria com o humor. Ver televisão, com o novo livro do Ruben Fonseca e o CD do Macalé cantando Moreira da Silva quentinhos nas lojas; ver o Guma cercando a Lívia com o novo restaurante do Rodolfo Bottino em Ipanema servindo um ravioli de rabada a bom preço; francamente, ver TV com tudo isso acontecendo pode parecer um programão de índio Touro Sentado. Mas esse ranço culturalista-nojinho de reescrever a piada e colocar o Casseta e Planeta no lugar do bode, como se o mau cheiro da sala viesse dali, francamente não cola. É preconceito elitista. A culpa lá em cima não é do vermelho, e aqui embaixo não é do povão. Diversão não se regula. O importante é dar opção. Nesta quarta-feira havia um especial sobre Anthony Hopkins e o teatro inglês na GNT e – meninos, o NO. me paga uma fortuna para isso, eu vi – , um cidadão, João da Silva, correndo, com as armas que tinha, atrás do milhão do Silvio Santos. Ele não conseguiu responder nenhuma das questões que seguem: um acordo franco-ítalo-brasileiro reúne Alemanha, Áustria e Brasil? Páscoa marca o fim das férias ou da Quaresma? Como é o nome do tracinho que separa uma palavra composta? Travessão? O Diário de Anne Frank relata uma receita de bolo? Definitivamente, João da Silva vai cair pra trás quando souber que o mertiolate não cura. E televisão desligada em sua casa, só com duas condições: 1) quando todos os canais estiverem passando especiais sobre Anthony Hopkins no teatro inglês; 2) quando os internautas também desligarem por um dia seus computadores em protesto contra o baixo nível dos sites na rede."

"Violência, de Rambo a Hamlet", copyright Folha de S. Paulo, 22/04/01

"Hoje eu proponho uma questão: por que Shakespeare é melhor do que Stallone? É claro que isso é uma provocação, mas o caráter reptante da pergunta não a torna menos válida. Stallone e congêneres como Schwarzenegger, que tomaram de assalto a grade de filmes da TV, costumam ser criticados pela violência dos enredos. Não tenho como negar que as películas sejam violentas, mas me pergunto se é o excesso de tiros e mortes que as impede de ser ?obras de arte?.

Ninguém duvida de que ?Hamlet? esteja entre as mais perfeitas expressões da literatura universal. Bem, o doce príncipe é um louco homicida. A cena final é uma carnificina. Todos os personagens centrais e vários secundários morrem. A peça termina por falta de protagonistas.

Shakespeare não é um caso isolado. A ?Ilíada? de Homero poderia ser resumida como ?a descrição sistemática e copiosa de dez anos de chacina?. A riqueza de detalhes com que o pai da literatura ocidental narra massacres é tamanha que assustaria até um fã de Rambo.

Vale a pena reproduzir o trecho em que o rei de Creta, Idomeneu, mata Erimante: ?O bronze cruel justamente na boca enterrou de Erimante Idomeneu, trespassando-lhe a lança comprida a cabeça e indo por baixo do cérebro a ponta de bronze, que os brancos ossos lhe quebra, bem como inda os dentes; os olhos se lhe enchem de negro sangue, que jorra abundante das fauces abertas e das narinas?.

Ok! Shakespeare era um libertino e Homero, um pagão. Então peguemos Dante, um poeta acima de qualquer suspeita: religioso e entusiasta do amor platônico. Ora, os castigos que ele concebeu para ilustrar o inferno são de um sadismo patológico. Tomemos o caso dos aduladores (canto 18), que, na geografia infernal de Dante, estão condenados a chafurdar na merda por toda a eternidade.

Se o melhor da literatura está recheado de violência, não é ela que torna as fitas de Schwarzenegger maus filmes. Essa constatação, que deveria ser óbvia, não impede que muitos propugnem pela censura, doravante chamada de ?controle social dos meios de comunicação?.

A onda contra a violência na TV tem origem nos anos 60. Mais especificamente, no psicólogo canadense-americano Albert Bandura e suas pesquisas com joões-bobos, em que ele exibia a um grupo de crianças imagens de jovens espancando esses bonecos. Como era de esperar, as crianças, quando colocadas diante de um joão-bobo, imitaram o que viram no filme. Assim, Bandura concluiu que a agressividade é um comportamento aprendido.

O psicólogo ainda relativizou um pouco suas conclusões. Frisou que, mesmo quando privadas de TV, crianças aprendem a ser violentas. Seus seguidores não tiveram esses cuidados. Huesmann, por exemplo, ?mostrou? que crianças, quando expostas a mais TV aos oito anos, têm mais chances de ser condenadas por algum crime aos 30. Há problemas aqui. Para começar, há um intervalo de 22 anos entre a suposta causa e o suposto efeito. Depois, é possível que a criança veja mais TV porque a mãe vive internada devido às surras que recebe do pai. A criança aprendeu a ser violenta com a TV ou com o pai?

Stallone não é pior do que Shakespeare porque o Rambo dá mais tiros do que Hamlet. Desde Kant não podemos mais vincular o belo a valores morais. Na estética kantiana, que oferece uma resposta a nossa pergunta inicial, o belo é um objeto de prazer universal e desinteressado. Numa simplificação exagerada, podemos dizer que o prazer é o resultado de um movimento da imaginação segundo as regras do entendimento. Em geral o prazer surge quando se realiza uma finalidade, ou seja, quando imaginação e entendimento concordam. Mas, na estética, a imaginação não é limitada por conceitos. Há finalidade, mas sem um fim. O prazer que resta é desinteressado (sem conceitos) e universal (de acordo com o entendimento).

Só que Homero, diferentemente de Bruce Lee, é não só belo, mas sublime. O sublime difere do belo por proporcionar um prazer negativo. A imaginação, de início, sofre quando se depara com a infinitude, por ser incapaz de representá-la. A seguir, a razão vem em socorro da imaginação e propõe o conceito de infinito, que não pode ser representado, mas pode ser pensado. A dor dá lugar a satisfação.

Stallone pode agradar muitos, mas isso não o torna belo. Ele não oferece prazer desinteressado e universal. Tampouco é sublime, pois não nos põe diante do infinito.

Infelizmente, é impossível criar um ambiente asséptico para crianças. Gostemos ou não, temos de conviver com a violência. Administrá-la de acordo com regras está, ao lado do tabu do incesto, entre as estruturas que os antropólogos identificaram como universais na humanidade. As condições em que é válido usar de violência variam de sociedade para sociedade, mas sempre há um conjunto de normas. É o que nos distingue dos babuínos.

Longe de mim sugerir que Van Damme seja um Homero, mas, houvesse o famoso ?controle social? à época de Homero, seus versos não seriam os mesmos, e Homero não seria Homero. E, num mundo sem Homero, não valeria a pena ser mais do que um babuíno."

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