Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Marcelo Marthe

COBERTURA DE GUERRA

“A outra guerra”, copyright Veja, 1/04/03

“Outra guerra se desenrola via satélite e atinge o mundo todo: a das transmissões de TV. Ao contrário do que aconteceu na primeira Guerra do Golfo, em 1991, o surgimento de emissoras árabes como Al Jazira, Abu Dabi e Al Arabyia tirou das redes ocidentais o monopólio das imagens e colocou em evidência o problema do viés político na cobertura do conflito. A guerra que se vê na americana CNN é diferente daquela que se vê na Al Jazira. A primeira mostra o avanço dos comboios militares americanos em direção a Bagdá, por meio de correspondentes ?incrustados? nos batalhões, e evita veicular imagens que, segundo o Departamento de Defesa dos Estados Unidos, possam prejudicar a luta pela ?libertação do Iraque?. A segunda, baseada no Catar, diz que o Iraque sofre uma ?invasão?, exibe cenas chocantes de civis feridos e de soldados ingleses e americanos mortos e reproduz entrevistas com ocidentais capturados por iraquianos. Na quinta-feira passada, curiosamente, dirigentes das duas redes vieram a público negar que façam campanha para qualquer dos lados em conflito. É sem dúvida revelador que tenham sentido a necessidade de tomar essa atitude.

A atuação dos correspondentes incrustados em batalhões é por certo a maior novidade desta guerra. Eles acompanham a movimentação nos porta-aviões e circulam em meio aos veículos blindados, portando, tal e qual os soldados, capacetes, coletes à prova de balas e máscaras de gás para se proteger de possíveis ataques com armas químicas e biológicas. Munidos de equipamento avançado de telecomunicações (veja quadro), transmitem ao vivo suas reportagens. A iniciativa de permitir sua presença foi resultado da crença do governo americano de que o conflito seria rápido e relativamente limpo. Os repórteres incrustados teriam, assim, o papel de registrar uma vitória avassaladora, celebrada inclusive pela população iraquiana. Isso explica o fato de até mesmo a Al Jazira ter conseguido incluir quatro jornalistas nas tropas americanas. Pouco mais de uma semana de guerra, no entanto, bastou para demonstrar que a presença desses correspondentes levanta uma série de dilemas.

Em maior ou menor grau, os correspondentes das redes americanas têm dado vazão a um irrefreável espírito patriótico durante as operações de guerra que acompanham. O ex-militar americano Oliver North, aquele do escândalo Irã-contras, declarou ter aceitado o convite da ultraconservadora Fox News para cobrir a guerra, apenas pelo prazer inenarrável de estar novamente junto com os marines. Que Oliver North diga isso não é surpresa. O espantoso é incluí-lo num trabalho jornalístico. Mesmo repórteres de carteirinha se têm deixado levar pela excitação. Na semana passada, Walter Rodgers, que acompanha a Sétima Cavalaria a serviço da CNN, protagonizou o seguinte diálogo ao vivo com a colega Christiane Amanpour: ?Se encontrarmos iraquianos no caminho, vamos matá-los. Vamos encontrar o inimigo e agarrá-lo pelo nariz?. É uma vergonha esse tipo de comportamento.

A qualidade da informação transmitida por esses jornalistas também é prejudicada por outro motivo: os militares americanos exercem controle sobre o que pode ou não ser divulgado. O secretário de Defesa americano, Donald Rumsfeld, já reconheceu que os incrustados só podem mostrar ?fatias? da ação no campo de batalha. Mas o que é para ser um instrumento de propaganda do governo americano pode virar-se contra ele, caso a guerra se prolongue e se torne ainda mais cruenta. Ficará difícil esconder as ?fatias? menos apetitosas, a menos que as emissoras de jornalismo queiram queimar seu principal capital – a credibilidade de que ainda gozam, apesar de toda a patriotada. Foram imagens chocantes do Vietnã que fizeram a opinião pública se voltar contra a participação dos Estados Unidos naquele conflito. O mesmo pode ocorrer agora, se tudo der errado.

Deixando de lado essas distorções, há uma conquista nessa cobertura televisiva: nunca a expressão ?no calor da hora? fez tanto sentido. Graças aos jornalistas incrustados nos batalhões, imagens do avanço das tropas aliadas e de seus embates com soldados iraquianos colocam o espectador dentro do jogo da guerra. O efeito mais marcante das transmissões talvez seja o de mostrar quanta incerteza e desorientação estão presentes numa batalha. Foi emblemático o caso do jornalista da CNN que anunciou, tenso, a aproximação de uma coluna de carros militares iraquianos – somente para corrigir-se em seguida, dizendo que se tratava apenas de uma caravana de camelos.

As emissoras árabes têm seus próprios trunfos. Entre eles, o acesso quase irrestrito ao que acontece em Bagdá e em outras localidades ainda controladas pelo regime de Saddam Hussein. A emissora Abu Dabi TV, dos Emirados Árabes, tornou-se mundialmente famosa nos dez últimos dias graças a imagens exclusivas dos bombardeios à capital iraquiana. Juntamente com a Al Jazira, a Abu Dabi é a única emissora estrangeira que mantém estúdio próprio em Bagdá neste momento. As redes árabes têm mostrado, ainda, uma face mais suja do conflito, captando cenas fortes de vítimas dos bombardeios e reveses das tropas aliadas. No domingo passado, elas reproduziram imagens colhidas pela TV estatal iraquiana com prisioneiros de guerra americanos – entre os quais uma mulher negra que tinha ferimentos nos pés. As emissoras também mostraram os corpos de soldados britânicos mortos numa estrada – o que levou o primeiro-ministro inglês, Tony Blair, a protestar com veemência. Deve-se dizer que, assim como a Fox News é mais rábida em seu patriotismo que a CNN, a Al Jazira tem se mostrado mais pronta a insuflar o antiamericanismo entre seus 45 milhões de espectadores muçulmanos do que a Abu Dabi. ?Ao contrário da concorrência, não fazemos sensacionalismo?, disse a VEJA Nart Bouran, diretor da Abu Dabi.

Os Estados Unidos procuram neutralizar o efeito das imagens das emissoras árabes. Evocaram as normas da Convenção de Genebra que proíbem submeter prisioneiros de guerra a situações humilhantes, depois que a Al Jazira divulgou as entrevistas com soldados americanos capturados, e pediram que as emissoras do país não as veiculassem (a CNN, que as havia mostrado rapidamente, logo as tirou do ar). Nos últimos dias, o repúdio ao trabalho da rede do Catar cresceu mais ainda entre os americanos. Seu recém-inaugurado site de notícias em inglês foi atacado por hackers que puseram no lugar uma bandeira americana e a inscrição ?Deixe a liberdade falar mais alto!?. Além disso, dois correspondentes do canal tiveram cassadas suas credenciais para trabalhar na Bolsa de Valores de Nova York. A administração da bolsa afirma que o gesto não tem ligação com a guerra – mas o fato é que somente os árabes foram atingidos pela medida. O governo de George W. Bush, no entanto, reconhece a importância da rede. Na quarta-feira, o secretário de Estado Colin Powell concedeu uma entrevista exclusiva à emissora – tentando vender a versão americana da guerra para a vasta audiência árabe do canal.

Também no quesito tecnológico há uma enorme disparidade entre a cobertura jornalística das redes de televisão árabes e americanas na guerra do Iraque. Enquanto apenas um dos quatro correspondentes da Al Jazira que acompanham as tropas aliadas possui telefone de satélite – ferramenta crucial para transmitir as imagens do front -, os doze jornalistas ?incrustados? da CNN têm à sua disposição uma parafernália e tanto. Todos dispõem ao menos de dois videofones, aquela maletinha de 8 quilos que, desde a guerra do Afeganistão, se tornou uma espécie de kit básico do correspondente de guerra, com câmera que grava no escuro, microfone, telefone de satélite e monitor. Algumas equipes, como a do repórter Walter Rodgers, são ainda mais bem equipadas. Viajam num jipe blindado Humvee de uso militar, que foi transformado num estúdio sobre rodas, com antena de transmissão e ilha de edição, na qual as matérias podem ser montadas antes de ser enviadas para a matriz da CNN, nos Estados Unidos. Os repórteres ?incrustados? da rede americana vinham se preparando desde janeiro para enfrentar o desafio de cobrir a guerra na linha de frente. Eles receberam treinamento do Exército, que incluiu desde condicionamento físico até táticas para se proteger de um ataque com armas químicas.”

“1 repórter: 2 mil euros por dia”, copyright O Estado de S. Paulo, 31/03/03

“Quando George W. Bush disse que os Estados Unidos estavam mais próximos do início que do fim da guerra, jornais, revistas e redes de TV européias receberam uma ducha fria, pois haviam apostado numa guerra relâmpago. Agora, com a perspectiva de um conflito mais longo, todos estão revendo para cima seus orçamentos, procurando oferecer a melhor cobertura, mas sem jogar dinheiro pela janela.

Isso apesar de os níveis de audiência – cujo pico foi alcançado na primeira semana, mais 6,9% – terem voltado quase ao normal. As imagens da guerra começam a se banalizar, na expectativa da grande batalha de Bagdá, quando o pico será novamente alto. O mesmo está ocorrendo com a imprensa escrita européia. Depois de ter aumentado suas vendas em 50% nos dois primeiros dias da guerra, hoje as vendas dos jornais encontraram novamente seus níveis clássicos.

Franz Oliver Gisbert, chefe de redação do semanário Le Point, lembra que uma guerra esperada não tem o mesmo impacto se comparada com um acontecimento inesperado. Por isso, seu número especial sobre a guerra contra o Iraque vendeu 110 mil exemplares em banca, 20 mil mais que o normal, mas bem abaixo dos 160 mil vendidos quando do atentado de 11 de setembro. A partir deste fim de semana, as emissoras de TV estão voltando a sua programação normal, dedicando alguns noticiosos especiais à guerra, mas reduzindo o ritmo anterior na expectativa de grandes acontecimentos como o início da batalha de Bagdá, onde se espera que a operação militar vá entrar na sua fase mais espetacular e sangrenta.

Adaptação – As emissoras européias estão adaptando sua cobertura à configuração de um conflito bem mais duradouro. A principal emissora privada francesa, a TF1, e sua filial LCI (a ?CNN francesa?), enviaram para o Golfo mais de cem jornalistas, repórteres, técnicos e cinegrafistas, um orçamento de cobertura que já estourou em 3 milhões de euros. Seu diretor, Robert Nahmias, tenta aumentar o orçamento com a direção.

Mesmo antes de a guerra anunciada ser deflagrada, as redações gastaram fortunas criando condições para seus repórteres poderem acompanhar a campanha militar.

Os preços dos equipamentos são salgados. Um colete à prova de balas custa 2.500 euros); um kit contra armas químicas, 450 euros; aluguel semanal de um celular via satélite, 250 euros. O prêmio do seguro subiu para 500 euros por semana desde o início do conflito. Segundo o diretor de TF1, cada jornalista enviado à frente do Kuwait ou de Bagdá custa 2 mil euros por dia, sem contar o salário e os custos de transmissão. Na imprensa escrita, os preços caem para 800 a 1.000 euros diários.

Não se pode esquecer que os preços de guias-intérpretes árabes e motoristas de táxi aumentam a cada dia de guerra e à medida em que os americanos e ingleses se aproximam de Bagdá. Na semana passada, uma viagem entre a Cidade do Kuwait e Bagdá estava custando 1.000 euros e a diária de um intérprete subiu para US$ 200.

O maior problema para as emissoras é que nesse tipo de cobertura, ao contrário de eventos como a Copa do Mundo ou as Olimpíadas, a maior parte dos anunciantes não quer associar seus produtos ao noticiário da guerra e suspende temporariamente suas campanhas. Parte do que gastam na guerra as empresas jornalísticas economizam em outras áreas e editorias. Por exemplo, a cobertura dos eventos esportivos, que sempre tem grande presença de repórteres.

A partida de futebol entre Israel e França, normalmente feita com três jornalistas, terá apenas um enviado especial. Desta vez, ao contrário da Guerra do Golfo, a grande preocupação das diretorias das emissoras é garantir o conteúdo e a independência da informação, evitando a manipulação ocorrida no passado, quando toda a imprensa mundial foi alimentada pelos serviços de informação das Forças Armadas americanas, cuja credibilidade foi posta em dúvida por muitos.”

“Repórter da CNN expulso relata medo”, copyright Folha de S. Paulo, 31/03/03

“Que tal pegar um carro e viajar por cerca de 12 horas pelas estradas do Iraque? Agora imagine fazer essa mesma viagem sendo um cidadão inglês, com cabelos bem loiros, carregando o crachá de uma TV dos Estados Unidos.

Nic Robertson, correspondente da CNN, encarou essa assustadora jornada na semana passada. Foi expulso do país pelo governo de Saddam Hussein, que considerou a cobertura da rede favorável às forças anglo-americanas.

Ele e os três colegas que formavam sua equipe deixaram Bagdá às pressas, com a determinação de oficiais iraquianos de não mostrarem na televisão nada do que encontrassem pelo caminho.

Veterano em conflitos internacionais (esteve na Guerra do Golfo, na Bósnia, em Kosovo e no Afeganistão, entre outros), ele disse que seu maior medo foi a ameaça de expulsão de Bagdá antes do início dos bombardeios.

Leia abaixo a entrevista que ele concedeu à Folha, por e-mail, em que falou de seu trabalho e do fato de as emissoras norte-americanas estarem sendo acusadas de conservadorismo e parcialidade.

Folha – Após a expulsão, como foi a viagem rumo à Jordânia? O que viram e por que não mostraram nada ao vivo no caminho?

Nic Robertson – Nós não tínhamos como mostrar nada ao vivo, porque oficiais iraquianos controlavam o uso de telefone por satélite. Também não possuíamos os equipamentos modernos que os repórteres que acompanham as tropas usam. Fiquei aflito no início da retirada de Bagdá.

Pela rodovia principal, encontramos pouca evidência de ação militar, até que vimos um caminhão destruído. À medida que nos aproximávamos da fronteira com a Jordânia, fomos nos deparando com pistas de vôo, agora controladas pelas forças de coalizão, nas quais avistamos veículos militares iraquianos incendiados.

Folha – O Pentágono havia orientado os jornalistas a deixar a capital iraquiana antes das primeiras explosões. A decisão de permanecer foi sua ou solicitação da CNN?

Robertson – Nós decidimos ficar, porque achávamos que estaríamos seguros. E porque acho muito importante contar essa história. Contar a história das pessoas do Iraque.

Folha – Como era a sua rotina quando estava em Bagdá?

Nic Robertson – Nós estávamos tentando encontrar histórias humanas interessantes. Com as informações que recebíamos do Ministério da Informação, cobríamos a vida das pessoas em Bagdá. Às 16h (no horário local), começávamos a entrar no ar ao vivo e só parávamos de trabalhar por volta da meia-noite. Também tínhamos de cobrir fatos ligados ao governo iraquiano.

Folha – Tiveram problemas para arrumar iraquianos que trabalhassem com vocês, como motoristas e intérpretes, por exemplo?

Robertson – A CNN mantinha um escritório em Bagdá havia mais de 12 anos. Logo, não tivemos dificuldades em trabalhar com as pessoas do local.

Folha – Até agora, qual foi o momento em que sentiu mais medo?

Robertson – Fiquei assustado quando pensei que os oficiais do Iraque iriam nos expulsar antes de a guerra começar. Havia muita pressão governamental. Fiquei com menos medo quando as explosões começaram.

Folha – Na época da guerra no Afeganistão, Alfredo de Lara, cinegrafista de sua equipe, nos contou que deixara a barba crescer para ficar mais parecido com a população local e chamar menos a atenção. Você é loiro, tem nome e cara de anglo-americano. Enfrentou problemas com os iraquianos por isso?

Robertson – Não tive problemas. O povo iraquiano é muito simpático com os estrangeiros, são pessoas ótimas. Devem estar bem diferentes agora, em razão da desordem civil. Quanto mais a guerra foi se aproximando, os iraquianos foram ficando menos amistosos com americanos e ingleses.

Mas eles reconheciam que nós, jornalistas, não éramos os responsáveis pela guerra.

Folha – No conflito do Afeganistão, você e De Lara eram os únicos jornalistas estrangeiros na capital, Cabul. Aquela cobertura, em função disso, foi mais importante do que a atual para a sua carreira?

Robertson – Eu não penso em termos do que é bom para a minha carreira. Faço a melhor cobertura que posso fazer.

Folha – Como avalia as críticas de que as TVs norte-americanas estão fazendo uma cobertura parcial e conservadora, pautada apenas pelas informações oficiais do governo dos Estados Unidos?

Robertson – Estou muito orgulhoso do meu trabalho em Bagdá.

Como se sente estando tantos dias longe de sua família?

Robertson – Falo com minha família todos os dias. Estaria melhor se estivesse em casa. Mas eles estão felizes porque tenho uma profissão que me faz feliz.”