Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Luiz Eduardo Borgerth

GLOBO vs. SBT

"Pirataria na TV", copyright Folha de S. Paulo, 2/01/02

"Eu não invejo quem tem por ofício e ganha-pão escrever todos os dias ou todas as semanas. Não invejo quem tem de escrever em hora certa, escrever sem se repetir (demasiadamente) e, o que é pior, escrever coisas inteligentes. Nada parece ser mais difícil, mais angustiante, pelo que já vi e ouvi de alguns amigos, alguns deles bons escritores, tarimbados, profissionais. Exceção feita ao Castelinho, que, quando se sentava para escrever, já tinha tudo organizado na cabeça e escrevia sua crônica de um jato, de uma vez, em alguns minutos.

Por isso evito criticar quem escreve por obrigação, diariamente ou semanalmente. Procuro ser compreensivo, leniente e propenso ao perdão, por mais que eu discorde, por mais bobo e por mais obscuro que possa ser o texto. Até pequenos desvios na veracidade eu encaro como acidentes de trabalho, cochilos inevitáveis, como o do vigia noturno que tem na vigília o seu ganha-pão.

É o que aconteceu com o crítico Eugênio Bucci, em artigo (TV Folha, 18/12), obrigado que estava a contribuir para a torrente de matérias -ensaios, análises, ponderações, encômios, críticas e bobagens das mais diversas ordens- que o programa ?Casa dos Artistas? suscitou. Poderíamos dizer que foi mais do que um cochilo, que foi um sono profundo, condenável nos vigilantes noturnos ou diurnos. Mas não serei eu quem jogará a primeira pedra. Como sempre, estou propenso à compreensão e à conivência.

Vejamos: Bucci inicia o artigo com considerações sobre a ?ordem desigual da TV brasileira? , diz que a ?supremacia imperial da Globo cambaleou?, afirma que ?a surra que o SBT lhe deu teve sabor de humilhação? e por aí vai, citando os 55% de pico de audiência. E, de repente, sem nenhum aviso, deparamo-nos com o seguinte trecho: ?Silvio Santos, um gênio do auditório, indiscutível, agiu de modo traiçoeiro, na surdina. Surpreendeu o país com uma cópia não-autorizada dos ?reality shows?, um formato patenteado internacionalmente, e não soube explicar direito, não à Justiça, mas à opinião pública, por que essa cópia não configura pirataria?.

Bem, comecemos pelo conceito de ?pirataria?. No vocabulário da radiodifusão (?broadcasting?), chama-se ?pirataria? o ato de uma emissora, de rádio ou TV, utilizar a imagem (ou som) de outra emissora sem a devida autorização, colocando-a no ar simultaneamente. Como exemplo, temos, exatamente, o que fez a Rede TV! com o SBT durante praticamente toda a duração da ?Casa dos Artistas?, tendo sido notificada judicialmente. No passado, isso era mais comum. Daí por que as emissoras, de uns anos para cá, passaram a colocar o seu logotipo sobre suas imagens. No rádio essa prática foi introduzida em 1968, por José Octavio Castro Neves, colocando a voz aveludada de um locutor dizendo, sobre e no meio da música, o nome da rádio. Quando a imagem (ou som) de outrem é gravada para uso posterior não se usa a figura da ?pirataria?. Nesse caso chama-se a imagem (ou áudio) de ?roubada?.

A outra acepção da palavra ?pirata? em radiodifusão &eacuteeacute; a que qualifica as emissoras que transmitem sem autorização legal, clandestinas. São as ?rádios piratas?. A origem da expressão está nas primeiras rádios clandestinas, instaladas no mar, na costa da Inglaterra.

Portanto a palavra ?pirataria? não faz sentido no texto, assim como não faz sentido a afirmativa ?reality shows?, um formato patenteado internacionalmente?. Patente é um instituto de proteção da propriedade industrial destinado a promover invenções. Nenhuma obra literária, artística ou musical pode ser patenteada. O que pode ser patenteado é um novo instrumento musical, por exemplo. ?Show patenteado? não faz sentido. Lembro, ainda, que direito autoral diz respeito à proteção da propriedade intelectual. Intelectual na TV? Millôr dirá: se é intelectual não é televisão.

Quem afirmará o contrário?

As obras intelectuais protegidas são as criações do espírito, expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível, conhecido ou que se invente no futuro. Consta em qualquer legislação do mundo -na nossa é a lei n? 9.610, de fevereiro de 1998. Além do que, não são protegidas as idéias . Diga-se, de passagem, que a lei brasileira acima citada é uma verdadeira aula de direito autoral para quem quiser ter noções elementares.

Culminando o cochilo, temos a consideração do ?reality show? como se fosse um show ou uma série de shows. ?Reality show? é um gênero de programas de televisão que tem pessoas da vida real como protagonistas, tendo como atração o comportamento dessas pessoas diante de fatos e situações. Estão na moda. O primeiro ?reality show? foi ao ar nos Estados Unidos em meados do década de 50, sob o nome de ?Candid Camera? -está até hoje no ar até hoje, origem das pegadinhas da televisão brasileira. A idéia veio de programa feito pela PBS americana, com objetivos sociológicos, filmando uma família americana dentro de sua casa durante meses.

A Justiça sentenciou, por duas vezes, que não havia razão para sustar a apresentação da ?Casa dos Artistas?. Às vezes a Justiça não falha nem tarda, a despeito do batalhão de advogados convocados a convencê-la. Nem falha a opinião pública, como vimos no encerramento do programa, nos telefonemas aleatórios e na consagração do apresentador. Sejamos justos.

Todos têm o direito de cochilar, dormir e (quem sabe?) sonhar. (Luiz Eduardo Borgerth, presidente de honra da International Association of Broadcasters, é consultor do SBT)"

 

"A gente se vê por aqui", copyright Jornal do Brasil, 4/01/02

"Na série de artigos publicada pelo Jornal do Brasil fazendo um balanço sobre a televisão brasileira em 2001, Joaquim Ferreira dos Santos foi recorrente ao apontar uma suposta lentidão ou vacilo da Globo na reação aos ataques da concorrência. Chegou a concluir que isso ocorreria pelo que chamou de ?soberba?. Com todo respeito, isso é uma injustiça. Não faz parte da nossa filosofia a acomodação. Tanto assim que nunca deixamos de investir e contratar até talentos que não representavam risco algum à nossa audiência, mas por terem potencial para melhorar a nossa programação.

Lamentavelmente, o que acontece – especialmente no caso de Casa dos Artistas – é que não é possível ser rápido agindo dentro da lei no Brasil. Em primeiro lugar, quando compramos os direitos de Big Brother para o Brasil, não havia motivo para pressa. Como o SBT havia desistido do programa – confirmando isso por carta à produtora e assegurando que não usaria as informações que recebera -, não passou pela cabeça de ninguém que estivessem planejando levar ao ar um plágio escancarado.

Mas, digamos que a gente desconfiasse. Para fazer tudo dentro da legalidade, leva-se um tempo para ter os contratos firmados – a compra dos direitos inclui um acompanhamento da produtora holandesa, que é ciosa do formato do game – e até para a importação de equipamentos especiais para a gravação dentro da casa. Só este último item, para ser feito dentro das regras de importação – como fazemos -, leva um tempo que não pode ser pouco. Não vou nem comparar o tempo de construção de uma casa dentro das normas do código de postura com o uso de uma feita às pressas em zona residencial.

A própria Justiça não caminha no ritmo de uma televisão. Nem próximo. Nos dois casos antecedentes de cópia do SBT, ganhamos a causa. Alguns anos depois. Por isso achávamos que a liminar seria incontestável desta vez. Tem sido uma regra do SBT tomar idéias alheias. Se você for ver, mesmo tendo a liderança tranqüila em quase todos os horários, a Globo nunca pára de investir, e em investir na produção nacional. Por princípio, preferimos correr risco tirando um enlatado estrangeiro para fazer aposta no talento brasileiro.

Neste ano recém-findo, voltamos a investir pesado, com sucessos estrondosos de público e crítica – como Anita, Os Maias e Os normais. Mantivemos o ousado projeto de produzir uma história por semana em Brava Gente. Relançamos, contra muitos prognósticos pessimistas, a nova versão do Sítio do Pica-pau Amarelo. Também enfrentando certo descrédito, mais uma vez acreditamos na força da nossa teledramaturgia, com a nova Grande Família. Fomos de novo ousados ao levar ao ar uma novela tendo como cenário o mundo árabe.

A imprensa inteira previu problemas com audiência devido aos atentados de setembro. Hoje, O clone é um grande sucesso, além de prestar um inestimável serviço ao estabelecer uma clara distinção entre a cultura islâmica e os grupos radicais. Poderia citar muitos outros programas bem-sucedidos em 2001. Além de outros que estão sempre se renovando, como o Casseta & Planeta. No primeiro semestre, várias novelas mexeram com o país, como Uga Uga, O Cravo e a Rosa e Laços de Família. Esta, além de ter provocado um movimento de doação de medula – que nos valeu prêmio internacional pela primeira vez concedido a um país não europeu pelo ?merchandising social? (uma tradição da nossas novelas de disseminar mensagens de cidadania) -, também seguindo uma de nossas marcas, trouxe a público o problema da prostituição de moças na classe média.

Nossa preocupação com a qualidade é permanente e em todas as áreas: ainda durante a Copa do Mundo de 98, compramos os direitos da próxima competição, para não corrermos o risco de ficar de fora. Assim, risco corremos sozinhos com a ameaça de desclassificação do Brasil. Passado o susto – para a gente – fomos ao mercado oferecer a todas as demais emissoras a transmissão, por 60% do que pagamos, e ninguém se habilitou.

Como temos certeza de que mesmo sem exclusividade repetiríamos os índices espetaculares da última Copa, seria uma excelente oportunidade para amortizar nossos custos. Parece que vamos ter que transmitir sozinhos. Ou seja, mesmo quando a ameaça não vem da concorrência, usamos nosso histórico como referencial, buscando sempre mais audiência com uma produção brasileira de qualidade. A propósito, na relação das melhores atrações na TV em 2001 feita pelo habitualmente crítico JB, a Globo teve presença em oito. Uma excelente média, não?

Quando manifestamos nossa perplexidade quando a Justiça manteve Casa dos Artistas no ar, procuramos deixar claro que não estávamos preocupados com audiência – já enfrentamos fenômenos parecidos no passado e sabemos que audiência só se conquista e se mantém com a consistência de toda uma grade de programação.

Nosso espanto foi porque em plena globalização verificamos que o direito de propriedade intelectual – um tabu no mundo civilizado – ainda não é respeitado por aqui. Como disse, agir dentro da lei não é só mais moroso, mas também, pelo visto, custa mais caro e ainda dá prejuízo.

Mas, assim como nossa vocação é a cultura brasileira em todas as suas manifestações, entendemos que, mesmo com esses percalços, a longo ou curto prazo, não existe ilegalidade conveniente. Nem acreditamos que a esperteza possa vencer o talento. (Luis Erlanger é diretor da Central Globo de Comunicação)"