Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Mais competência do que favorecimento

Em 1986 eu tinha saído da Globo, após um convite irrecusável da Record. Na nova casa tudo estava para ser feito e, ao participar das reuniões em que estava sendo formatado o jornalismo, sugeri o nome do jornalista Leão Serva para ser o âncora. Nessa época ele estava começando a carreira na Folha, carreira vitoriosa. Leão, com a sua notória competência, atingiu os mais altos postos nas redações por onde passou. Embora a casa tivesse mostrado interesse, ele declinou do convite, preferindo continuar onde estava. Foi uma pena, teria feito sucesso na televisão.

Nessa época, estava havendo grande polêmica na Folha em torno do famoso acordo Time-Life, que aportou capital na Globo ainda nos primórdios desta, nos anos 1960. De uma coisa sai outra, e ao fim de alguns artigos surgiu outra polêmica, esta discutindo o favorecimento que o governo sempre deu à Globo. De modo geral havia consenso em ligar o sucesso da emissora ao favorecimento governamental. Em conversa com Leão Serva, toquei no assunto e discordei das teses vigentes: não era possível estabelecer uma relação de causa e efeito, o governo sempre favoreceu todas as emissoras, e apenas a Globo cresceu. Ele propôs que eu escrevesse matéria para a Ilustrada colocando a minha posição, na época contra a maré. Acabei declinando por respeito e lealdade aos meus novos patrões, que seriam indiretamente envolvidos, de forma depreciativa. Ao contrário da Globo, a Record estava rolando escada abaixo.

Agora, passados 17 anos, morreu o Dr. Roberto Marinho e eu não tenho mais compromissos empregatícios com nenhuma emissora de televisão. Posso então escrever, ainda que tardiamente, o que penso da ascensão da Globo. Quando se fala de empresários e empresas no Brasil, há que ser sempre lembrado o Dr. Roberto Marinho. Ele mostrou nas ações estar à frente de seu tempo. Qual a razão de a Globo ter sido alçada às alturas, enquanto as outras emissoras catam migalhas? O governo é e sempre foi pródigo na distribuição de verbas publicitárias para a TV, é só olhar em volta: onde houver um jornal no ar haverá anúncios da Caixa Econômica ou do Banco do Brasil.

Precedendo a Globo houve uma emissora em São Paulo que mostrou o caminho das pedras, a Excelsior, da família Simonsen, que também era dona da saudosa Panair do Brasil. Os Simonsen apostaram no preto e deu vermelho, ou melhor, deu azul (se eu ligar a redentora ao vermelho posso ser mal-interpretado). Apoiavam Jango, e este foi deposto pelo golpe. Caíram juntos. A fórmula novela-jornal-novela é daquele tempo; depois vinham os grandes shows, com os melhores artistas da época. Só dava Excelsior.

No Rio de Janeiro, uma dupla de jovens fazia milagres “empurrando” a TV Rio. Eram eles Walter Clark e José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, hoje verbetes obrigatórios de qualquer enciclopédia que enfoque as comunicações no Brasil do século 20. Sem muitos recursos, na base da ousadia e da criatividade, a dupla fazia uma televisão muito apreciada pelos cariocas.

Reinado absoluto

As TVs eram locais, não havia as redes ainda. A dona da bola era a Tupi, do grupo (decadente) Diários Associados, de Assis Chateaubriand. Eles tinham recursos e também faziam televisão com competência, embora conservadora e burocrática. Quando ganhou a concessão da Globo, o Dr. Roberto chamou Walter Clark, que estava na TV Rio, para comandar a nova emissora. Deu carta branca a um jovem de 29 anos para tocar o negócio. Depois veio Boni, que deu forma ao projeto, introduzindo o padrão Globo de qualidade, marca registrada da emissora.

Aí está o toque do empresário de visão: delegou poder a quem o exerceria por mérito, pelo conhecimento e pela competência. Isso na época era inédito em empresas brasileiras, nas quais sempre havia um “Júnior” no comando, “por la gracia de Dios”, a exemplo de Franco na Espanha. Ainda hoje é assim, embora muitos empresários estejam fazendo o que o Dr Roberto fez há 38 anos: profissionalizando a casa, buscando competência.

O certo é que, sob o comando da dupla, a Globo cresceu e foi sedimentando um conceito empresarial, uma cultura de produção que diferia do que era feito até então. Antes de ir ao ar, tudo era planejado às minúcias, estudado, testado, não havia espaço para improvisações. Lembro de passar semanas estudando a cor de uma tela de fundo para ser usada como suporte do gerador de caracteres. No fim de tanto planejamento o resultado acabava sempre satisfatório, ou mais que isso: não havia espaço para o ruim ou o péssimo, como na concorrência.

O público percebia o empenho e apoiava com audiência. As verbas publicitárias foram conseqüência, e não causa, como se apregoava. Com o sucesso financeiro foram atraídos os melhores profissionais que havia e a partir do fim dos anos 1960 a Globo firmou-se como uma das melhores produtoras televisivas do mundo. Isso custou um trabalho constante de vigilância para impedir a acomodação e o conseqüente declínio. Essa tarefa coube ao sempre presente Boni ? incansável, atento, não havia detalhe que passasse despercebido. Qualquer falha e “presto” lá vinha o memorando assinado por ele, pessoalmente. Os memorandos eram temidos, mas nunca sem fundamento ou injustos.

A cultura televisiva desenvolvida pela Globo acabou se espalhando por toda a televisão brasileira. Os profissionais lá formados levaram consigo os conceitos de organização e planejamento ao mudar de emprego. Os tempos hoje são outros, há uma crise de conteúdo na televisão, mas acredito que isso vá mudar, inclusive a televisão vai mudar. A interatividade é o futuro, a TV digital será outro veículo, mas os cuidados com a qualidade do produto final deverão sempre estar em pauta o público está cada dia mais exigente.

Durante muitos anos a Globo reinou absoluta, e ouso dizer que a razão disso foi mais mérito e competência do que favorecimento. O sucesso aconteceu pela capacidade empresarial de Roberto Marinho, empresário de comunicações antenado no futuro. A Globo foi obra de um homem de visão que soube encontrar e comandar outros homens de visão, tirando deles o máximo. Aprendi muito lá. Seria bom se tivéssemos mais empresários assim.

(*) Jornalista