Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Luís Nassif


“O deputado Paulo Delgado (PT-MG) é daquelas figuras singulares que colocam os compromissos com sua consciência acima de conveniências políticas ou de jogadas oportunistas. Partiu dele a denúncia contundente, na coluna da Dora Kramer, no Jornal do Brasil: o que estão fazendo com Francisco Lopes é um completo desrespeito a normas mínimas de direito. Delgado sabe o que diz, porque seu pai – juiz de direito – teve a casa invadida durante a ditadura.

Escrevo esta coluna sem saber do teor do depoimento de Lopes na CPI e, à luz dos dados apresentados até agora, sem ter idéia se ele é inocente ou culpado do que o acusam: vazamento de informações.

Se ele for, de fato, culpado, nem assim se livrará a cara do direito e da Justiça, achincalhados neste país sob o beneplácito de quem deveria, de fato, zelar por sua observância: o presidente eleito do Supremo Tribunal Federal (STF) e o procurador-geral da República. Sob o argumento de ter obedecido a formalidades legais – os promotores invadiram a casa de Lopes amparados em uma ordem judicial –, ambos defenderam a invasão, furtando-se a comentar o seu mérito.

A tal carta de Salvatore Cacciola a Francisco Lopes, que serviu de álibi para a invasão, não contém nenhum indício de crime que permitisse justificar aquela violência – independentemente, repito, de Lopes ser culpado ou não. E se ele for inocente? Atira-se, antes, para perguntar depois?

Depois disso, a sucessão de documentos sob sigilo de Justiça distribuídos para a mídia, as conclusões irresponsáveis de senadores e promotores, sobre fatos sobre os quais não dispõem até agora de informações completas, o papel de parte da mídia, veiculando como verdade meros rumores de mercado, a condenação, a ofensa, a malhação do acusado, a ironia sobre a suposta tendência de Francisco Lopes ao suicídio são suficientes para jogar a Justiça no lixo e constatar-se como esses processos de linchamento liberam o que de pior existe na natureza humana.

Bode expiatório

Esboça-se mais uma vez o mesmo processo que cercou operações do gênero, como a CPI dos Precatórios. Escândalos são fundamentais como instrumento de mudanças institucionais, que definam responsabilidades dos poderes maiores diante do descalabro ocorrido e permitam a correção de rumos – estabelecendo limites e punições futuras à atuação desses poderes.

Aqui, se quer sempre UM culpado, na reedição do ritual do bode expiatório. Durante algumas semanas, ou meses, os protagonistas do show conseguem visibilidade, vender o peixe de que estão a favor do bem comum, justificar-se como poder, perante os contribuintes, crucificar o bode no altar da mídia e desviar a atenção dos responsáveis maiores.

Depois, o show vai terminando lentamente, pelo próprio esvaziamento da platéia. E o que resta são poucos avanços institucionais e quase nenhum elemento que sirva para a condenação do acusado, se for culpado, ou para sua absolvição perante a opinião pública, se for inocente. É só conferir a meia pizza em que se transformou a CPI dos Precatórios, com todo aquele show de arbitrariedade e despreparo.

O que se vive, hoje, são distorções decorrentes de um modelo institucional capenga, que acabou conferindo ao Executivo o poder absurdo de definir a seu talante o destino do país, sob os olhares acomodados de todos os demais poderes.

O que fez o Congresso quando o Executivo resolveu bancar uma aposta cambial com um custo fiscal na casa da centena de bilhões de dólares? O que fez o Senado – que tem por obrigação constitucional zelar pelos limites de endividamento do Estado – quando uma política monetária irresponsavelmente continuada quebrou a União, Estados e municípios? O que fizeram os partidos aliados do governo, a não ser disputar cargos? O que fez o STF ante a enxurrada de medidas provisórias que liquidaram com qualquer arremedo de equilíbrio entre os poderes? O que fez o procurador-geral ante o poder absurdo de que se revestia o BC, para impor perdas e ganhos ao mercado? O que fizemos nós – da mídia como um todo –, a não ser incensar essa maluquice, chegando ao cúmulo de transformar o ministro da Fazenda, Pedro Malan, em herói nacional – justo no dia em que foi negociar a rendição com o FMI e impor a continuidade de uma política cambial que, em pouco mais de dois meses, infligiu perdas bilionárias adicionais ao país?

Felizmente, tem-se Francisco Lopes para permitir a esse belo espécimen de democracia tropical purgar todos os seus pecados. Todos os poderes, que falharam na fiscalização dos interesses nacionais, têm interesse direto na sua condenação. O Congresso – que nada fiscalizou –, os partidos aliados –mais interessados em cargos –, o Judiciário – sob a mira da CPI –, o procurador-geral – visto como complacente com o poder – e o Executivo que vê as culpas de decisões políticas desastrosas serem convertidas em uma falha de uma só pessoa. O que menos importa é saber se é inocente ou, no caso de culpado, qual o limite da sua culpa.

O ponto positivo dessa história é que, na mídia, rompeu-se a unanimidade da primeira versão.

Hoje em dia, em diversos veículos, há jornais e jornalistas preocupados em desvendar tecnicamente o ocorrido, em analisar as implicações institucionais, definir as responsabilidades difusas e discutir limites que impeçam a reedição do ocorrido.

E há Paulo Delgado.”

“A Justiça na lata do lixo”, copyright Folha de S. Paulo, 27/4/99

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“No dia do depoimento de Francisco Lopes na CPI do Sistema Financeiro, a senadora Emília Fernandes (PDT-RS) reclamava a um jornal que ‘os procuradores ficaram com o filé das denúncias e deixaram o osso para nós’.

Durante duas semanas, à falta de notícias, os setoristas da CPI colhiam adjetivos dos senadores incumbidos de analisar os fatos – ‘estupefato’, ‘chocado’, ‘aturdido’, ‘abismado’, cada adjetivo carregado de uma forte dose de condenação prévia.

Era esse o clima que esperava Lopes quando foi depor na CPI.

Não tenha dúvida da necessidade de pôr cobro a essa enorme promiscuidade que marca as relações de sucessivos governos e dirigentes do Banco Central com o mercado financeiro. Chocam a consciência nacional as fortunas inacreditáveis, amealhadas ao longo dos últimos anos, utilizando como único insumo a informação privilegiada. Em países civilizados, é possível a um investidor ganhar uma ou duas apostas contra o Banco Central, antecipando seus movimentos. Se antecipar três vezes, há um inquérito para apurar suspeitas de vazamento de informações.

No Brasil, muitas instituições ganharam sistematicamente durante anos, sem que nenhuma autoridade tomasse nenhuma medida para investigar ou enquadrar legalmente as práticas de vazamento de informações. E muitas políticas econômicas, como a que vigorou até a mudança do câmbio, foram engessadas justamente para não afrontar os interesses desse grupo de rentistas – da mesma maneira que os interesses financeiros dos escravocratas rentistas se constituíram no principal empecilho à formação de um mercado de crédito moderno no Brasil, no século passado.

Justamente pela importância do tema, deveria haver um mínimo de seriedade e amadurecimento do lado das pessoas incumbidas de apurar esses fatos. E, principalmente, respeito aos direitos individuais – única maneira de levantar com isenção todas as informações, a fim de fazer justiça.

A tradição do direito individual não existe em nosso país. A cultura brasileira está profundamente impregnada pelo espírito da inquisição. Instituições falhas, morosidade da Justiça, falta de equilíbrio entre os poderes, tudo isso contribuiu para que o instrumento máximo de justiça passasse a ser os ‘justiceiros’ – os cabos Brunos, incensados na periferia por executar criminosos, mas cujo estilo se reproduz por todas as instâncias sociais brasileiras.

Mesmo para pessoas bem-informadas, é quase impossível passar a noção de que o fato de uma pessoa ser suspeita de determinado crime não elimina seu direito de ser ouvida, de se defender e de não ser acusada de outros crimes, sem que o acusador disponha de fatos comprovados ou evidências fortes.

Mas não tem jeito. Nesses momentos, o chamado clamor das turbas fala mais alto. Mesmo pessoas que se sentem incomodadas com esses processos de linchamento calam-se, com receio de que a defesa dos direitos dos acusados seja confundida com interesses menores.

Ainda há muito a caminhar, até que o país aspire o status de nação moderna.

De um juiz federal de primeira instância, que me escreve regularmente, defensor da democratização do Judiciário, inicialmente defensor da CPI do Judiciário e da decisão da juíza do Rio, que autorizou a invasão da casa de Francisco Lopes:

‘Assisti ao (não) depoimento de Francisco Lopes na CPI dos Bancos no Senado. Afirmou Chico Lopes que se sentia na condição de acusado e por isso não iria assinar o termo de compromisso de testemunha, por orientação de seus advogados. Após manter sua negativa, mesmo contra o apelo de ACM, alguns senadores deram voz de prisão ao depoente, no melhor estilo ‘teje preso’, enquanto os advogados de Chico Lopes, aos berros, eram arrastados para fora da sala, pelos seguranças do Senado.

É fato notório que Chico Lopes estava lá na condição, no mínimo, de suspeito de muitas irregularidades, por isso não estava obrigado a se auto-incriminar. Nosso Código de Processo Penal desobriga do compromisso de dizer a verdade qualquer pessoa chamada a depor como testemunha em processo no qual figure, na condição de acusado, um parente próximo ou um amigo íntimo. Imagine em relação ao próprio suspeito…

Querer obrigar alguém a dizer a verdade sobre fatos que possam prejudicá-lo significa retroceder alguns séculos na história do direito, para voltarmos aos tempos da Santa Inquisição, quando a verdade era buscada sem limites, valendo até a tortura do acusado para obtê-la.

Prender alguém por ‘desacato’ à autoridade, como fizeram os senadores hoje, pelo fato de Chico Lopes, de forma respeitosa, ter dito que, por orientação de seus advogados, não assinaria o termo de compromisso, seria ridículo e motivo de gargalhadas, se não estivessem em jogo a liberdade e a dignidade de uma pessoa. A cena dos seguranças do Senado retirando os advogados de Chico Lopes da sala da CPI fez os saudosistas do AI-5 vibrarem de emoção.

Por favor, ponham a boca no trombone. Se eles fazem isso com o ex-presidente do Banco Central, imaginem o que esses senadores não fariam com um zé-ninguém do povão. O processo contra aqueles PMs de Diadema seria mandado para o Juizado de Pequenas Causas’.

“O país da inquisição”, copyright Folha de S. Paulo, 28/4/99

“Na fila do banco”, Ombudsman, copyright Folha de S.Paulo, 25/4/99

 

“Um personagem de Molière se chama Tartufo e é Rei dos Hipócritas. A Hipocrisia não dignifica seu praticante, ela é impostura e falsidade, destinada a encobrir o malfeito, e a natureza daninha, de quem o cometeu. Tartufos sempre houve e haverá. Nem Molière, contudo, poderia imaginar que a tartufaria pudesse ser oficializada como sistema de vida pelo poder e por aqueles que o sustentam, larga porção da sociedade afluente e influente, em um país do final do segundo milênio. As máfias do mundo não são hipócritas. Tomam o caminho do crime sabendo dos riscos a que se expõem, embora se empenhem em evitá-los. O ladrão que age na calada da noite nem por isso é hipócrita. Também não é o homem do racket que impõe a sua lei ao mais fraco sem esconder o rosto. Totó Riina, chefão da máfia Corleone, está na cadeia há seis anos e, ao que tudo indica, lá vai morrer. Hipócritas são esses cavalheiros que surgem de cara lavada nas páginas dos jornais e no vídeo, cercados pelas mesuras dos asseclas e dos comunicadores, e se esmeram na retórica do patriotismo e do dever cumprido enquanto se portam, digamos assim, mafiosamente. O Brasil de 50, 40 anos atrás era o país do futuro, com largos atributos para tanto. O golpe de 1964 inverteu a ordem abruptamente. O regime militar houve por bem sair de cena por conta própria, depois de perpetrar iniqüidades de vários tamanhos. Seus sucessores pretenderam iniciar um período de transição a caminho da democracia, dentro do qual, de verdade, marcharam aferrados aos hábitos gerados pela ditadura. De resto, que esperar dos quadros criados à sombra da exceção, como José Sarney e Fernando Collor, cada qual com peculiaridades e características específicas? Só faltava mesmo Fernando Henrique Cardoso para esticar a bissetriz, o pretenso ex-esquerdista marx-weberiano que invoca o esquecimento para quanto disse e escreveu no passado. A hipocrisia atingiu os píncaros e o caso Marka-FonteCindam é altamente representativo de uma situação em que o Brasil atinge os baixios da decadência moral e política. Até porque – mas este é apenas um detalhe – nada á mais hipócrita do que apontar como vilões os peixes miúdos. Por exemplo, Salvatore Cacciola, apesar desse seu nome de filme policial dos anos 70. Ou, quem sabe, Chico Lopes, com a graça de nome tão corriqueiro.”

Editorial, copyright Carta Capital, 28/4/99

“Além da atuação dos parlamentares, os advogados que trabalham junto ao Executivo também contestam o vazamento de informações coletadas pelo Ministério Público. Segundo eles, os documentos apreendidos não deveriam ter sido divulgados, porque o sigilo deve ser resguardado por quem o quebra.

Para o subprocurador geral da República Cláudio Fonteles, a divulgação de fatos à imprensa não pode anular a investigação feita pelo Ministério Público. ‘Os procuradores que participam da ação na casa de Chico Lopes, por certo, não divulgaram os documentos’, garante Fonteles. ‘Agora, como a imprensa teve acesso a isso eu não sei.’ Ele afirma que nada anula a coleta de documentos na casa de Lopes, ‘pois os procuradores seguiram rigorosamente os ditames do Código de Processo Penal’.

‘A imprensa brasileira, como qualquer imprensa do mundo, funciona na idéia do furo. Não era o momento de se dar ciência mas a imprensa foi lá e deu. Não podemos impedir que a imprensa fure’, argumenta. ‘Agora, todo o furo de imprensa, contamina a prova? Não! A própria defesa (de Lopes) pode ter passado informações.’

O subprocurador afirmou que o único problema na coleta de dados na casa de Lopes seria se a investigação fosse ilegal, o que, segundo ele, não ocorreu. Para os advogados que atuam para o Executivo, houve deslumbramento e irresponsabilidade na fiscalização feita pelo Ministério Público. ‘Se apreende documentos, então o sigilo é transferido para quem fez a apreensão’, contesta jurista.

Outro advogado sugere a elaboração de lei de responsabilidade do procurador e do promotor para coibir o vazamento de informações em investigações do MP. ‘Deve haver um mecanismo de controle na instituição’, defende. Por trabalharem para o governo, os advogados não quiseram ser identificados.”

“MP também sofre críticas por vazamento”, copyright Gazeta Mercantil, 30/4/99