Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Luís Otávio

COLEÇÃO VIDA DE REPÓRTER

"Livros prestam tributo à grande reportagem", copyright Comunique-se, 13/5/02

"Um desafio à imprensa, em tempos de escassez de grandes reportagens. Assim o escritor, jornalista e editor Luiz Fernando Emediato, da Geração Editorial, definiu a coleção ?Vida de Repórter?, lançada semana passada em Belo Horizonte e reunindo matérias especiais produzidas pelos repórteres José Maria Mayrinki, Klester Cavalcanti, Lourival Sant?Anna e Marcelo Abreu. A iniciativa destina-se a suprir uma lacuna evidente na imprensa brasileira , que consiste na escassez das grandes reportagens. Quatro livros formam a coleção : ?Vida de Repórter?, de José Maria Mayrinki, mineiro radicado em São Paulo, ?Viagem ao mundo dos Taleban?, de Lourival Sant ?Anna, ?Direto da Selva?, de Klester Cavalcanti e ?Viva o grande líder?, de Marcelo Abreu.

Emediato revela que todas as obras, escritas na primeira pessoa, são relatos de aventuras vividas pelos jornalistas, através da cobertura de uma grande história ou recordando experiências pessoais em décadas de profissão. ?Vários profissionais estão procurando a Geração Editorial depois que leram estas publicações, oferecendo seus depoimentos?, diz o editor, que tem 30 anos de experiência na área. Ele ressalta que este projeto editorial funciona ainda como ?uma provocação? às chefias de Redação dos grandes jornais brasileiros, pois mostra que ?a grande reportagem esta viva e precisa de um maior espaço?. Dentre os próximos lançamentos, anuncia o livro ?Bye Bye, Brejnev?, de Geneton Moraes Neto, que foi correspondente na ex- URSS à época em que o líder soviético faleceu. Joel Silveira também está preparando originais para enviá-los à editora, sobre assuntos que Emediato prefere manter ainda sob sigilo.

Os livros são cativantes tanto para jornalistas como para o leitor comum. ?Vida de repórter?, de José Maria Mayrinki, escrito originalmente sob o titulo ?3 vezes 30?, em 1992 ( parceria com Carmo Chagas e Luiz Adolfo Pinheiro) trata dos 40 anos de vida profissional do autor. São analisadas as relações com a Igreja Católica, lembranças dos nove anos em que foi repórter da sucursal paulista do ?Jornal do Brasil? e detalhes sobre seu retorno ao ?O Estado de São Paulo?, onde é hoje repórter especial. Relembra também a década em que prestou serviços à revista católica ?Família Cristã?. Mayrinki foi seminarista e estudou Teologia.

Em ?Viagem ao mundo dos Taleban?, Lourival Sant?Anna aborda os atentados de 11 de setembro em Nova Iorque, ?quando a Humanidade ainda não sabia que alguém seria capaz de jogar um Boeing contra um prédio cheio de gente?, conforme comenta o autor. Quatro horas depois da primeira explosão, Lourival já estava no aeroporto de Cumbica, embarcando para Telavive. Ele fornece, sob uma ótica humanista, uma visão do confronto que se seguiu, viajando de Israel até a fronteira entre Paquistão e Afeganistão.

Marcelo Abreu centra seu ?Viva o grande líder? em cobertura que fez na Coréia do Norte, como único jornalista brasileiro a entrar naquele país, onde foi permanentemente vigiado por dois guias indicados pelo governo comunista. O trabalho aborda principalmente o culto fanático ao presidente Kim Il Sung, morto há seis anos. Fotografias foram proibidas e as poucas publicadas mostram apenas a capital, Pyong Yong, sempre quase deserta.

Klester Cavalcanti relata, em ?Direto da Selva – as aventuras de um repórter na Amazônia?, alguns casos até dramáticos, como quando ficou durante horas amarrado a uma árvore, para evitar que publicasse determinado material. Há ainda episódios engraçados : em certa ocasião, teve que experimentar o ?paricá?, bebida alucinógena dos índios Yanomani. Klester viveu durante dois anos na região, como correspondente da revista ?Veja?, ao lado do fotógrafo Jandurari Simões."

 

BAO CHI, BAO CHI

"Bem escrita, a ficção de Luiz Edgar de Andrade não esconde o jornalista", copyright O Globo, 18/5/02

"Como leitura, obcecante; mal se consegue largar. Como texto, irretocável, de uma fluência e limpidez encantatórias, apesar (ou talvez por causa) do excesso de diálogos. Como romance, porém, já é outra história. ?Bao Chi, Bao Chi?, obra de estréia na ficção do jornalista Luís Edgar de Andrade, poderia no máximo ser qualificado de romance-reportagem, para não dizer reportagem romanceada, no estilo de Oriana Fallaci, que, aliás, aparece no livro.

Nem por um momento, nas 284 páginas do volume, o leitor atento chega a convencer-se de que está lendo uma obra de imaginação, e não a elaboração, trinta anos depois, de um diário de viagem – a começar pela infeliz idéia da capa, que traz uma foto do correspondente Andrade em plena guerra, metido num uniforme de combate do Exército americano. É como se Malraux estampasse seu retrato vestido de piloto na capa de ?A condição humana? ou ?A esperança?, e Hemingway o seu na de ?Adeus às armas? ou ?Por quem os sinos dobram?.

Ação cobre período da cobertura jornalística

O aspecto de reportagem se torna mais evidente no imediatismo da ação do livro, que cobre apenas o período da permanência do repórter no teatro de guerra asiático; com exceção de um breve diálogo sobre a teoria dos dominós do então chanceler americano Henry Kissinger, de sinistra memória, não há antecedentes, histórico do conflito, nada; a guerra começa quando o correspondente chega e acaba quando ele parte; faltou o que nas redações se chama de box – o background para situar melhor o leitor no assunto.

Em janeiro de 1973, quando se assinou em Genebra o histórico acordo que pôs fim à intervenção das tropas americanas do Vietnã, uma emissora de televisão carioca fez uma enquete nas ruas para verificar o que as pessoas sabiam da guerra. À pergunta sobre onde ficava o país, as respostas foram as mais disparatadas: na França, nos Estados Unidos, no Norte do Brasil. Apenas um respondeu Ásia, mas quando o repórter quis saber em que parte, o cidadão protestou: ?Bom, aí já é querer demais?.

Fazia um decênio que a guerra no Sudeste Asiático era tema de manchetes diárias nos jornais, rádios e incipientes TVs, mas mesmo assim o chamado povo nada sabia, embora o Vietnã, como a Coréia uns vinte anos antes, se houvesse tornado na mente popular sinônimo de ruína, desespero, miséria: as duas grandes favelas de Bom Jesus da Lapa, o maior centro de romaria religiosa do Nordeste, no sertão da Bahia, chamavam-se assim: Coréia e Vietnã. (Não esquecer que a própria designação favela vem de um morro com esse nome, também no sertão da Bahia, bombardeado pelo Exército na Guerra de Canudos, no final do século XIX.)

Hoje, trinta anos depois, já não é só o povo que não sabe. Quando, há pouco tempo, Bill Clinton se tornou o primeiro presidente americano a visitar o Vietnã, um grande jornal do Rio informou a seus leitores que os Estados Unidos haviam apoiado o Vietnã do Norte, ou seja, a então parte comunista do país.

Claro, se ?Bao Chi, Bao Chi? (que em vietnamita quer dizer imprensa, senha que os correspondentes gritavam para que os guerrilheiros não atirassem neles) fosse de fato um romance, centrado no drama existencial de uma personagem, e tendo a guerra apenas como pano de fundo, essa informação não faria tanta falta. Mas não; o livro narra o dia-a-dia de um repórter brasileiro cobrindo, durante alguns meses, o conflito no Sudeste Asiático, com referências pouco veladas ou explícitas a colegas brasileiros e estrangeiros que lá estavam, como José Hamilton Ribeiro, Oriana Fallaci, Peter Arnt e outros, e até o testemunho em primeira mão de um burlesco golpe de Estado no Laos. Para temperar, ou ficcionalizar, um assassinato que não se resolve, amores e mortes passageiros na vida do correspondente, memórias de suas andanças pelos quatro cantos do mundo (foi vizinho de quarto, em Paris, de ninguém menos que Pol Pot, o depois sanguinário ditador cambojano), e um inesperado – talvez dispensável, final à la Cortázar.

Autor realiza sonho de descrever emoções

Isto, porém, só para pôr os pingos nos ii — uma questão técnica, digamos assim. Em ?Bao Chi, Bao Chi?, Luís Edgar de Andrade, além de haver escrito, inquestionavelmente, um grande livro, realiza talvez o sonho da profissão: mostra com admirável senso de observação aquilo que não sai nos jornais, rádios ou televisões — as ambições e frustrações individuais, a tensão, a espera, o medo, a coragem ou covardia que constituem a vida do repórter em geral, e do correspondente de guerra em particular; o homem ou mulher, enfim, por trás daquelas impessoais colunas que lemos todos os dias no café da manhã, ou daqueles impessoais sons e imagens que ouvimos e vemos nos noticiários da noite, sem sequer pensarmos em seus autores, como se tudo aquilo resultasse de geração espontânea.

Provavelmente para desespero do autor, uma pequena perda para a literatura, mas um grande triunfo para o jornalismo."