Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Lula e Machado de Assis

POLÍTICA & LITERATURA

Deonísio da Silva (*)

Lula irritou-se com perguntas sobre sua escolaridade. Estava em Salvador, na Bahia, participando de um palanque eletrônico, em rede de 20 emissoras de rádio que abrangem 350 dos 417 municípios baianos. Seu entrevistador era Mário Kertész, por duas vezes prefeito de Salvador: uma, pela Arena; outra, pelo PMDB. Precisamos aprofundar mais o estudo das vinculações entre a imprensa, sobretudo rádio & televisão, e a política.

Um ouvinte disse que rejeitava Lula por ele não ter freqüentado a universidade. Em resposta, o candidato à presidência da República pelo PT comparou-se a Machado de Assis: "Muitos brasileiros confundem inteligência com escolaridade. Para essas pessoas quero dizer que Machado de Assis nunca freqüentou a universidade e nem por isso deixou de ser um dos maiores escritores da língua portuguesa de todos os tempos e um dos maiores intelectuais brasileiros". Acrescentou: "Eu não vou governar livros, não vou governar estatísticas, eu vou governar crianças, eu vou governar gente como você". E reiterou que o PT está mais light.

Machado de Assis era preto, pobre, gago, epiléptico, órfão, casou-se com uma solteirona e não teve filhos. A vida oferecia-lhe um placar adverso: 7 x 0. Sete eram os preconceitos vigentes contra ele naquela sociedade que escravizava os negros, prezava a retórica, ainda que vazia, e considerava certas doenças, como as nervosas, castigos que os descendentes pagavam por pecados cometidos por seus ancestrais. Por último, nas várias brumas que cobrem sua biografia, diz-se que Carolina casou-se com ele porque tinha comido a merenda antes do recreio em Portugal. Por castigo, os parentes a teriam trazido para o Brasil. Por pirraça, ela teria se aproximado de um mulato. Mas daí surgiu, ex abrupto ou ex nihil, como dizem os advogados, o amor, que tudo mudou nas duas existências. Ser estéril era outro castigo, mas tudo indica que foi opção dos dois não terem filhos. Como evitaram, é segredo que levaram para o túmulo. A Igreja não gosta de casais sem filhos. A função essencial do casamento é procriar, diz a doutrina. A missão essencial da mulher é ser mãe, dizem biólogos e antropólogos. E à falta deles, a natureza.

Outros mirantes

Lula enfrenta um placar adverso em sua vida. Tem todo o direito de comparar-se a Machado de Assis. Ambos têm origens humildes, ambos deixaram a pobreza pela via do trabalho e do talento combinados. Tal aliança é quase sempre indestrutível. É difícil vencer o talentoso que trabalha. Machado deixou a pobreza para tornar-se, no mínimo, um grande escritor. Para quase todos, é o maior que já tivemos. Lula é um grande político, um líder carismático. Mas entre tantas batalhas que já travou e outras tantas que estão por vir, enfrenta má vontade atávica na sociedade brasileira contra o pobre, desdobrando-se em muitos preconceitos, que vão da cor à escolaridade.

Mas qual escolaridade? Apesar dos inegáveis avanços técnicos, somos um país de bacharéis. Temos também uma boa taxa de doutores, em sentido estrito, e analfabetos em larga escala. Quer dizer, as especialidades entre nós trilharam caminhos desconcertantes. Outro dia soube de um sujeito que, amparado pelo dinheiro público, doutorou-se no exterior com uma tese sobre a língua de uma ave. Esse sujeito é doutor. Está melhor preparado do que Lula para a presidência da República?

Também Machado de Assis foi vítima de intolerância e demagogia semelhantes. No governo Floriano Peixoto, em abril de 1894, o jornalista Diocleciano Martir publicou uma lista de "maus patrícios e hipócritas monarquistas, pagos fartamente pelos cofres da nação para dizerem mal de si próprios e cavarem a ruína da Pátria".

Machado de Assis estava nessa lista. Era uma calúnia infame, como são todas as calúnias, e difícil de ser defendida, pois, como disse São Bernardo, caluniar alguém é como depenar uma galinha no alto de uma torre. O caluniado deve juntar todas as penas. Sempre uma ou outra ficará perdida e poderá ser encontrada um dia. Na ocasião, indignado e revestido das vestes da decência e da solidariedade, raras nesses casos, Lúcio de Mendonça, republicano histórico e de prestígio nos meios oficiais, saiu em defesa do amigo.

As qualidades e os defeitos de Lula não passam pela universidade. Examinemos outros mirantes, como o seu programa de governo, e deixemos de lado os preconceitos. Afinal, todos não são iguais perante a Lei? Onde está escrito que o candidato à presidência deve ter curso superior? Aliás, se fosse exigência, aquelas faculdades que distribuem diplomas sem que os alunos sequer freqüentem as aulas, resolveriam o problema. Machado, se quisesse ou pudesse freqüentar universidade, teria que ir ao exterior. Disso Lula se esqueceu: de que para fazer o curso superior ninguém mais precisa deixar o país. O Brasil não tinha universidades no tempo de Machado.

Bienal do Livro

O bate-boca entre o ministro Paulo Renato e Marta Suplicy na abertura da Bienal Internacional do Livro, em São Paulo (quinta, 25/4), teve um lado bom: pôs a Bienal nas primeiras páginas dos jornais. E um lado péssimo: para tudo temos um tempo, como diz o Eclesiastes. E ali não era a hora e nem o lugar de a prefeita dizer, não o que disse, mas da forma como o disse, rude com o ministro. Afinal, a gestão de Paulo Renato, tão atrapalhada com as universidades públicas, tem um mérito inegável: jamais o Estado comprou tantos livros!

(*) Escritor e professor da UFSCar, doutor em letras pela USP; seu livro mais recente é o romance Os Guerreiros do Campo