Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Manifesto em defesa do sistema de P&D no Brasil

Mônica Macedo (*)

 

A

própria Roché não faria melhor.

Para promover as vendas do novo medicamento contra a obesidade, o Xenical (nome comercial do orlistat), a matéria publicada por Veja (21/outubro/98) supera qualquer publicidade. Sob o título A pílula que faz a dieta, acompanhado de dois imensos hambúrgueres recheados com queijo, pastrami e picles, o texto enaltece as qualidades do remédio, prometendo o milagre que todos esperam: emagrecimento sem restrições alimentares.

Donos de restaurantes, pizzarias e cadeias de fast food devem estar festejando como nunca o anúncio do “Viagra da obesidade”. Afinal, segundo a matéria de Veja, o Xenical vai redimir, finalmente, “os eternos escravos das dietas (…), que sempre sonharam com o dia em que poderiam deglutir, sem culpa, apetitosas batatas fritas, suculentos cheesebúrgueres e deliciosas pizzas cheias de azeite”. Revoltados devem estar todos os nutricionistas que insistentemente tentam explicar a seus pacientes a importância da reeducação alimentar, já que Veja simplesmente transforma em blablablá toda essa história de alimentação balanceada, que considera “chatíssima”; afinal, diz a revista, “brócolis cozidos, alface e frutas todo dia não há quem agüente”.

Embora reconheça que o uso do medicamento não elimina a necessidade de dietas (isso seria ir contra praticamente toda a literatura médica, que salienta o caráter “auxiliar”, e não “substituto”, dos medicamentos no tratamento da obesidade), o texto claramente dá destaque aos avanços promovidos pelo Xenical, descrevendo-o como uma droga moderna e segura que mudará definitivamente a vida das pessoas, minimizando as ressalvas feitas por médicos e pacientes, devido aos efeitos colaterais do remédio.

De fato, o Xenical representa uma melhoria no tratamento da obesidade. Ele faz parte de uma nova geração de medicamentos, que está diminuindo significativamente as contra-indicações e os prejuízos para outras funções do organismo. No entanto, é preciso ficar claro que essas novas drogas são produtos muito recentes e ainda não se pode avaliar com segurança seus efeitos a longo prazo e quando utilizados por um grande número de indivíduos. Nesse sentido, qualquer especialista concordaria em que as velhas e árduas dietas continuam sendo o meio mais seguro e saudável de perder peso.

Os desavisados que se cuidem, senão vão comprar gato por lebre. Quem acha que vai emagrecer comendo misto quente no café da manhã, hambúrguer e batatas fritas no almoço e pizza no jantar, pode esquecer. A revista British Medical Journal (BMJ), um dos periódicos científicos mais conceituados da área médica, chama atenção, em seu editorial de 26 de setembro, para o fato de que ainda é muito cedo para conhecer os efeitos do orlistat no controle da obesidade.

Nos testes realizados com pacientes tratados com o medicamento, mais da metade da perda de peso foi devida à dieta a que eram submetidos paralelamente, e não à ação do medicamento. Além disso, parte do peso perdido pode ser atribuído à redução deliberada na ingestão de gorduras, devido aos efeitos colaterais do remédio (fezes oleosas e diarréia), que se acirram quanto mais gordurosa for a refeição.

John Garrow, professor de nutrição, que assina o editorial, ressalta: “Os jornalistas estão sugerindo que essa nova droga vai permitir às pessoas obesas comer o que quiserem e, ainda assim, perder peso. Isso é totalmente enganoso. Qualquer um que esteja sendo tratado com orlistat e tenha uma dieta altamente gordurosa será seriamente incentivado a reduzir a ingestão de gordura. Será irônico se essa nova droga tiver exatamente uma ação que não aquela para a qual foi anunciada – a de induzir os obesos a manter uma dieta de pouca gordura [devido aos indesejáveis efeitos colaterais]”.

Além disso, em outro artigo do BMJ, Alex Brooks lembra que a licença recentemente obtida pela Roché para comercializar o orlistat (ou Xenical) na Europa impõe uma série de restrições. Para tomar o remédio, o paciente é obrigado a participar de um programa de emagrecimento, com o acompanhamento de um médico, que inclui testes sobre suas motivações para emagrecer, planejamento das refeições e instrução de exercícios. Até que comece a tomar droga, o paciente precisa emagrecer antes 2,5 kg para mostrar que está realmente motivado. E ainda, a licença indica que o orlistat só pode ser prescrito por um período máximo de dois anos (embora a Roché espere vencer a batalha para aumentar esse prazo).

Todas essas informações simplesmente indicam que a população deve tomar muito cuidado com a divulgação de “milagres” como o Xenical. O medicamento representa um avanço no tratamento de uma doença que afeta um número cada vez maior de pessoas em todo o mundo, inclusive em países subdesenvolvidos como o Brasil. No entanto, uma breve consulta aos artigos científicos que discutem as pesquisas com o remédio mostra que sua aplicação deve ser feita em casos específicos (somente para os considerados obesos – IMC maior que 30, ou para os que apresentam fatores de risco, como diabetes e hipertensão), com rigoroso acompanhamento médico, e só é eficaz quando paralela a uma dieta alimentar, caso contrário produz o mesmo “efeito sanfona” observável com todos os outros medicamentos. Ou seja, para vencer a obesidade não há milagres. É preciso comer menos e melhor e fazer exercícios. Todo o resto é auxiliar.

A insistência da imprensa em contar contos da carochinha não só depõe contra sua credibilidade quanto tem conseqüências diretas para a vida das pessoas. Nesse caso, será realmente positivo quando pudermos cobrar, de fato, do jornalismo a responsabilidade pelo que divulga.

(*) Jornalista e pesquisadora do Labjor

 


Isak Bejzman (*)

 

O

jornal Zero Hora de 18 de setembro de 1998 publicou na página 44 uma notícia pequena, aparentemente sem importância mas que tem seriamente a ver com Saúde Pública: a epidemiologia do medicamento, ou “avaliação epidemiológica das drogas”, informando o que se segue: “Produtos naturais são liberados – “A Secretaria de Vigilância Sanitária do Ministério da Saúde liberou, sem restrições, a comercialização de 40 produtos considerados naturais, que ficam isentos de comprovação de padrão de identidade e qualidade. Segundo o governo, não existem [sobre o assunto] estudos conclusivos de especialistas e representantes dos setores produtivos.”

Supõe-se que produto natural, também chamado de suplemento dietético, seja qual for sua forma de apresentação, é aquele que não traz adicionado à sua composição nenhum produto químico. Até aí nada demais. Todavia, a Secretaria de Vigilância Sanitária liberou-os sem restrições, isto é, os produtos não precisam passar pelo crivo da secretaria. Só porque são naturais, e só por isso, a secretaria resolveu que os fabricantes do “produto comercializado” não precisam provar se o que está sendo vendido é um produto natural mesmo, nem a sua qualidade.

A parte final da noticia: “Segundo o governo (leia-se Secretaria de Vigilância Sanitária do Ministério da Saúde), não existem estudos conclusivos de especialistas e representantes dos setores produtivos”. Para ser entendida, a frase precisa ser traduzida. Pois se não existem estudos conclusivos, como explicar a liberação da venda? E o que significa a não existência de estudos conclusivos dos setores produtivos? Afinal, esses setores produtivos estão pondo no mercado o quê?

Existe no curso de Medicina uma disciplina chamada Terapêutica Clínica. Ela ensina o que, quando, como e em que quantidade o médico deve receitar a um determinado doente que padece de determinada doença. Acontece que um medicamento tem indicações e contra-indicações. Ele tem efeitos de cura mas, ao mesmo tempo que cura, pode causar outra doença. Por exemplo, estou com dor de cabeça, tomo um comprimido para aliviá-la e posso arrumar uma terrível dor de estômago. Uma outra disciplina, a Farmacodinâmica, ensina quais os caminhos do medicamento no organismo do doente e o que acontece com a substância desde o momento que ela entra no corpo do paciente até o momento em que sai, por onde sai, quanto tempo leva para sair, como se comporta no organismo e muito mais.

Quando receita, um médico precisa fazer passar pela cabeça, em frações de segundos, toda a medicina que vai ser aplicada àquele determinado paciente. Suponhamos um doente com tuberculose. O médico receita o remédio X para o tuberculoso Y, mas quando ele vai receitar um remédio para o tuberculoso Z talvez tenha que receitar outro, e não mais o X; e, se receitar o X, talvez já não seja na mesma dosagem que usou para o paciente Y. Para receitar um medicamento, o médico precisa estudar tudo sobre a droga que vai usar. Se o produto é fabricado por um laboratório, o médico precisa ter confiança nesse laboratório e saber que outras substâncias foram adicionadas à substância ativa para fazer o comprimido, a emulsão, o xarope, a injeção, a farmacodinâmica de cada um desses elementos, enfim, a composição total do produto fabricado.

E também é de suma importância que ele tenha na retaguarda uma Secretaria de Vigilância Sanitária que, além de cumprir a função fiscal, saneadora, de polícia sanitária, assegure que a oferta de medicamentos seja composta de produtos seguros e eficazes, provendo os profissionais de saúde e a população de informações úteis e científicas, que seja também capaz de construir um conhecimento, e não simplesmente dizer: “Não existem estudos conclusivos de especialistas e representantes dos setores produtivos”. É pressuposto básico que uma Secretaria de Vigilância Sanitária, para conceder o registro de um produto, deve usar conceitos rigorosos de avaliação.

É sabido que a área de medicamentos apresenta desvios de todo tipo, como abundância de produtos desnecessários, potencial tóxico inaceitável, prescrição irracional, automedicação (quimização). Sendo o medicamento um produto industrial, está em seu contexto um fator lucrativo que de alguma maneira deve exercer influencia sobre as a áreas de ensino médico, prescrição e consumo.

É possível que as normas tenham sido modificadas, mas a regulamentação das ações da Secretaria de Vigilância Sanitária se referia a normas de controle a que ficam sujeitas as empresas, os produtos farmacêuticos e demais produtos industrializados que afetam a saúde (alimentos, saneantes e cosméticos); o controle sanitário do comércio, como devem ser as bulas dos medicamentos, os rótulos, embalagens etc. A Secretaria de Vigilância Sanitária deve estar capacitada para ser responsável pelo registro e o controle de fabricação, importação, exportação, distribuição, rotulagem, informação e produção desses produtos. E por que não os chamados produtos naturais?

Em número recente, o New England Journal of Medicine relatou seis informações – três artigos e três cartas – de ocorrências com 12 pacientes que, por usarem suplementos dietéticos ou alimentos naturais, apresentaram sintomas de intoxicação por chumbo, impotência sexual, náuseas, vômitos, arritmia cardíaca, pelo fato de esses alimentos possuírem em sua composição ervas poderosas, contaminantes tóxicos, drogas potentes e hormônios em altas doses. Entre os 12 casos, um chamou especialmente a atenção. Numa cidadezinha americana, a polícia parou um motorista que parecia estar embriagado. O motorista estava letárgico, apresentava vômitos, suores profusos. Foi levado a uma sala de emergência de um hospital. Levantada a história do motorista, o suplemento dietético foi enviado para exame, e o laboratório constatou que na composição do produto havia um suplemento químico denominado gama-butirolactone, substância também utilizada como removedor de tinta.

Nos Estados Unidos, produtos naturais constituem um mercado de US$ 12 bilhões. O mercado brasileiro está sendo inundado desses produtos, nacionais e estrangeiros. É um mercado em expansão geométrica, com perspectivas de chegar a alguns bilhões dólares.

Não sou um obsessivo. Se alguém resolve se automedicar, não tenho nada contra. É sabido que casos de câncer levam pessoas ao desespero. Passam a usar esses produtos e muitas vezes complicam o caso e diminuem o tempo de vida, às vezes com grande sofrimento. Há casos de câncer que hoje em dia são curáveis ou que com tratamentos adequados alcançam sobrevida longa. Seduzida pelo marketing, muita gente acaba se autoprejudicando.

Eis aí uma notícia aparentemente simples, pequena, jogada para uma página interna que trata de editais, que mais cedo ou mais tarde vai virar importante.

Até hoje não ouvi nem li nenhum comentário sobre o assunto. Do novo chefe do serviço de Vigilância Sanitária do Ministério da Saúde, nenhuma palavra. E os jornais brasileiros com seus setores de jornalismo científico, onde estão? O próprio jornal Zero Hora, que publica semanalmente um bom caderno sobre saúde, parece que deixou passar sua própria notícia em brancas nuvens.

(*} Médico psiquiatra e jornalista