Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Luz e trevas, estrangeirados e Inquisição

HIPÓLITO E SEU TEMPO

Alberto Dines (*)

Quando tentou desacreditar Hipólito da Costa 60 anos depois da morte deste, Camilo Castelo Branco não se mostrou especialmente perverso nem engajado em missão anti-hipolitana. Além da amargura pessoal que o levaria ao suicídio, exercitava a santa indignação contra uma figura reconhecida e exibia um dos traços singulares da mentalidade lusitana que, por extensão, permeou a brasileira.

Ambos foram anticlericais e liberais, ambos ferrenhos adversários da Inquisição. Mesmo assim, Camilo, que viveu e cresceu longe do terror, deixando uma vasta obra historiográfica e ficcional plena de denúncias, tentou desqualificar a obra daquele que fora vítima e coveiro do Santo Ofício. Buscava transigências para valorizar sua intransigência. Explicações não faltam, todas no âmbito da psicologia. [Camilo Castelo Branco, mais tarde visconde de Corrêa Botelho (1825-90), o mais venerado escritor do seu tempo, romancista, ensaísta, jornalista e historiador, teve vida atribulada e morte trágica. Na vasta camiliana há um engajamento antiinquisitorial visível nos diversos gêneros aos quais se dedicou. Sua obra mais popular foi o romance histórico O judeu (1866), no qual resgatou as desventuras do poeta e comediógrafo brasileiro Antônio José da Silva, garroteado pelo Santo Ofício em 1739. Camilo lançava para o grande público um tema tabu, pouco antes escancarado pelo clássico da historiografia, a História da origem e estabelecimento da Inquisição portuguesa, de Alexandre Herculano (1852). A camiliana ficional sobre a Inquisição é analisada por António Baião em Episódios dramáticos da Inquisição portuguesa (1? ed. Porto: 1919), vol. 2, pp. 175-245.]

Na introdução aos Ratos da Inquisição, de António Serrão de Castro, na qualidade de editor de uma obra que permaneceu inédita por dois séculos, Camilo investe de forma gratuita e malévola contra Hipólito, denunciando uma suposta tolerância com a Inquisição no prefácio da edição inglesa da História de Portugal. Desanca o jornalista e atribui o teor brando do texto a uma negociação com a Coroa para retornar a Portugal. Camilo enganou-se: o prefácio em inglês não é de Hipólito. Além disso, em 1809 o Correio Braziliense estava lançado, seu tom oposicionista bem definido e a Narrativa da perseguição sendo redigida.

Também aqui Camilo é contraditório: no Perfil do marquês de Pombal retrata a autoridade de Hipólito e no prefácio aos Ratos da Inquisição o destrata. [António Serrão de Castro (c.1610-c.1685), boticário e poeta cristão-novo preso pela Inquisição em Lisboa (1672) com os filhos e demais membros da Academia de Singulares. Penou dez anos no cárcere, perdeu os bens, a visão e, depois do auto-da-fé em que o filho foi garroteado, viveu como mendigo. O longo poema em décimas trata dos ratos que infestam o cárcere servindo-se da comida dos presos. Camilo recuperou o manuscrito e publicou-o em 1883 com uma longa introdução na qual cita Hipólito de forma extemporânea e injusta. Foi contestado com precisão cerca de trinta anos depois em São Paulo (ver abaixo).]

Aversão à reverência (tantas vezes a descambar na irreverência) e inclinação para o sectarismo gremial (ou compadrio) combinam-se para prejudicar a literatura biográfica em língua portuguesa através de duas reações opostas, igualmente danosas: a hagiografia divinizadora e a iconoclastia arrasadora. Impolutos heróis ou denegridos vilões, o pêndulo do juízo sobre nossas figuras estelares está sempre próximo do pré-juízo.

Nosso descaso pela biografia ? se comparado com o intenso biografismo anglo-saxônico, especialmente inglês ? nada tem a ver com o passado latino. Deste herdamos o idioma mas não o culto aos luminares e exemplares do qual Suetônio é modelo.

A biografia como retrato de uma personalidade (com suas virtudes e defeitos) ou relato de uma trajetória (com seus erros e acertos) é gênero que não vicejou com muita intensidade no mundo lusófono, que se inclina para o panegírico ou descamba na infâmia. Na polarização de veemências ? contra e a favor ?, no passionalismo com que se desenterram velhas pendências, reduz-se a galeria de vultos ilustres. Aparentemente há uma relação de causa e efeito entre esse biografismo claudicante e o copioso memorialismo. Neutraliza-se a severidade dos pósteros com a indulgência dos contemporâneos.

Além da indignação do sempre indignado Camilo, o reconhecimento de Hipólito nos dois lados do Atlântico foi tardio. E pelo avesso. Em língua portuguesa, seu primeiro perfil foi traçado por um desafeto e competidor, o também jornalista, e também residente em Londres, José Liberato Freire de Carvalho, três décadas depois da sua morte. Relato comprometido pela má vontade de quem fora vencido nas diferentes disputas enquanto jornalista, agente e pensador político. [Em língua inglesa, o primeiro bosquejo biográfico saiu poucos meses depois da morte no Gentleman?s Magazine (ver adiante). Liberato foi redator do Investigador Português em Inglaterra no período de 1814-18. Fundado em Londres, em 1811, com recursos da Coroa para neutralizar a influência do Correio, deixou de circular em 1818. Ver Memórias da vida de José Liberato Freire de Carvalho (Lisboa, 1855; 2? ed., com notas de João Carlos Alvim, Lisboa: Assírio e Alvim, 1982).]

Varnhagen e Inocêncio, na mesma época, jogaram-se à tarefa de reabilitar Hipólito da verrina do rival. Mas em 1908, por ocasião do primeiro centenário da imprensa brasileira, a respeitável Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Brasil cometeu enorme injustiça ignorando aquele que é considerado patriarca do jornalismo brasileiro e do jornalismo político português. Da edição programada para dois volumes, só saíram duas partes do primeiro sem qualquer alusão ao redator do Correio Brasileiro. Omissão reparada em São Paulo quatro anos depois pela concorrente, a Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo. [Tudo indica que os editores preparavam-se para tratar de Hipólito ou do Correio na continuação da obra porque no verso da folha de rosto da parte 2 do primeiro volume anunciam a continuação com um “quadro esquemático do desenvolvimento jornalístico desde 1808”. Como a revista continua sendo editada sem interrupções até os dias de hoje e jamais cumpriu-se a promessa, evidencia-se que houve problemas para colocar Hipólito como precursor. Curiosamente, cita-se o irmão matemático, José Saturnino da Costa Pereira (mais tarde senador), como um dos primeiros diretores da Imprensa Régia. A comissão de redação era encabeçada pelo conde Afonso Celso. A omissão da principal publicação histórica brasileira foi reparada quatro anos depois pela “Biografia de Hipólito José da Costa Pereira Furtado de Mendonça”, de Alcebíades Furtado, na Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, vol. 17 (1912), pp. 221-56.]

O reconhecimento a Hipólito esbarrou sempre na sua dupla condição de residente em Londres e militante maçom. Um nativismo às avessas combinado ao arraigado clericalismo católico não permitiu que Hipólito fosse devidamente festejado como precursor, apesar de nascido no então território brasileiro, apesar do título da publicação e apesar da poderosa influência que exerceu tanto no Reino como na Colônia. A isto acrescenta-se o fato de que o primeiro redator do primeiro jornal impresso no Brasil (a Gazeta do Rio de Janeiro, que divulgava os atos do governo recém instalado) foi um religioso nascido em Portugal, frei Tibúrcio do José da Rocha. A questão da paternidade do jornalismo brasileiro transcende a antiga discussão cronológica (no tocante às datas em que foram redigidos ou circularam os respectivos veículos), fixando-se na “qualidade” dos seus redatores.

Exemplo deste preconceito (ou da habilidade em contorná-lo) é a obra de Hélio Vianna, Contribuição à história da imprensa brasileira (1812-1869), que, a partir do período estudado, tenta escapar da controvérsia que fatalmente faria justiça ao redator do Correio Braziliense. [Vianna declara sutilmente no prefácio que não pretende fazer uma história do jornalismo no Brasil mas oferecer uma contribuição à história da imprensa brasileira. A obra tem cunho oficialista, editada pelo Instituto Nacional do Livro (Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1945). Hipólito e o Correio são citados algumas vezes de forma elogiosa mas nunca como precursores. Duas plaquetes oficiais publicadas em seguida adotam a mesma linha anti-hipolitana: Alexandre Passos, “A imprensa no período colonial”, em Cadernos de Cultura (Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1952); e Fernando da Silva Gomes, Aspectos da história da imprensa (Rio de Janeiro: Ministério do Trabalho, 1956).]

Hipólito também foi relegado a segundo plano na efeméride do Dia da Imprensa. A escolha do primeiro dia de circulação da gazeta oficial (10 de setembro de 1808), e não da data em que foi redigido o primeiro veículo efetivamente jornalístico (1? de junho de 1808), denota preferência de cunho nitidamente ideológico não apenas no tocante ao estilo mas às convicções dos respectivos redatores. A comemoração foi finalmente alterada no fim do século XX em benefício de Hipólito, graças à pressão dos jornalistas brasileiros. [O Dia da Imprensa foi instituído no período Vargas com a clara intenção de conquistar as simpatias da imprensa então constrangida pela censura. A alteração longamente reivindicada por jornalistas profissionais e estudiosos em todo país passou a vigorar a partir do ano 2000, graças à parceria entre a bancada de deputados federais gaúchos e as entidades jornalísticas do estado.]

Hipólito só foi alçado ao merecido pedestal em 1957 com publicação das duas alentadas biografias, pilares de uma reabilitação que tardou 134 anos para se materializar. [Assis Chateaubriand teve o mérito de antecipar-se a Carlos Rizzini e Mecenas Dourado em matéria de homenagem quando, em 1942, deu o nome de Hipólito a um dos aviões na campanha “Asas para o Brasil”.]

A modéstia do acervo biográfico lusófono não foi enriquecida pelo potencial renovador do Renascimento e do Iluminismo devido à invulgar sobrevida de uma instituição que deixou marcas profundas na mentalidade, na política, na economia e na cultura luso-brasileiras: o Tribunal do Santo Ofício contra a Herética Pravidade, ou seja, a Inquisição (1536-1821). [José Anastácio da Cunha, Notícias literárias de Portugal, 1780 (trad., pref. e notas de Joel Serrão. Lisboa: Seara Nova, 1966 e 1971). Ver adiante.]

O objetivo inicial de combater as heresias religiosas rapidamente ampliou-se e converteu-se na grande barreira para a introdução de novas idéias. Enquanto na França as iniciativas liberalizantes visavam abrandar o absolutismo monárquico (abençoado pelo clero), em Portugal os esforços inovadores dirigiram-se contra o absolutismo religioso (sustentáculo da Coroa). Razão pela qual a maior parte das propostas de abertura e mudança ao longo dos séculos XVII e XVIII dirigiram-se liminarmente contra o Santo Ofício e foram empreendidas por agentes situados fora do seu alcance: embaixadores, personalidades que gozavam dos reais favores, desterrados por vontade própria ou corridos do país por vontade alheia. [Exceção foi Manuel Fernandes Vila Real, cônsul em Paris, autor, tradutor e interlocutor de d. João IV: embora vivendo no exterior foi enredado pela rede de malsinações da Inquisição e acabou executado num auto-da-fé em Lisboa (1/12/1652).]

Ao contrário dos exilados, em geral aferrados às tradições, estes emigrantes não sentiam saudades do país tal como o haviam deixado; ao contrário, inspirados na atmosfera mais liberal que os rodeava, aferraram-se à idéia de mudar. Ficaram conhecidos como “estrangeirados”, graças à compulsão para a zombaria dos que haviam permanecido no Reino. [Maria José de Queiroz, Os males da ausência ou A literatura do exílio (Rio de Janeiro: Topbooks, 1998).]

As sugestões para vencer o atraso e a ignorância remetidas de
diversas capitais européias centravam-se principalmente nos desmandos
da poderosa instituição político-religiosa que os estrangeirados
viam como causa do que se convencionou chamar “os males de Portugal”.
Modernização e fim do Santo Ofício são conceitos
imantados. Estrangeirados e Inquisição, duas pontas de um mesmo
fenômeno.

Não foi um grupo organizado ? estendeu-se ao longo de um século e a maioria dos seus integrantes sequer se conheceu. Não pode ser visto como um movimento articulado ? o rótulo, consignado pelos historiadores, foi a posteriori. Não havia um projeto agregador ? cada um deles seguiu a sua capacidade de observar e o ditado das consciências. Contudo, graças à circunstância de estarem no exterior, os estrangeirados constituem outra das afortunadas casualidades portuguesas. Rebeldes, marginais ou visionários, conseguiram pontuar a história das idéias com impulsos modernizadores que, no conjunto e devidamente perspectivados, constituem um esforço consistente, ainda que intermitente, e ao qual não faltam grandes doses de coragem.

Protagonistas de um teatro das mentalidades no qual um Portugal enrustido e auto-excluído da Europa concedia a alguns o privilégio de testemunhar as mudanças e emitir o dernier cri da modernidade, a salvo da pecha de heréticos e do garrote inquisitorial. [Antero de Quental, “Causas da decadência dos povos peninsulares”, em Idem, Prosas (Coimbra: 1926), vol. 2.]

Ignora-se quem os alcunhou ? com sutil intenção malévola ? de estrangeirados, mas sabe-se que Jaime Cortesão apodou o grupo adversário como “castiços”. Com a mesma ironia, estes poderiam ser chamados de nativistas, tradicionalistas ou conservadores. Por oposição, os estrangeirados são os cosmopolitas e reformadores. [Jaime Cortesão, “Castiços e estrangeirados”, em Idem, Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madrid, 1? parte, t. 2, pp. 99-106.]

Nem sempre coerentes, caso do paradoxal marquês de Pombal. No seu conjunto, no entanto, funcionaram como respiradouro, embora com propostas nem sempre afinadas, até discrepantes.

Considerando o arco de cem anos (1650-1750) no qual Joel Serrão encaixa o fenômeno dos estrangeirados [Joel Serrão, Dicionário da história de Portugal, vol. 2 (Porto, 1992), pp. 466-74.], é possível estabelecer uma convergência e identidade, escorço para uma ideologia da tolerância cujo ponto fulcral é o repúdio à Inquisição.

Se o militar, diplomata e polígrafo Francisco Manuel de Melo (1608-66) não deixou registrada uma plataforma de sugestões, seu Tratado da ciência cabala, pouco conhecido e póstumo, é uma audaciosa tentativa de compatibilizar a cabala hebraica com a religião cristã no auge do furor inquisitorial. No intróito refere-se abertamente a uma discussão motivada por um auto-da-fé. [Nas andanças por Flandres, Londres e Roma, manteve estreita relação com cristãos-novos portugueses exilados. Ver Edgard Prestage, D. Francisco Manoel de Mello (Coimbra: 1914); e, também, Tratado da ciência cabala (com. de Elias Lipiner e apres. de Alberto Dines. Rio de Janeiro: Imago, 1997).]

O jesuíta Antônio Vieira (1608-97) não costuma ser incluído no elenco dos estrangeirados, mas sua passagem por Amsterdã (onde dialogou com o famoso rabino Menasseh ben Israel), as estadas no Vaticano (onde pregou para a rainha Cristina da Suécia, que o convidou para integrar-se à sua Corte), seu amplo conhecimento do Novo Mundo, a incansável faina para mudar os procedimentos da Inquisição com a reintegração dos cristãos-novos e, por fim, o enfrentamento com os dominicanos, qualificam-no plenamente para ser incluído no grupo, talvez até como seu inspirador. Atributos que se somam à criação da Companhia de Comércio e sua utopia ecumênica, a História do futuro.

Político, diplomata, autor e tradutor, o brasileiro Alexandre de Gusmão (1695-1753, irmão de Bartolomeu, o Padre Voador) estudou e serviu em Paris. Conselheiro de d. João V, deixou cartas e diatribes contra o despotismo, a superstição e a “fradaria”. Entre elas, a célebre sátira estatística dirigida aos cristãos-velhos, “puritanos”, que se gabavam do sangue rigorosamente limpo da infecção judaica, malicioso ataque aos fundamentos racistas da Inquisição. O seu desabafo (“oh, quem pudera dizer o que sente!”) tornou-se símbolo do sufoco e falsidades da Lisboa joanina que só a experiência de arejamento de um estrangeirado podia aquilatar. [“Juízo” (s.d.), em Alexandre de Gusmão, Collecção de vários escritos inéditos políticos e literários (Porto: 1841).]

O célebre médico português Jacob (Henrique) de Castro Sarmento (1691-1762), cristão-novo refugiado em Londres, manteve intenso contato com a Corte de d. João V, alimentando-a com inúmeras sugestões científicas, filosóficas e pedagógicas. É considerado um dos introdutores do Iluminismo em Portugal, o que, em última análise, torna patente uma conexão entre os estrangeirados e a abertura iluminista dos filósofos. [Augusto Esaguy, Jacob de Castro Sarmento. Notas relativas à sua vida e sua obra (Lisboa: Atica, 1946).]

Na mesma direção segue a trajetória do padre Luís Antônio Verney (1713-92), português de origem francesa que passou grande parte de sua vida adulta na Itália, de onde assistiu o acender das Luzes em toda a Europa. Identificou no modelo educacional retrógrado a origem das mazelas nacionais. Seu famoso tratado Verdadeiro método de estudar para ser útil à República e à Igreja, impresso na Itália, foi confiscado pela Inquisição. [ António Alberto de Andrade, Verney e a cultura de seu tempo (Coimbra: 1966).]

Ao Cavaleiro de Oliveira (Francisco Xavier de Oliveira, 1702-83), a Inquisição não castigou fisicamente mas de forma simbólica: sua efígie foi queimada em grandioso auto-da-fé público em Lisboa (1761, o mesmo em que foi garroteado e queimado o padre Gabriel Malagrida). Libertino, pilantra, galante e talentoso, serviu em função menor na embaixada em Viena, brigou com o embaixador, passou à Holanda e Inglaterra, seduziu grandes damas, converteu-se ao protestantismo, escreveu livros, panfletos, cartas e um diário (em francês, geralmente jocoso). Impressionado com o terremoto que destruiu Lisboa em 1755, produziu o famoso Discours pathétique, no qual considera o cataclisma como expressão da cólera divina ante os desmandos da Inquisição. Sua obra chegou aos círculos iluministas franceses e o auto-da-fé em que foi “queimado em efígie” aparece no Candide de Voltaire. [Aquilino Ribeiro, O Cavaleiro de Oliveira (Porto: Livraria Lello, s.d.); Artur Portela, Cavaleiro de Oliveira, aventureiro do século XVIII (Lisboa: Imprensa Nacional, 1982).]

Brasileiro, oriundo de Santos (como Alexandre de Gusmão, de cuja amizade usufruiu), Matias Aires da Silva de Eça (1705-65) é um estrangeirado peculiar, quase sem ardores. Reflexões sobre a vaidade dos homens, sua obra máxima, desvenda um arsenal de questionamentos destinados a criar fissuras na credulidade joanina, impedida de duvidar e saber. Esse homem rico, taciturno (não muito diferente de Montaigne), preferiu o ceticismo ao combate frontal. Almejava a liberdade íntima mas, acima de tudo, pretendia perturbar. No sul da França aprendeu hebraico, em Paris estudou matemática, física e química ? um dos primeiros a perceber o espírito multidisciplinar das Luzes, a busca do saber juntando ciência às humanidades. [António José Saraiva & Óscar Lopes, História da literatura portuguesa (Porto: 1955), pp. 625-30.]

A inclusão de Matias Aires entre os estrangeirados sugere que a qualificação pode ser estendida a aquele que se tornou o símbolo do horror inquisitorial: seu contemporâneo, compatriota e companheiro de estudos, Antônio José da Silva, o Judeu (1705-39). Cristão-novo, nasceu no Rio de Janeiro e com sete anos seguiu para Lisboa juntamente com o clã familiar, encarcerado após gigantesca incursão inquisitorial na cidade fluminense. Suas comédias, como a obra de Matias Aires, visam inquietar. Sua subversão é intelectual, sua proposta de mudança, sub-reptícia. A crítica mordaz das instituições lusas ? entre as quais o Judiciário ? contém uma coragem moral que não se encontra em outras obras impressas em Portugal.

O Judeu não viveu no estrangeiro mas guardava a rebeldia do estrangeirado e do marginal. Sua chacota, bem brasileira, distanciou-se do conformismo generalizado ou das piadas bem comportadas dos humoristas da Corte (entre eles Tomás Pinto Brandão). Ousou queixar-se e satirizar a intolerância, ali mesmo em Lisboa, no Teatro do Bairro Alto, em montagens eminentemente populares.

Encarcerado pela segunda vez como judaizante, não há em seu processo qualquer menção à atividade teatral ou ao teor sarcástico das suas óperas. Porém, do grupo familiar preso durante uma celebração clandestina do Iom Quipur, ele foi o único a ser executado. [Alberto Dines, Os vínculos do fogo. Antônio José da Silva, o Judeu, e outras histórias da Inquisição em Portugal e no Brasil, vol. 1 (São Paulo: Companhia das Letras, 1992).]

Figura emblemática, embaixador em Londres, Madri e Paris, d. Luís da Cunha (1662-1749) é o protótipo do “estrangeirado de resultados”, tanto pelo corpo de sugestões como pelos efeitos obtidos. Seu “programa” apareceu em duas versões, nas Instruções para Marco Antônio de Azevedo Coutinho e no mais completo e definitivo Testamento político, dirigido ao príncipe d. José a pedido deste (1747-49), no qual sugere a nomeação de Sebastião José de Carvalho e Melo, o futuro marquês de Pombal, para uma das secretarias de Estado.

Considerado precursor (ou “padrinho”) do período pombalino, no seu rol de propostas econômicas, administrativas e políticas ? algumas de caráter visionário como a transferência da Corte para o Brasil ? inclui-se severa crítica ao Tribunal da Inquisição (que designa como ” insensível e crudelíssima sangria”) e à injusta perseguição aos cristãos-novos, forçados a abandonar Portugal e ver confiscados os seus engenhos no Rio de Janeiro, prejudicando a prosperidade da Colônia. Nestas duas questões, o estrangeirado Luís da Cunha coincidia com as reivindicações de outro, o padre Antônio Vieira, cerca de 100 anos antes. [“Testamento político”, em Conselhos aos governantes (apres. de Walter Costa Couto. Brasília: Senado Federal, 1998).]

Indicado por um estrangeirado, o próprio Pombal (1699-1782) tem os atributos para participar desse grupo virtual e, na condição de seu expoente máximo, pela demorada vilegiatura no exterior e o acervo de medidas que transformaram o país no campo da educação, administração, economia, reforço do Estado e política externa. A modernidade portuguesa começa com ele e a controvérsia a seu respeito permanece aquecida, incorporada ao pensamento português contemporâneo ? primeira de uma série a desafiar a passagem do tempo (a questão maçônica e a disputa “miguelista” são outras).

Traços arbitrários, caprichosos e sanguinários (caso das execuções do padre Malagrida e dos Távora), não podem ser dissociados dos doze anos de vivência numa Europa ainda não bafejada pelo sopro da Revolução Francesa. Em Londres, mas sobretudo na Viena conciliadora e dissimulada, onde testemunhou os primeiros clarões da Aufklärung, o estrangeirado-mor absorveu a equação do “despotismo esclarecido”. Apesar dos senões, colocou o reinado de d. José num patamar de tolerância muito acima do de d. João V. [Kenneth Maxwell, Marquês de Pombal, paradoxo do Iluminismo (São Paulo: Paz e Terra, 1996; ed. original, Pombal: Paradox of the Enlightenment); Ivan Teixeira, Mecenato pombalino e poesia neoclássica (São Paulo: Fapesp/Edusp, 1999); Paul Mury, História de Gabriel Malagrida (trad. Camilo Castelo Branco; 2? ed. São Paulo: Loyola/Giordano, 1992).]

À extinção das diferenças entre cristãos-velhos e cristãos-novos em 1773, seguiu-se novo Regimento do Santo Ofício da Inquisição (1774), o último de uma série de cinco (o anterior vigorara ao longo de 134 anos). Pombal acabou com os autos-da-fé públicos e execuções capitais e, sobretudo, tirou o tribunal da alçada religiosa para transferi-lo ao âmbito secular do Estado. O que foi reforçado, na prática, pela nomeação do irmão do marquês, José Maria de Melo, como inquisidor-geral. [O texto do Regimento teria sido redigido pelo próprio primeiro-ministro com a ajuda de José Basílio da Gama, autor do poema “Uraguai”, na condição de funcionário graduado. Ver Raul Rego, prefácio de O último Regimento da Inquisição Portuguesa (Lisboa: 1971).]

As mesmas contradições, ambigüidades e disfarces, Pombal aplicou pouco antes (1768) ao criar a Imprensa Régia e, concomitantemente, abolir a censura inquisitorial, para, em seu lugar, estabelecer a Real Mesa Censória. Heresias deixadas de lado, os alvos preferenciais dos censores passaram a ser os filósofos e sua mensagem iluminista (Rousseau, Voltaire, Diderot e Locke). [José Timoteo da Silva Bastos, História da censura intelectual em Portugal (Coimbra: 1926).]

O estrangeirado importou as concepções de uma Europa agitada e contraditória. No confortável posto de observador, não produziu um corpo de proposições escritas, mas no exercício do poder absoluto através de vários diplomas colocou em movimento o ideário ansiado pelos antecessores, contemporâneos e por ele próprio.

O poeta Filinto Elísio (1734-1819), depois da “viradeira” antipombalina, surpreendido por uma denúncia à Inquisição, fugiu para a França com 44 anos. Na mansarda parisiense onde penou o exílio e a velhice, produziu uma obra carregada de críticas. Viu a “Elísia” (Portugal) como atoleiro de superstições orientais não poupando os aristocratas, o alto e o baixo cleros, os inquisidores, “gente que mantinha o povo e o parvo rei numa bárbara intolerância, numa crassa ignorância”. [António José Saraiva & Óscar Lopes, História da literatura portuguesa (op. cit.), pp. 682-83.]

Embora o matemático e poeta José Anastácio da Cunha (1744-87) nunca tenha saído de Portugal, sua biografia e obra são as de um legítimo estrangeirado. Militar, designado para servir na praça de Valença do Minho ? então defendida pelos ingleses ?, no convívio com os oficiais teve a oportunidade de desenvolver seus dotes e inclinações para a ciência e a literatura.

Lente de geometria em Coimbra aos 29 anos, com a viradeira antipombalina também caiu em desgraça: um dos seus alunos o denunciou à Inquisição por ser amigo dos protestantes ingleses e leitor dos filósofos proibidos. Embora abrandado, o Santo Ofício condenou-o por “tolerantismo” e “indiferentismo”: perdeu bens, posto militar, cátedra e ficou recluso durante três anos numa instituição religiosa. Morreu aos 43 anos, pouco depois de liberto.

Sua visão crítica de Portugal está incluída num opúsculo tipicamente estrangeirado ? redigido em francês no cativeiro e só impresso cerca de 180 anos depois da sua morte. Faz parte do grupo de estrangeirados do período iluminista, multifacetados e multidisciplinares, capazes de juntar artes e ciências, tecnologia e humanidades. [Notícias literárias de Portugal, 1780, op. cit. Manuscrito descoberto por Joel Serrão no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro (Colecção de Memórias, vol. 7, códice 807); “Anastácio da Cunha, matemático e poeta”, em Actas do Colóquio Internacional, outubro de 1987 (Lisboa: Imprensa Nacional, 1988). O processo do matemático é narrado em António Baião, Episódios dramáticos da Inquisição portuguesa, vol. 2 (Lisboa: Seara Nova, 1955).]

Médico fugido dos rigores da Inquisição, famoso nos quatro cantos da Europa, António Ribeiro Sanches (1699-1783) é o estrangeirado iluminista stricto sensu, pensador e operador, humanista e cientista. Viveu 57 dos seus 84 anos longe da terra natal, sempre empenhado em estimular mudanças no país que deixara aos 27 anos.

Cristão-novo, escapou de Lisboa para Londres, converteu-se ao judaísmo para, em seguida, apartar-se da Lei de Moisés. Exerceu a medicina e desenvolveu importantes trabalhos teóricos (como o Tratado da conservação da saúde dos povos). [Publicado em Paris (1756), no apêndice faz considerações sobre terremotos, a propósito do sismo que, um ano antes, devastara Lisboa.] Da Inglaterra passou à Holanda, França e, durante dezesseis anos na Rússia (notadamente em São Petersburgo, a serviço da família imperial) retornando depois a Paris, onde faleceu.

Sua primeira contribuição reformista teria exercido grande influência no Testamento político de d. Luís da Cunha e na decisão pombalina de esvaziar o Tribunal da Inquisição da sua missão original contra as heresias. “Origem da denominação de cristão-novo em Portugal” é um apanhado histórico e dramático testemunho pessoal, mas, sobretudo, vigoroso safanão na odiosa discriminação que, ao longo de três séculos, permeou não apenas a mentalidade mas também a organização social, a economia e a estrutura política portuguesas. A motivação para escrever o libelo pode ter sido a execução, por garrote, do parente João Henriques, enredado pela Inquisição nas Minas Gerais, onde vivia. Auto-da-fé e manuscrito datam ambos de 1748. [Sobre os parentes de Ribeiro Sanches presos pelo Santo Ofício no Brasil, ver adiante. Manuscrito original datado de 8/11/1748 (a execução do parente foi em 20 de outubro mas o processo arrastava-se há anos). Leva a assinatura de Philopater e dele fizeram-se à época inúmeras cópias também manuscritas. Só foi impresso 208 anos depois, em Álvaro Cassuto, Arquivo de bibliografia portuguesa, II, 8 (Coimbra: 1956) [2a. ed., pref. de Raul Rego. Lisboa: Livraria Paisagem, 1971].]

Por intermédio de d. Luís da Cunha e de embaixadores portugueses na Europa, remeteu à Coroa outras contribuições dentro de um espectro temático surpreendente, razão pela qual é considerado como oráculo de Pombal. O texto intitulado Dificuldades que tem um Reino velho para emendar-se (onde aparece a expressão “reino cadaveroso” usada e abusada nos séculos seguintes) revela a amplitude das suas reflexões e, indiretamente, a influência exercida no programa pombalino. Muito contribuiu para isso uma postura rigorosamente científica, a salvo de influências dos filósofos capazes de comprometê-lo perante as autoridades, porém de teor claramente humanista, liberal e anticlerical.

Caso das famosas “Cartas sobre a educação da mocidade” de 1760 e dirigidas ao embaixador português em Paris, depois portanto da proposta pedagógica de Verney, oferecendo amplo leque de contribuições que abarcam a proposta de secularização, a criação de uma Secretaria de Estado para o ensino público e a reorganização curricular.

Capítulo importante nessas cartas é o que condena a escravidão e a intolerância civil, uma das primeiras, senão a primeira, manifestação escrita em português contra a cruel servidão dos negros.

O mais viajado dos estrangeirados, Ribeiro Sanches jamais pisou no Brasil, o que não o impediu de preocupar-se com a principal colônia. Talvez por sua importância na economia portuguesa ou talvez porque, além do boticário João Henriques executado em Lisboa, outros três parentes bastante próximos haviam sido enredados na mesma ocasião pelo Santo Ofício, inclusive um homônimo, também médico, residente em Paracatu. [A execução (eufemisticamente chamada de “relaxamento à justiça secular”) ocorreu em 1748, um dos vinte brasileiros (ou residentes no Brasil) executados pela Inquisição de Lisboa ao longo de sua vigência. Ver Alberto Dines, Vínculos do fogo, op. cit.; e Neusa Fernandes, “A Inquisição em Minas Gerais no século XVIII”, tese de doutorado (São Paulo: Universidade de São Paulo, 2002).]

O Brasil é mencionado extensamente nas Dificuldades que tem um Reino velho para emendar-se, no qual recomenda que a Colônia não seja “tragada” pelo Vaticano ou pela Inglaterra, assim como no texto “Sobre as lavouras e fábricas de tabaco do Brasil” e nas “Considerações sobre o governo do Brasil desde o seu estabelecimento até o presente tempo”. [Há um quarto texto indiretamente relacionado com o Brasil: “Intento que tiveram Castela e Portugal quando plantaram e estabeleceram as colônias que possuem”. Desaparecido está um quinto manuscrito, intitulado “Discursos sobre as colônias, sobre a América portuguesa e sobre a agricultura” (referido em Inocêncio, Dicionário bibliográfico, t. 8, pp. 262-63). Os demais podem ser lidos em Dificuldades que tem um Reino velho para emendar-se (org. e notas de Vitor de Sá. Porto: Editorial Inova, s.d.).]

Tratou também das afecções da alma, da melancolia, da escravidão na Rússia, do ensino da medicina, dos bosques e da reforma agrária. Ao que consta, foi o único português que colaborou na Enciclopédia de Diderot, fato mantido em segredo na sua pátria. Certamente informado da cruzada inquisitorial contra as obras dos filósofos, Ribeiro Sanches não se aventurou em propagá-las explicitamente. Mas remeteu algumas obras a um sobrinho, terceiranista de medicina e preparador de química em Coimbra, que vivenciou o lado escuro do Iluminismo português.

O episódio foi protagonizado por um bando de jovens pândegos muito lidos, alguns brasileiros, entre os quais um parente que se considerava sobrinho, Manuel Joaquim Ribeiro Paiva, todos envolvidos numa peraltice em que se misturavam picardia, anticlericalismo e vanguardismo intelectual. Tantas fizeram os estudantes ? inclusive preparar no laboratório de química alguns presuntos na Sexta Feira Santa ? que foram denunciados e presos pelo Santo Ofício (1779-81).

Um dos réus, Manuel Joaquim, declarou aos inquisidores que “isto não é terra para ninguém viver nela […] haveria de ir para a Inglaterra ou Holanda para viver em liberdade […] em Londres estava bem estabelecido o seu tio, o grande médico Sanches”.

Na farsesca conjuração conimbrense foi encarcerado outro brasileiro, natural do Rio de Janeiro e futura celebridade. Diante dos iletrados inquisidores, admitiu que o citado Manuel Joaquim lhe emprestara alguns livros de “Russô” [sic, o escrivão não conseguiu escrever Rousseau] porque tem “muita comunicação com o médico Sanches que é sócio de uma academia estrangeira”. [O estudante nasceu no Rio de Janeiro onde o pai, Antônio Ribeiro de Paiva (boticário, cristão-novo), se estabelecera após ser penitenciado pela Inquisição de Lisboa (1747, um ano antes do libelo de Ribeiro Sanches sobre os cristãos-novos). Ver Alberto Dines, “Inquisição como farsa”, em Francisco Melo Franco, Medicina teológica (São Paulo: Giordano, 1994); e, também, Maximiano Lemos, Ribeiro Sanches, a sua vida e a sua obra (Porto: 1911) e Estudos de história da medicina peninsular (Porto: 1916).]

O estrangeirado, apesar da distância e da censura, alcançara os
subterrâneos da universidade. O leitor clandestino de Rousseau chamava-se
António Moraes e Silva, tradutor da História de Portugal, composta
em Londres por Hipólito da Costa e na qual o intransigente Camilo Castelo
Branco buscou transigências com o Santo Ofício. [As vicissitudes
de Moraes estão registradas no Arquivo Nacional da Torre do Tombo (Inquisição
de Lisboa, processo 13.369) e em António Baião, Episódios
dramáticos da Inquisição portuguesa (op. cit.), vol. 2.]

Moraes forma-se e, devidamente penitenciado, embarca para Londres ? pensando estar quites com o tribunal. Lá permanece quatro anos, cuidando do dicionário que o tornaria famoso, e, certamente, militando no círculo de exilados portugueses. [Tudo indica que o Diccionário da língua portugueza tenha sido composto no exílio. A primeira edição é de 1798 e a primeira estadia londrina de Moraes deu-se no período de 1779-85. Para lá voltou no início do século quando Hipólito já fugira da Inquisição e juntos trabalharam na tradução da História de Portugal (1809). Moraes teve que haver-se com o Santo Ofício outras duas vezes sem maiores conseqüências (António Baião, op. cit.).]

Hipólito, ao contrário do companheiro, não chega a ser condenado, porque fugiu do Palácio da Inquisição. Seu processo permanece em suspenso, inconcluso. Sob o ponto de vista jurídico continua réu do Santo Ofício até 1821 quando a instituição foi dissolvida para alegria dos portugueses e brasileiros.

Na condição de réu, mas em liberdade e amparado pelos recursos da Maçonaria inglesa, Hipólito concentra na hidra do Rossío a revolta pessoal pelos maus tratos e a indignação política contra aquela que em todos os cantos da Europa encarnava o atraso de Portugal.

Nos organizados arquivos da Inquisição de Lisboa inexistem traços documentais da prisão, interrogatórios ou fuga do patriarca da imprensa brasileira ? um dos raros casos de desaparecimento de processo. [O processo no qual se narra sua prisão é o do amigo, compatriota (nascido em Minas) e correligionário José Joaquim Vieira Couto, preso na mesma ocasião (Inquisição de Lisboa, 16.809). Acusado não apenas de fazer parte da Maçonaria mas de reclamar contra a espoliação de Minas, no Correio (CB 6:705-06) Hipólito conta, entre comovido e revoltado, as desventuras de Vieira Couto, que penou em diversas prisões até 1811, quando morreu encarcerado na ilha Terceira (Açores).] E, no entanto, quando em 1811 lança em Londres a Narrativa da perseguição, Hipólito afirma que tirou da memória tudo o que lhe acontecera nos três anos de horrores. A explicação não se ajusta ao registro quase taquigráfico do interrogatório a que foi submetido na sessão in genere.

Tudo sugere que o documento tenha sido furtado pelo fugitivo e por dois motivos: para eliminar as provas que o incriminavam (assim como os demais companheiros da Maçonaria lusa) e para armar-se de provas quando iniciasse a cruzada contra o Santo Ofício. [Conforme indica no subtítulo da versão inglesa, os dois regimentos do Santo Ofício que acompanham o relato foram localizados na Biblioteca Real.]

A hipótese do calhamaço surrupiado é reforçada no necrológio publicado em Londres, em seguida à sua morte, no qual o articulista rememora passagens importantes na vida do falecido e revela que, na noite da fuga, Hipólito encontrou além das chaves e da lamparina, um livro “contendo, além de outros registros, a minuta de tudo o que sofrera. O que fazer? Deveria abandonar este precioso documento? Não! Se vai ganhar a liberdade, o livro também a merece”. [Necrológio publicado no Gentleman?s Magazine (dez. 1823), pp. 558-60, revista londrina com a qual Hipólito e seu protetor, o duque de Sussex, mantinham sólido relacionamento.]

Este “diálogo” íntimo, licença ficcional do obituarista, oferece uma chave para explicar a pertinaz campanha de Hipólito da Costa contra a Inquisição ao longo dos dezoito anos seguintes. O livro “libertado” será parte de seu arsenal na luta contra a Inquisição. Define-se assim um projeto de vida e um compromisso político que cumprirá a risca.

Hipólito é caso único no rol dos denunciantes do Santo Ofício: os demais libelos aparecidos nos séculos XVII e XVIII foram publicados por presos penitenciados em autos-da-fé, portanto quites; ou então por testemunhas que presenciaram a macabra solenidade; ou, ainda, por opositores que, longe das masmorras da Inquisição, deblateram contra seus procedimentos.

Hipólito, ao contrário, produziu sua denúncia como revel: manteve-se na condição de acusado e manteve a determinação de enfrentar os acusadores. Foragido mas não escondido.

“É desgraçada a situação do homem que se vê obrigado a falar de si mesmo e fazer sua própria apologia: mas que remédio quando me vejo atacado e infamado sem se me conceder recurso?” [Hipólito José da Costa, Narrativa da perseguição (1? ed. Londres: 1811), vol. 1, pp. 6-7.]

Com uma única exceção, todos os relatos anteriores sobre o universo inquisitorial tiveram grande repercussão na Europa e, não por casualidade, foram originalmente editados na Inglaterra:

** Notícias recônditas do modo de proceder da Inquisição a seus presos (c.1670, erroneamente atribuídas ao padre Viera, mas certamente por ele encorajadas). [Tudo indica que as Notícias recônditas tenham sido redigidas em Roma pelo notário do Santo Ofício em Lisboa, Pedro Lupina Freire, quando este acompanhou o padre Vieira nas gestões junto ao papa Clemente X visando o abrandamento do Santo Ofício. Jamais impressa em português, teve versões em inglês (An Account of the Cruelties Exerci?d by the Inquisition in Portugal [Londres: 1708]) e em espanhol (trad. do rabino David Nieto; ed. impressa em Londres, 1722). Ver Alberto Dines, Vínculos do fogo, vol. 1 (op. cit.), pp. 286-87.]

** Relação da Inquisição de Goa, de autoria do jovem médico francês Charles Dellon (1688), recambiado pela Inquisição à terra natal devido às pressões diplomáticas do seu país. Católico praticante, Dellon levou oito anos para decidir-se a divulgar suas experiências, mas em francês a obra saiu anônima (no mesmo ano, uma versão inglesa incluiu o seu nome). Cerca de cem anos depois, a Relação de Dellon e os textos do Cavaleiro de Oliveira inspiraram Voltaire para a cena do auto-da-fé em Candide. [Relation de L?Inquisition de Goa, sem autoria, Paris, 1688. Dedicatória a mademoiselle du Cambout de Coislin, no lugar da assinatura tem apenas a letra D***. A versão inglesa (Londres: s.e., 1688) traz um título mais denunciador: The History of the Inquisiton as it is Exercised at Goa, Giving an Account of the Horrid Cruelties which are Exercised therein. Na nota “Do tradutor ao leitor” informa-se que Dellon (sem nome de batismo) é muito conhecido pelos relatos de viagem ao Oriente.]

** Miscellaneous Tracts. A View of the Inquisition of Portugal, de Michael Geddes, advogado e pastor inglês que viveu em Lisboa no fim do século XVII, mas só publicou seu testemunho após retornar a Londres (1714).

** Os incomparáveis sofrimentos, do lapidário maçom e anglo-suíço John Coustos, além de fornecerem preciosas indicações sobre a Maçonaria inglesa (que financiou a obra) têm muita semelhança com o relato de Hipólito: a obra descreve a tortura, flagra os bastidores da Inquisição e todos os passos dos autos-da-fé, no auge da sua magnificência no período joanino. O maçom Coustos pretendia estabelecer-se como lapidário no Brasil, encaminhou um pedido às autoridades que, quando souberam das suas crenças, mandaram prendê-lo em 1740. Apesar de súdito de um país do qual Portugal tanto dependia, ficou dois anos no mesmo palácio-cárcere dos Estáus em que penou Hipólito (a imponente sede da Inquisição portuguesa onde foi construído o Teatro Nacional D. Maria II). Coustos saiu no auto-da-fé de 1742, sentenciado para servir nas galés, mas foi libertado graças às gestões do rei Jorge II. Seu depoimento só foi publicado 48 anos depois (1790), certamente para atender a algum compromisso assumido com a Coroa portuguesa interessada em adiar as repercussões negativas sobre o reinado de d. João V. [Unparalled Sufferings of John Coustos who Nine Times Underwent the Most Cruel Tortures ever Invented by Man (Birmingham). No frontispício, o autor menciona a atuação do rei na sua libertação e presta homenagem aos pedreiros livres.]

** Narrativa da perseguição, de Hipólito José da Costa, publicada primeiro em português (1811), em seguida vertida para o inglês pelo autor, também em dois volumes. Na pagina de rosto do primeiro volume da versão em português, está dito expressamente: “Contendo o processo do autor na Intendência de Polícia e na Inquisição, assim como o Regimento do Santo Ofício do ano de 1774”. Segue-se um preito à Maçonaria, tal como o fizera Coustos duas décadas antes. Na versão inglesa, Hipólito incluiu uma síntese histórica da Inquisição, desconhecida para o leitor inglês e um glossário do jargão adotado pelo Santo Ofício para disfarçar suas aberrações. [Títulos da versão inglesa: vol. 1, The Narrative of the Persecution of Hippolyto Jose da Costa Pereira Furtado de Mendonça; e vol. 2, The By-Laws of the Holy Office of the Inquisition of Portugal (ver Bibliografia). Ambas as versões impressas pelo tipógrafo W. Lewis, o mesmo do Correio Braziliense.]

Enquanto os demais denunciantes da Inquisição silenciaram após a publicação dos respectivos libelos, a narrativa hipolitana é apenas o início de uma cruzada que continuará ao longo dos catorze anos de vida do Correio Braziliense.

Hipólito segue o mesmo formato adotado por Ribeiro Sanches no texto sobre os cristãos-novos. O médico combina as dolorosas vivências do pária com a proposta para erradicar a injustiça que as produziu. O jornalista encaixa no dramático relato os documentos necessários para escancarar os horrores do sistema inquisitorial ? os regimentos de 1640 e 1774.

A publicação simultânea da versão inglesa revela o estrangeirado mais interessado em mobilizar o estrangeiro do que convocar apoios no país. O governo britânico conhece o que se passa em Portugal através dos relatórios dos seus embaixadores em Lisboa, verdadeiros vice-reis. A Inglaterra, apesar da perda da colônia na América do Norte, pretende manter-se como centro de poder político e intelectual e, com a ajuda da Maçonaria e da imprensa, atrai para Londres estrangeirados de ambos os lados do Atlântico, o que a torna incubadora de idéias, projetos e rebeldias que alteraram o Novo Mundo e parte do Velho. [Ian Buruma, Voltaire?s Cocunuts or Anglomania in Europe (Londres: 1999); Pam Decho & Claire Diamond (eds.), Latin Americans in London (Londres: University of London, 1998).]

Hipólito, jornalista nato, sabe como chamar a atenção: chegando-se aos donos do poder, aproximando-se da imprensa ou servindo-se dos dois para forçar Portugal a acabar com a Inquisição. Alcança a primeira parte do plano: a Narrativa em versão inglesa teve grande repercussão na imprensa local desnudando o obscurantismo português que, a despeito das aberturas de Pombal, continuava, discrepando do resto da Europa Ocidental. [No Quarterly Review (dez. 1811), vol. 6, p. 313; no Gentleman?s Magazine, vol. 82, p. 143; e na Antijacobin Review (jul. 1811), vol. 34, pp. 449-58, apareceram comentários muito elogiosos à obra e ao seu autor. Ver Rubens Borba de Morais, Bibliographia brasiliana, vol. 2, p. 362.]

O testemunho do que padeceu nos dois cárceres (Polícia e Inquisição) ocupa metade do primeiro volume. Segue-se a “Advertência” ao leitor explicando que o novíssimo Regimento de 1774 precisa ser acompanhado do anterior, razão pela qual deixa-o no segundo volume para permitir uma leitura conjunta. Ambos representam o mais completo e profundo retrato da Inquisição já feito por um estrangeirado. [ Narrativa da perseguição, op. cit. Ver Bibliografia.]

Antecedendo o prefácio, a breve proclamação oferece o sentido ideológico da sua cruzada, tirando-a do âmbito da vendeta pessoal e acerto de contas:

Desde que a minha tenra idade me permitiu o pensar e refletir, sempre considerei a existência da Inquisição na Europa como conseqüência da ignorância e da superstição e, portanto, sempre a olhei com horror; mas nunca me passou pela imaginação que eu mesmo viria a ser uma das vítimas de sua perseguição. É apenas crível que no século XIX exista ainda um tribunal que tenha o poder, sem causa aparente, e sem que haja violação das leis do país, de prender indivíduos e processá-los por culpas que se devem considerar imaginárias, visto que não existem no código criminal da nação.

A narração simples e sem adornos deste fato e o chamar a atenção desta nação para tais circunstâncias, considero ser um imperioso dever meu; visto que é à prudência do soberano, que tão gloriosamente tem reinado por mais de meio século, e aos conselhos dos seus iluminados ministros que a Europa é devedora de um ajuste (que espero em Deus seja fielmente observado) para exterminar totalmente um tribunal cuja existência é tão insultante, com[o] humilhante ao gênero humano.

Se eu for tão feliz que possa conseguir o que me propus, a lembrança dos horrores que sofri será para mim o triunfo da inocência sobre a opressão; e darei gostosos parabéns a esta nação [a Inglaterra] que, cordialmente, adotei por minha […] estabelecendo como eterno monumento de seu alarde e da afeição a seu respeitável monarca que ele ABOLIU A ESCRAVIDÃO E DESTRUIU A INQUISIÇÃO [no original em maiúsculas]. [Hipólito referia-se a Jorge III (1738-1820) que, à altura, completara meio século no trono. O fim da escravidão na Inglaterra deu-se exatamente no ano da publicação da Narrativa (1811), quando o Parlamento aprovou a lei criminalizando o tráfico de escravos. No ano anterior, o príncipe de Gales tornara-se em regente (em virtude dos distúrbios psíquicos do pai), mas Hipólito referia-se expressamente ao rei e o preito estendia-se ao irmão do monarca, o duque de Sussex, amigo e protetor.]

Com apenas 26 linhas Hipólito deixa de lado qualquer impressão de revanche pessoal, colocando sua cruzada em patamar verdadeiramente ideológico. Escravidão e intolerância aparecem juntas pela primeira vez como faces da mesma opressão, adversário único. Ribeiro Sanches também se opôs à escravidão e à Inquisição em documentos separados, de circulação restrita e sem a candência tipicamente jornalística. [Indício da abrangência da sua luta contra todas as formas de opressão é a correspondência de Roma sobre o afrouxamento dos rigores contra os judeus (CB, 13:728). Também o protesto contra as medidas restritivas aos judeus de Lubeck (CB, 22). Na Narrativa (pp. 137-38), refere a perseguição aos judeus, obrigados à conversão e, na condição de cristãos-novos, perseguidos implacavelmente até o ministério de Pombal.]

Estrangeirado diferente, Hipólito não se contenta em viver à sombra e a distância, rejeitando a cômoda posição de conselheiro ou promotor de avanços. Acende as luzes e encarrega-se pessoalmente de mantê-las acesas. Os demais estrangeirados sempre atuaram na sombra, exceto Pombal. Hipólito funciona abertamente. Observador, também comunicador, nesta dupla condição é capaz de irradiar suas idéias num âmbito muito mais amplo do que seus predecessores, novamente exceto Pombal. Único estrangeirado que mesmo na estranja junta pensamento e ação política. Coroa, Inquisição e adversários não conseguem vencê-lo porque está a salvo, fora do alcance das ameaças ou tentações.

À Inquisição e escravidão acrescenta terceira pugna: erradicar a censura. O simples aparecimento do Correio Braziliense faz ruir um férreo sistema de controles de informação e expressão que, sob diferentes denominações, sobreviveu durante 272 anos em Portugal e no Brasil.

Sabe Hipólito que a luta pela liberdade deve ser ampla, contínua e persistente e, ao longo das 175 edições da sua revista, mantém apaixonada pregação a favor da livre manifestação do pensamento, decisiva para dar dignidade ao ser humano. A inserção no Correio, dois anos depois do lançamento, do célebre panfleto de John Milton, a Areopagítica (primeira e mais conhecida defesa da liberdade de expressão), revela um batalhador pertinaz e eficaz. [Apresentação em CB, 4:xi. Íntegra nas edições de maio (CB, 4:479-503) e junho de 1810 (CB, 4:616-39).]

Hipólito intuiu (como Hannah Arendt, 150 anos depois), que todas as opressões se conjugam. A intolerância racial foi o primeiro degrau do totalitarismo. Dispensou-se de combater a primeira porque já estava extinta mas jogou-se valentemente no combate ao outro. Escravidão, Inquisição e censura passaram a ser uma coisa só, razão de ser e lutar. [Hannah Arendt, As origens do totalitarismo (São Paulo: Companhia das Letras, 1989).]

Hipólito enxergou a tirania de forma holística, integral. E enfrentou-a sob todos os disfarces. Estrangeirado por vontade alheia, patriota por convicção. Desterrado que transformou sua causa em pátria e faz dos sonhos a terra natal.

(*) Jornalista e autor, é um dos fundadores e editor-responsável do projeto “Observatório da Imprensa” (Brasil)