Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Luiz Chagas

A DITADURA DERROTADA

“O sacerdote e o feiticeiro”, copyright IstoÉ, 10/11/03

“Por trás do apelido Alemão se escondia a ascendência do militar sisudo e seguidor contumaz dos manuais. Mais erudito, o codinome Corca era por sua vez uma derivação nada sofisticada de Corcunda de Notre Dame, o personagem de Victor Hugo. Assim eram conhecidos nos quartéis os generais gaúchos Ernesto Geisel, que presidiu o País entre 1974 e 1979, e Golbery do Couto e Silva, seu chefe do Gabinete Civil, a eminência parda sob siglas como ESG – Escola Superior de Guerra, SNI – Serviço Nacional de Informações, e Ipês – Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais, entre outras que ainda causam calafrios. É em torno desses dois personagens considerados taciturnos e enigmáticos que gira o esperadíssimo A ditadura derrotada (Companhia das Letras, 554 págs., R$ 49,50), terceiro momento do painel monumental em cinco volumes sobre o regime militar no Brasil, escrito pelo jornalista Elio Gaspari. Os anteriores, A ditadura envergonhada e A ditadura escancarada, juntos intitulados As ilusões armadas, cobriam o período compreendido entre a deposição de João Goulart, em 1964, e a aniquilação da guerrilha do Araguaia, em 1973. Foram escritos com o auxílio de 30 mil fichas armazenadas em computador, fruto de mais de 300 entrevistas e da leitura de cerca de 500 livros. Para escrever A ditadura derrotada, primeiro volume do tríptico O sacerdote e o feiticeiro, Gaspari se tornou depositário de cinco mil documentos do Arquivo Golbery e do diário de Heitor Ferreira, secretário particular de Geisel, ?o sacerdote?, e de Golbery, ?o feiticeiro?. Detalhe que, por si só, já torna a obra espetacular, já que trata de conversas e de assuntos cujo conteúdo nem mesmo os envolvidos sabiam.

Na longa relação de desavisados desponta o economista Delfim Netto, ministro da Fazenda do general Emílio Médici fritado durante a canonização de Geisel. O Gordo, como era conhecido, foi chamado por Golbery de ditador, alguém sem escrúpulos para usar o poder, e acusado de manipulador de preços e índices. Mais tarde, os dois seriam colegas de Ministério no governo Figueiredo. Não fica de fora a economista Maria da Conceição Tavares, presa no aeroporto do Galeão, em 1974, quando embarcava licitamente para o Chile. Quando Geisel quis saber dela e ninguém soube responder, falou em ?botar a metade do Exército no olho da rua?. Os casos pululam pelas páginas ricas em notas de rodapé. Gaspari já havia adquirido o hábito de jantar com Geisel semanalmente no restaurante Rio?s, localizado no aterro do Flamengo, quando começou a escrever, em 1984, um ensaio de ?no máximo 100 páginas? sobre os dois militares que, tendo ajudado a construir a ditadura entre 1964 e 1967, a desmontaram entre 1974 e 1979. Embora medisse 1,77 m, Geisel aparentava muito mais. Ao caminhar pelo restaurante, não havia quem não abaixasse os olhos, o que fazia com que ele, num arremedo de humor involuntário – já que não tinha humor -, comentasse: ?Isso aí é medo do AI-5.?

Grosso modo, quem olhava para Geisel enxergava um militar de alta patente. Golbery, do seu lado, podia ser confundido com um gerente de banco. Os dois se conheceram nos anos 1950 na Escola Superior de Guerra e a amizade que devotaram um ao outro se deu com a secura típica de temperamentos fechados e subordinados à hierarquia do Exército. Circunspecto por natureza, o ex-presidente tornou-se inacessível a partir da morte do filho mais velho, Orlando, aos 16 anos, atropelado por um trem em São Paulo, em 1957. Mais falador, desde que o interlocutor o interessasse, Golbery, pai de dois filhos, era casado com uma mulher ciclotímica, com ?um problema psiquiátrico?, dizia, mas capaz de insights políticos não raro seguidos pelo marido. Seu nome era Esmeralda, como a heroína do livro de Victor Hugo. Daí o apelido, Corca, de Golbery, também conhecido como GeneDow, já que era presidente da Dow Chemical do Brasil – Geisel presidia a Petrobras.

Tais fatores os afastavam do convívio social. Eles não recebiam, não visitavam, nem sequer iam ao cinema. Mas Geisel foi visto chorando no enterro do amigo. No entender de Gaspari, eram pessoas simples. E é isso o que choca. Num dos trechos mais importantes de A ditadura derrotada fica-se sabendo que Geisel, antes de ser empossado em fevereiro de 1974, ouviu do general Dale Coutinho que o ?negócio? – a repressão à subversão – ?melhorou quando começamos a matar?, numa referência ao fim dos ?confrontos armados? e dos ?suicídios? suspeitos e ao surgimento da figura do ?desaparecido?. ?Ó Coutinho?, disse o futuro presidente, ?esse troço de matar é uma barbaridade mas eu acho que tem que ser.? Disse isso com a mesma simplicidade com que repeliu o golpe dentro do golpe, ao vê-lo se desenhando após a vitória da oposição nas eleições de 1974. ?Pois não fizemos uma eleição? É isso e pronto!? O resto das revelações fica para A ditadura encurralada, provável título do próximo volume de O sacerdote e o feiticeiro, previsto para ser lançado em março do ano que vem, cobrindo até a demissão do general Sylvio Frota, em 1977, pá de cal no autoritarismo. Assim seja.”

“?Esse negócio de matar é uma barbaridade, mas acho que tem que ser?”, copyright Veja, 12/11/03

“A frase acima foi dita por Ernesto Geisel poucos dias antes de assumir a Presidência da República como o quarto general do regime militar iniciado em 1964 por Castello Branco e encerrado em 1985 por João Baptista Figueiredo. Em sua brutalidade simples, essas palavras ditas a um general da linha dura, de cujo apoio ele precisava para começar a governar, não teriam força para demolir sozinhas a imagem deixada por Geisel. O penúltimo presidente militar passou à história como um governante austero, incontrastável, empenhado na abertura política, enfim, um inimigo dos extremismos. Revelada pelo jornalista Elio Gaspari em A Ditadura Derrotada, o terceiro volume de sua grandiosa reconstituição do ciclo dos generais, a frase se junta ao relato de novos fatos e afirmações cujo conjunto obriga agora que Geisel seja examinado por ângulos menos favoráveis. Gaspari expõe a decisão de Geisel de manter na chefia do Centro de Informações do Exército (CIE) o general Milton Tavares. ?Miltinho?, como era conhecido, foi o idealizador da política de eliminação física dos oponentes armados do regime, que ele colocou em prática sob o antecessor de Geisel, o general Garrastazu Médici. Conclui Gaspari: ?Ao defender a permanência de Miltinho na chefia do CIE, é certo que Geisel conhecia, apoiava e desejava a continuação da política de extermínio?.

Trechos do livro

Quando o deputado Ulysses Guimarães, morto em 1992, comparou Geisel ao ditador de Uganda Idi Amin Dada, até a oposição moderada ao regime ficou chocada. Ulysses se indignara em um discurso contra o fechamento por Geisel do Congresso Nacional em 1977 no episódio que ficou conhecido como Pacote de Abril. A elite política e empresarial brasileira sabia que o ?Alemão?, apelido de Geisel desde os tempos de cadete de artilharia no Rio Grande do Sul, estava empenhado em uma luta surda contra os companheiros de farda pertencentes aos ?bolsões radicais mas sinceros da Revolução de 1964?. Era assim que o Alemão descrevia os militares convencidos de que a ditadura poderia durar para sempre. Geisel e seu alter ego político, o general Golbery do Couto e Silva, tinham consciência de que os arranjos autoritários não podem se perpetuar – pelo menos os montados pela direita. Como se sabe, ditaduras de esquerda não costumam ter data para acabar. Geisel procurava uma saída honrosa para a instituição que amava, o Exército. Ele se horrorizava com a quebra da hierarquia. Militares ligados ao porão, torturadores e assassinos, estavam tendo ascendência sobre os demais, mesmo seus superiores. A regularização institucional do país, na visão de Geisel, derivaria dessa saída. Ele e Golbery ?queriam restabelecer a racionalidade e a ordem?, como escreve Gaspari no texto explicativo que abre o livro. No mesmo ano em que fechou o Congresso, Geisel demitiu o general Sylvio Frota do Ministério do Exército, que o desafiava por ver no presidente ?apenas um delegado da desordem que denominavam ?Revolução?, como relata A Ditadura Derrotada.

As pessoas bem informadas no período Geisel tinham o presidente como um aliado da redemocratização. Efetivamente, ele conduziu o regime nessa direção. Por essa razão, o conteúdo das gravações reveladas pelo livro é espantoso. Claro que elas surpreendem mais quem acreditava que o Brasil dos militares, tendo de enfrentar guerrilheiros de Terceiro Mundo, poderia ter generais do Primeiro. Geisel era um homem complexo, de formação luterana, convicto das virtudes da ordem mas descrente da democracia nos moldes que ela era praticada no Brasil antes de 1964, com voto direto para presidente. Geisel e Golbery achavam preferível para o Brasil um regime de liberdades democráticas e respeito aos direitos humanos mais aparentado com o sistema inglês de voto indireto. Com graus variados de convicção, ambos sabiam que isso era impraticável nos trópicos. A revisão da personalidade de Geisel que as revelações de A Ditadura Derrotada forçam não afeta o julgamento do curso da história que o general ajudou a traçar. Uma onda revisionista arranhou recentemente a biografia do presidente americano Abraham Lincoln quando se descobriu que os primeiros rascunhos da Proclamação da Emancipação feitos por ele previam a libertação dos escravos apenas dos Estados rebelados do sul e determinavam sua deportação. Como todo integrante da elite no século XIX, Lincoln acreditava na superioridade da raça branca, convicção que, para ele, não conflitava com a idéia de que todos os homens eram iguais perante a lei.

O livro de Elio Gaspari sobre Ernesto Geisel, morto em 1996, cria, obviamente em dimensões menores, um conflito de idéias parecido com o do presidente racista que aboliu a escravidão. Geisel, o general da abertura democrática, apoiava o assassínio político. Geisel já admitira o uso da tortura em situações extremas em um depoimento dado à pesquisadora Maria Celina d?Araújo e transformado em livro pelo Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea (CPDoc) da Fundação Getúlio Vargas. Agora, sabe-se que ele concordava com a premissa dos porões de que o governo travava uma guerra contra os insurgentes da luta armada, e a eliminação física dos militantes não era apenas o resultado inevitável de alguns confrontos, mas uma meta a ser perseguida. Pelo rigor da compilação e pela qualidade da fonte primária das informações, A Ditadura Derrotada cria um paradigma para os historiadores acadêmicos do Brasil. A obra será completada com mais dois volumes. Ela se baseia em vasta documentação recolhida pelo autor em entrevistas com Geisel e nas cópias do diário de Golbery e de Heitor Ferreira, colaborador dos dois generais, que entregou a Gaspari transcrições de conversas que encheriam um livro de 1.500 páginas. Elio Gaspari foi diretor adjunto de VEJA e hoje assina uma coluna publicada na Folha de S. Paulo, em O Globo e em outros jornais.

Com a política de Geisel esmiuçada, seria muito útil que os pesquisadores examinassem com o mesmo rigor seu governo do ponto de vista econômico. Sem chegar a ser o que o francês Raymond Aron chamava pejorativamente de um ?ideocrata?, um burocrata ideológico, Geisel imprimiu a sua administração uma objetividade vital para o sucesso de operações militares, mas sem muita validade fora dos quartéis. Ele encarou a Presidência como uma missão militar que deveria ser levada a cabo com firmeza e determinação. O problema foi que ao definir a missão Geisel ignorou que o mundo seguia em direção contrária. Na política externa, quando se gestavam as sementes do que viria a ser a globalização, decidiu que o Brasil deveria ser o ?primeiro país do Terceiro Mundo e não mais o último do Primeiro?. A privatização já se apresentava como uma saída para os países paralisados por governos centrais, e Geisel apostou ainda mais em estatais. Assustadas com o choque do petróleo, nações muito mais ricas que o Brasil começaram a cortar seus déficits e equilibrar as contas do país. No Brasil, o governo continuou apostando em obras que exigiam gastos imediatos e só dariam retorno no longo prazo. ?A tragédia administrativa do governo Geisel foi que os projetos que deveriam dar retorno imediato não deram e os que dariam retorno a longo prazo não puderam ser concluídos antes que o Estado entrasse em falência?, escreveu o economista, diplomata e político Roberto Campos. A síntese da miopia do governo Geisel foi o acordo nuclear com a Alemanha que deveria cumprir diversos objetivos: mostrar a independência do Brasil em relação aos Estados Unidos, polir a imagem de grande potência do Terceiro Mundo e nos colocar no domínio do ciclo atômico. Os alemães venderam ao Brasil uma tecnologia que nunca saiu do laboratório, nem na Alemanha. Ninguém resumiu melhor o fracasso do acordo do que o cientista nuclear Borisas Cimbleris: ?Existem a fissão e a fusão nuclear. O governo Geisel inventou uma nova via para o átomo: a ficção nuclear?.

Geisel exasperava de tal forma seu ministro da Fazenda, Mario Henrique Simonsen, que ele pediu as contas e foi passear na praia em Copacabana. Simonsen alertou Geisel de que ele assumira o governo com o mundo vivendo as ondas recessivas do primeiro choque do petróleo, de 1973. O preço do barril saltou de 2 para 12 dólares. Simonsen disse também ao presidente que a fase desenvolvimentista acabara. Geisel o ignorou. O Brasil continuou a viver como se o petróleo ainda custasse 2 dólares o barril. O resultado foi que, ao entregar o governo a Figueiredo, Geisel já havia embicado o país para um desastre financeiro. Em 1982 o Brasil quebrou. Flávio Versiani, professor de economia da Universidade de Brasília (UnB), especialista em história econômica, explica: ?Quando o governo perdeu a eleição em 1974, Geisel decidiu que o regime não poderia sobreviver sem grandes obras a apresentar. Torrou os petrodólares e aumentou o endividamento. Com a eclosão da segunda crise do petróleo, em 1979, veio o aumento brutal dos juros americanos. A dívida se tornou impagável?.

Numa conversa gravada em 16 de fevereiro de 1974, que Gaspari reproduz em seu livro, Ernesto Geisel fala ao general Dale Coutinho sobre o Ato Institucional número 5 (AI5), baixado em 1968, que aumentava ainda mais os poderes discricionários dos generais-presidentes. A gravação foi obtida por Gaspari nos arquivos de Golbery do Couto e Silva e Heitor Ferreira.

?Eu não abro mão do Ato 5. O Ato 5 é um cajado. Eu sou besta de abrir mão desse negócio? Eu sei lá o que que vem. Como essa história de abertura e descompressão. Ah, eu sou um sujeito profundamente democrático. Toda a minha vida fui. Eu sempre fui um homem muito simples, despido de coisas, e cansei de ir com minha mulher fazer compra na feira. Agora, não sou nenhum burro de amanhã fazer uma vasta abertura, fingir aí uma democracia e depois ter que recuar dois, três, quatro passos. Eu não vou recuar. Eu só vou caminhar para a frente, devagar, para não ter que recuar, não é? Seria uma beleza eu chegar: não há mais censura, e agora o troço é vontade, e a Câmara vota como quer, e não sei o quê. E no dia seguinte está o estudante fazendo bagunça na rua, está o padre fazendo meeting, sei lá o quê.?

Nos arquivos de Golbery e Heitor Ferreira, Gaspari também encontrou uma gravação de uma conversa datada de 1974, entre Geisel (já ungido presidente) e o chefe de sua segurança, tenente-coronel Germano Arnoldi Pedrozo. Na conversa, descrita por Gaspari como uma ?prosa fiada?, Pedrozo informa Geisel a respeito de um grupo de perseguidos políticos que, proveniente do Chile, passara pela Argentina e fora capturado pela repressão brasileira no Paraná:

?Pegaram alguns??, perguntou Geisel.

?Pegamos. Pegamos. Foram pegos quatro argentinos e três chilenos?, respondeu Pedrozo.

Geisel: ?E não liquidaram, não??.

Pedrozo: .?Ah, já, há muito tempo. É o problema, não é? Tem elemento que não adianta deixar vivo, aprontando. Infelizmente, é o tipo da guerra suja em que, se não se lutar com as mesmas armas dele, se perde. Eles não têm o mínimo escrúpulo?.

Geisel: ?É, o que tem que fazer é que tem que nessa hora agir com muita inteligência, para não ficar vestígio nessa coisa?.?

Gaspari conclui: ?É improvável que Geisel só tenha tratado da matança nas duas conversas registradas, com Pedrozo e Dale Coutinho. Não se conhecem as conversas entre ele e seu irmão Orlando. Sabe-se que no início do governo convocou uma reunião em que o general Milton Tavares de Souza, chefe do CIE, contou, no mínimo, o que a tropa vinha fazendo no Araguaia. Ao defender a permanência de Miltinho na chefia do CIE, é certo que Geisel conhecia, apoiava e desejava a continuação da política de extermínio?.

?Tenho que viver com os políticos?

Na conversa gravada em fevereiro de 1974, e reproduzida por Gaspari, Geisel fala ao general Dale Coutinho sobre como o modelo político moldado pela ditadura havia se esgotado. Ele permitia a existência de apenas dois partidos: a Aliança Renovadora Nacional (Arena), de situação, e o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), de oposição.

?Na área política continuamos com a mesma droga. […] Todos nós, de um modo geral, temos uma repulsa ao político, mas o político é necessário. Nós não podemos ter os políticos só para dar uma fantasia, quer dizer, não vamos ter o político para chegar no dia lá e votar no general Geisel ou votar no Médici. Não é? Ou chegar no dia tal e votar a lei que o governo quer. Quer dizer, isso tem que evoluir. Eu não vou fazer, eu vou ver se consigo fazer um esforço para melhorar esse país, tem que trabalhar nesse sentido. Não vou dar aos políticos o que eles querem, não vou me mancomunar com eles, mas vou viver com eles, eu tenho que viver com eles. Porque senão como é? Nós vamos, nós temos a outra alternativa, que é ir para a ditadura. Então vamos fechar esse troço, vamos fechar o Congresso, vamos fechar tudo isso e vamos para uma ditadura, que é uma solução muito pior. Não é? Quer dizer, esse é um dos quadros em que a Revolução, no meu modo de ver a coisa, fracassou. […] Ora o sujeito vai conversar com os políticos, ora dar coice nos políticos, fecha o Congresso, abre o Congresso, e vivemos nessa porcaria. Temos que ver se melhoramos esse quadro, vamos ver se a gente consegue melhorar esse partido da Arena, vamos ver se a gente dá… porque em todo lugar onde você chega é um saco de gatos. […]?”

“Assassinatos de Estado”, copyright Época, 10/11/03

“?…Ó, Coutinho, esse troço de matar é uma barbaridade, mas eu acho que tem que ser (…) Nós vamos ter que continuar no ano que vem. Nós não podemos largar essa guerra. Infelizmente, nós vamos ter que continuar?

O Coutinho desta conversa era o candidato a ministro do Exército Vicente de Paulo Dale Coutinho. O autor da frase, o general Ernesto Geisel, futuro presidente da República, que o convidava para o cargo. Dali a um mês, março de 1974, eles iniciariam um novo governo. Geisel estava determinado a acabar com a ditadura, que se tornara feroz como nunca nas mãos de seu antecessor, Emílio Garrastazu Médici. Mas tratava da morte de adversários do regime como assunto burocrático – um programa administrativo a exigir certa continuidade.

Tempos estranhos. A vida humana tinha sido institucionalmente barateada, com assassinatos transformando-se em política de Estado. A revela&ccccedil;ão da conversa, gravada pelo próprio Geisel, está no livro A Ditadura Derrotada, do jornalista Elio Gaspari, lançado na semana passada. O diálogo enterra de vez a lenda do extermínio de ativistas da esquerda armada como fruto de excessos nos porões da repressão política.

ÉPOCA mergulhou nesses anos de trevas através de dois filhos em busca das histórias de seus pais. Conforme os documentos oficiais, ambos cometeram suicídio. Um, com um tiro na nuca. O outro, com quatro tiros no peito. Um era caçador de subversivos. O outro, caça.

O seqüestrador morreu oficialmente com ?um único tiro, com orifícios de entrada e de saída, dado encostado, direção da esquerda para a direita, levemente da frente para trás e quase horizontal?. A suposta arma, uma Beretta 9 milímetros, só apareceu para o exame da perícia 15 dias depois, acompanhada do projétil que teria causado a morte de Grenaldo. Os peritos concluíram que não havia ?elementos para se pronunciar a respeito?. No atestado de óbito, assinado pelo legista Sérgio Acquesta, a hora da morte é 22h34. Nesse horário, segundo o inquérito da Aeronáutica, realizado pelo coronel Renato Barbieri, Grenaldo estava vivo. Nas fitas gravadas com a comunicação entre o comando e o seqüestrador, a última mensagem ocorreu 25 minutos depois, às 22h59.

O delegado do Departamento de Ordem Política e Social (Dops) de São Paulo, Alcides Cintra Bueno Filho, registrou: ?Os agentes dos órgãos de segurança cercaram a aeronave e, quando conseguiram adentrar na mesma, o epigrafado, vendo frustrado seu plano de fuga e que seria preso, suicidou-se?. A execução de Grenaldo, depois de imobilizado, foi contada em detalhes pelos policiais aos presos políticos do DOI-Codi, em São Paulo, quando voltaram da operação aos gritos de alegria. A tripulação e o chefe da equipe de controle de vôo, Alberto Bertulucci, ganharam a medalha Mérito Santos Dumont, pelo comportamento exemplar no episódio. ?A ditadura decidiu que era suicídio e a gente teve de aceitar. Botaram um pano em cima?, disse Alcides, hoje aposentado da Varig. ?Era um ingênuo. Se deixou pegar numa situação estúpida dentro do avião?, conta Bertulucci, aos 79 anos. ?Virou piada: um seqüestrador suicidado com um tiro na nuca…? Grenaldo foi sepultado como indigente na cova 2.836 do Cemitério de Perus.

Seu filho tinha 4 anos. Na infância, o pai era citado apenas nas brigas familiares. ?Só podia ser filho de ladrão, mesmo?, dizia a avó ou o tio. Não lhe permitiam perguntas. Quando tinha 10 anos, sua mãe teve um acidente vascular cerebral e ficou com danos permanentes. Morreria cinco anos depois. Aos 13, ele encontrou a avó morta no quarto. Ficou sozinho com o tio, usuário de drogas. Conseguiu sobreviver a tudo, casou-se com Leila, colega de faculdade, e tem Paola, de 4 anos, e a filha adotiva Cristina, de 13.

RETRATOS DE UM SEQÜESTRO

As fotografias integram um inquérito da Aeronáutica recheado de contradições. À esquerda, o interior do avião em que o marinheiro foi assassinado. Acima, sua mala e o esconderijo, feito de capas de LPs, da suposta arma que utilizou no episódio

Grenaldo pouco sabia sobre a ditadura. Desde julho, atravessa as noites dissecando em livros os anos de chumbo. Depois, fala dormindo. Sonha que é um detetive. Tentou obter a carta-testamento do pai no inquérito da Aeronáutica, mas ela não estava lá. Procurou resgatar seus pertences na 1a Auditoria Militar de São Paulo. Só levou a informação de que os livros de registro foram destruídos por mofo e cupins. Busca a avó paterna que ainda vive, aos 88 anos, em São Luís do Maranhão. Ganhou, numa única noite, um pai e uma história – mas ainda são muitas as zonas de sombra.

José não sonhou mais com o homem executado no porta-malas do carro. Grenaldo precisa seguir sua busca. Ainda tem de identificar o pai entre os corpos das vítimas do regime resgatados da vala de Perus. Esse capítulo da história só acaba quando conseguir sepultar o pai. Corpos podem ser enterrados. A História, não.

O filho do caçador

Num domingo, começo dos anos 80, o adolescente Ênio Rocha Silveira viveu uma situação típica de sua convivência com o pai. Eles haviam combinado ir ao estádio do Morumbi para assistir a um jogo do Palmeiras. O pai chegou em cima da hora marcada, encostou o carro na frente do prédio e, sem descer, falou: ?Filho, hoje não vai dar. Eu tenho uma operação?. Em seguida, arrancou apressado. Um amigo do garoto, que estava junto, perguntou:

– Seu pai é médico?

– Não. É militar.

Ênio tem hoje 36 anos e lembra da cena como uma das inúmeras em que o pai trocou a família por obrigações profissionais, sem dar maiores explicações. Recorda que algumas vezes visitava seu local de trabalho, uma delegacia na Rua Tutóia, em São Paulo, onde era bem tratado por policiais. A exemplo de muitos órfãos dos anos 60 e 70, Ênio não sabe direito o que o pai fazia, nem por que morreu.

O pai chamava-se Ênio Pimentel da Silveira. Foi encontrado morto no dia 23 de maio de 1986, na casa que ocupava no Forte Itaipu, unidade do Exército na Baixada Santista. Tinha cravados no peito quatro tiros de revólver Taurus calibre 38, três deles disparados à queima-roupa. Conforme o Inquérito Policial Militar número 17/86, foi suicídio. Dezessete anos depois, o filho quer provar que não. ?Tenho certeza de que meu pai não se matou. Ele foi assassinado.? Ênio já contratou advogado para mover uma ação judicial que questionará o resultado do IPM. Vai alegar que ninguém consegue se matar com quatro tiros no peito.

A pedido de ÉPOCA, cinco médicos-legistas e quatro peritos examinaram os laudos que constam do IPM. Todos pediram que seus nomes não fossem revelados por razões éticas. Eles garantem que se trata de um caso de suicídio bastante incomum, mas possível. ?O laudo foi bem feito e não contém elementos que dêem base a questionamentos?, diz um perito com mais de 20 anos de carreira. Apenas um legista aposta em homicídio.

Ainda não é possível assegurar que Ênio Pimentel da Silveira seja uma vítima dos anos em que assassinar adversários era uma política de governo. Mas é certo que ele foi um dos algozes daqueles tempos – uma das figuras mais relevantes e misteriosas dos 20 anos que durou a ditadura militar. Entre 1969 e 1986, Ênio esteve à frente da Divisão de Investigações da Operação Bandeirante, do DOI-Codi (Destacamento de Operações Internas – Centro de Operações de Defesa Interna) de São Paulo e do Centro de Informações do Exército (CIE). Envolveu-se nas mais expressivas operações de combate à esquerda armada. ?Ele foi um dos homens de maior importância no sistema de repressão no país?, diz Marival Chaves, ex-sargento do Exército, que trabalhou no DOI paulista e no CIE sob seu comando durante cinco anos.

No começo dos anos 90, Ênio, o filho, trabalhava na prefeitura de São Paulo quando encontrou Maria Amélia de Almeida Telles, ex-militante do PCdoB, presa em 1972 por seu pai. Ela achou seu rosto familiar. ?Eu disse que o conhecia de algum lugar, mas ele respondeu: ?Você deve ter conhecido meu pai, o Doutor Ney?. Foi um choque?, conta Maria Amélia.

Pouca gente conheceu o pai de Ênio pelo verdadeiro nome. Doutor Ney Borges de Medeiros, ou simplesmente Doutor Ney, era o nome de guerra do capitão, major e depois coronel Ênio Pimentel da Silveira. Foi com esse disfarce que ele ficou famoso entre presos, policiais e militares que atuaram nos porões da ditadura. Estudioso dos movimentos de esquerda, defensor ferrenho da linha dura, soldado exemplar, citado por seus pares como ?extremamente arrojado e corajoso?, ele foi um especialista no setor de inteligência e um dos principais responsáveis pelo aniquilamento das organizações armadas.

A construção do temido Doutor Ney começou em 1969, quando o então capitão ofereceu-se como voluntário à Operação Bandeirante – a parceria público-privada em que o Estado entrava com homens e infra-estrutura, enquanto empresários paulistas davam dinheiro para bancar a caça aos terroristas. Seu trabalho consistia em grampear telefones, controlar informantes infiltrados, prender, torturar e até matar.

Na Oban, Doutor Ney aproximou-se do delegado Sérgio Paranhos Fleury, do Dops. Tornaram-se amigos, como mostra uma das fotografias que ilustram esta reportagem. Nela, os dois confraternizam com o coronel Dalmo Muniz Cirillo, do DOI paulista, igualmente apontado como torturador, num restaurante em São Paulo. ?Ney e Fleury eram como irmãos?, lembra o ex-sargento Marival Chaves. As famílias tornaram-se íntimas e visitavam-se nos fins de semana. ?O Fleury segurava o alvo para eu brincar de tiro ao alvo com uma arma de brinquedo?, conta Ênio.

Esse companheirismo pessoal e profissional fez com que Doutor Ney levasse para os meios militares as espertezas acumuladas pelo policial Fleury. A principal foi a infiltração nas organizações de esquerda. Consistia em prender militantes e fazê-los mudar de lado. Os ?cachorros?, como ficaram conhecidos, recebiam salário para continuar militando, mas como espiões do Exército. Foi através desse tipo de traição que organizações como a Aliança Libertadora Nacional (ALN) e o Partido Comunista do Brasil (PCdoB) foram praticamente dizimadas entre 1971 e 1974.

A parceria foi mais longe. Juntos, Fleury e Doutor Ney mantiveram cárceres privados, casas e sítios para onde eram levados os presos mais importantes. ?No cárcere privado, a organização não sabia da prisão e, quando o cara voltava convertido em cachorro, ninguém desconfiava?, conta um ex-policial do Dops. Um dos mais famosos desses cárceres foi o sítio 31 de Março, em Parelheiros, na Zona Sul de São Paulo, alugado de um amigo dos dois. Lá dentro, Fleury, Ney e seus comandados criaram seus ?cachorros?, torturaram e mataram.

Depois de desativado, o sítio foi usado para churrascos que reuniam as famílias de Ney, Fleury e amigos. Quando a Comissão de Desaparecidos foi ao local, nos anos 90, Ênio Rocha, o filho do Doutor Ney que trabalhava na prefeitura paulista, fez uma espécie de visita guiada. ?Eu tinha estado lá e mostrei tudo para o pessoal?, lembra ele.

São raros os ativistas de esquerda que passaram por cárceres privados e sobreviveram para contar sua história. Doutor Ney, pelo menos, não costumava deixar sobreviventes nas ações desse tipo. Mas no DOI, na Rua Tutóia, ele acabou reconhecido. Foi acusado, por exemplo, de ter participado da tortura e morte de José Júlio Araújo, da ALN, em 1972.

Ivan Seixas, o Teobaldo, ex-guerrilheiro do Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT), relata que ele e seu pai, Joaquim Seixas, o Roque, foram torturados pelo Doutor Ney em 1971. Depois de horas de suplício, Ivan foi levado pela equipe do DOI até sua casa. ?O Ney manteve uma pistola 45 apontada para minha cabeça e avisou: ?Se alguém tossir lá dentro, eu estouro seus miolos?.? Presa, a mãe de Ivan ouviu o marido ser torturado até a morte.

Quase 20 anos depois, Ivan foi apresentado a Ênio Rocha. ?Eu disse na lata que o pai dele tinha me torturado e matado meu pai?, conta Ivan. Ênio nega ter ouvido a história. Diz que Ivan apenas lhe relatou ter ?levado umas porradas?. ?Nãatilde;o há registros oficiais de que meu pai tenha torturado alguém?, afirma. Ênio admite que o pai matou gente em combate, mas acredita que ele era apenas um ?homem da inteligência?, especialista em lidar com informantes.

A fama do Doutor Ney, entre velhos colegas, é a do combatente aguerrido, que gostava de eliminar à bala os inimigos do regime. Em 1972, ele planejou o combate, e dele participou, em frente ao restaurante Varella, na Mooca, em São Paulo. Lá, o DOI fez um cerco e matou três dos quatro dirigentes da ALN que se reuniam no local – Iuri Xavier Pereira, Ana Maria Nacinovic e Marcos Nonato da Fonseca. Apenas Antônio Carlos Bicalho Lana escapou.

?O Ney se transformava no combate. Era um sujeito baixo, forte e extremamente corajoso?, conta Marival Chaves. Um dos exemplos lembrados pelo ex-sargento é justamente o acerto de contas com Bicalho Lana, preso e morto com sua companheira, Sônia Maria Angel Jones, em novembro de 1973. A equipe do Doutor Ney cercou o casal num ônibus, em Santos. Armado, Bicalho Lana teria tentado reagir. ?O Ney se atracou com ele em luta corporal e tomou uma coronhada na cabeça, dada por um agente que tentava acertar o Lana.? Sônia e Bicalho Lana foram levados para o sítio 31 de Março, aquele das churrascadas familiares, de onde saíram mortos.

Ações como a do restaurante Varella transformaram Doutor Ney numa referência na repressão, o que o afastou ainda mais da família. Passeios nos fins de semana eram abortados quando uma mensagem do DOI chegava pelo radiotransmissor instalado no carro. Em certa ocasião, Doutor Ney parou o carro e imobilizou um motorista que havia dado uma fechada no automóvel da família.

Em 1973 ele foi enviado pelo Centro de Informações do Exército em missão secreta ao Chile, logo depois do golpe que derrubou o presidente Salvador Allende. ?Ney atuou muito lá no estádio Nacional, interrogando brasileiros e chilenos que tinham ligações aqui?, conta Marival Chaves. No mesmo ano, ele foi ao Araguaia em missões esporádicas para interrogar presos que não voltariam.

A última operação de repercussão aconteceu em 1976, já durante o governo Geisel. Em parceria com o DOI-Codi carioca, Doutor Ney participou da invasão de uma casa na Lapa, em São Paulo, em que foram mortos Ângelo Arroyo e Pedro Pomar, do PCdoB. Preso, João Batista Drummond morreu sob tortura.

Em 1979, com o fim dos combates, Doutor Ney foi promovido para o Centro de Informações do Exército, em Brasília, onde passou a controlar os infiltrados mantidos pelo Exército em todo o Brasil, que bisbilhotavam principalmente movimentos sindicais. Fez isso até morrer.

O fim da ditadura coincidiu com uma forte crise pessoal. Registros médicos mostram que nesse tempo Doutor Ney tomava remédios pesados para controlar crises de ansiedade e depressão. ?Ele tinha remorso por ter abandonado a família e via que tudo o que tinha defendido estava se esvaindo entre os dedos?, conta Marival Chaves.

Logo depois que Doutor Ney foi encontrado morto, com os tiros no peito, seu parceiro do DOI, o coronel Dalmo Cirillo, foi até o Forte Itaipu. Enfrentou o oficial de comando da área, general Abdias da Costa Ramos, e tomou para si documentos sigilosos que estavam com o amigo. Esteve também na casa da segunda mulher do ex-companheiro de repressão. ?O coronel Cirillo disse que o pessoal viria vasculhar a casa, por isso era melhor sumir com os papéis?, conta outro amigo.

Foram tensas movimentações desse tipo que fizeram com que o filho Ênio mantivesse o assunto esquecido por 17 anos. Sua mãe, madrasta e irmãs ainda preferem assim. Quando Ênio começou a buscar informações oficiais, não foi bem recebido. Durante três anos sofreu com uma mania de perseguição que agora está controlada. Mas mantém o hábito de revistar a própria casa à noite. ?Se não fizer isso, não fico sossegado?, diz.”