Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Marco Aurélio Nogueira

LÚCIO FLÁVIO PINTO CONDENADO

"Jornalismo público", copyright Jornal da Tarde, 28/04/03

"Assistimos chocados ao bombardeio do hotel iraquiano em que estavam hospedados diversos jornalistas internacionais. A morte dos que lutavam por uma notícia revelou um aspecto a mais do massacre empreendido pelos norte-americanos nesta que seguramente é uma das mais insanas e injustificáveis operações militares dos tempos modernos.

Há sempre uma guerra de informação nas guerras de nossa época. Com o avanço das comunicações e a espetacularização da vida, a tendência se reforçou. O impacto sobre a atividade jornalística é inevitável. A mídia globalizada, o tempo real, o mercado da notícia, tudo está modificando as bases do trabalho do jornalista. Há menos espaço para o caçador de notícias, o analista rigoroso de fatos e informações, o formador de opinião. O jornalista tornou-se um especialista, treinado nas mais recentes técnicas redacionais, de algum modo estandartizado.

Tal situação comprime o que se costuma chamar de jornalismo público. Quer dizer, aquele que está a serviço do público, livre tanto de compromissos com interesses particulares, mercados ou governos quanto de compromissos com o ego ou as motivações pessoais do jornalista. O jornalista público está amarrado à verdade, à informação que ajuda a construir civicamente uma comunidade e a formar cidadãos republicanos. Situa-se num terreno radicalmente distante do jornalismo sensacionalista, que veicula crimes hediondos ou cenas escabrosas em nome da necessidade de denunciar e alertar a opinião pública. O jornalismo público não se pretende um quarto poder, não se põe numa esfera superior, a partir da qual imagine ser possível pautar a opinião de todos, governantes e governados. Ele é uma espécie de voz ativa da cidadania, e se mistura com ela. Por isso, não costuma ser muito apreciado pelos poderosos ou pelos que se julgam acima do bem e do mal.

Quase ao mesmo tempo em que as bombas norte-americanas matavam jornalistas em Bagdá, uma condenação atingia, em Belém do Pará, no Brasil, o jornalista Lúcio Flávio Pinto, da velha e brava escola do jornalismo investigativo e de opinião.

Lúcio é profissional há mais de 30 anos. De 1971 a 1988, trabalhou em O Estado de S. Paulo. Até fevereiro passado, foi colunista da Agência Estado, respondendo pela elaboração da coluna semanal Carta da Amazônia. Hoje, edita praticamente sozinho o Jornal Pessoal, combativo tablóide de Belém.

Ao longo desta longa militância profissional, Lúcio não se cansou de acompanhar os assuntos amazônicos, erguendo uma sólida e polêmica trincheira de debate, denúncia e análise. Por sua pena apaixonada e ferina passaram os mais diversos fatos e personagens da história regional, independentemente de partidos ou ideologias. Durante o período militar, foi processado uma única vez, em 1976. O processo não chegou a esquentar na Auditoria Militar. Foi logo desqualificado e remetido para a Justiça Comum, onde acabou arquivado.

Curiosamente, nos últimos 11 anos, respondeu a 15 processos judiciais, 13 dos quais permanecem ativos. Em março passado, foi condenado a um ano de prisão, pena convertida para duas cestas básicas, de um salário mínimo cada, durante seis meses, em função da primariedade do réu.

Não há por que objetar uma decisão da Justiça ou estranhar que eventuais prejudicados procurem os tribunais para se defender. Tais ações e decisões integram o Estado Democrático de Direito, e precisam ser sempre valorizadas.

Porém, se queremos ser rigorosos no trato da questão, deveríamos valorizar também a sua plena discussão no espaço público, locus principal das decisões referentes a pessoas públicas envolvidas em temas de interesse público.

As pessoas que acionaram Lúcio Flávio Pinto na Justiça não foram atacadas em sua vida privada, acusadas de criminosas ou ofendidas com adjetivos. Todas foram criticadas porque o jornalista considerou que seus atos – referidos, quase sempre, a disputas de terras e a extração ilegal de mogno no vale do Rio Xingu – desobedeciam à lei ou ameaçavam o patrimônio da coletividade.

Não procuraram exercer o direito de resposta ou entabular, pela própria imprensa, um diálogo franco com o jornalista. A controvérsia, base da democracia, acabou por não se efetivar.

O pouco destaque que se tem dado aos processos contra Lúcio Flávio Pinto não ajuda à educação política dos cidadãos e pode arranhar o próprio jornalismo público. Ainda que em outra dimensão e com distinta carga dramática, o tema deveria nos preocupar tanto quanto as explosões de Bagdá."

 

MERCADO EDITORIAL

"Armada espanhola", copyright Veja, 29/04/03

"Um gigante chegou ao Brasil. É o grupo editorial Planeta, o sétimo maior do mundo, que desde a semana passada conta com uma filial em pleno funcionamento no país. Para iniciar suas atividades, o conglomerado de origem espanhola desembolsou até agora 500.000 dólares e contratou dois profissionais talentosos: Ruth Lanna, que veio da editora Companhia das Letras, e Pascoal Soto, saído da editora Salamandra. Eles e seus assessores têm a missão de compor um catálogo eclético, que se desdobre nos segmentos juvenil, de ficção e de não-ficção, misturando títulos comerciais com outros mais refinados. Os livros de estréia já estão nas prateleiras. São os romances Fazes-me Falta e O Reencontro, da portuguesa Inês Pedrosa e do alemão Fred Uhlman, respectivamente, a coletânea O Doido da Garrafa, que reúne crônicas publicadas pela carioca Adriana Falcão em Veja Rio, e Memórias Inventadas – A Infância, espécie de diário fantasioso assinado pelo poeta mato-grossense Manoel de Barros. A produção dos livros é caprichada: os três primeiros têm capa dura e o último vem numa caixa, como se fosse um caderno de anotações. O selo Planeta deverá lançar mais dez livros na primeira quinzena de maio, e outros trinta até o fim de 2003.

Além da Espanha, onde surgiu na década de 50, o Grupo Planeta está presente em Portugal, nos Estados Unidos e, agora, em todos os países da América Latina. Sua instalação no Brasil começou a ser arquitetada há três anos e já causou muito tititi. O plano inicial era comprar uma editora brasileira. O namoro chegou a esquentar com a Record, líder no campo das obras de interesse geral, no qual não se incluem os livros técnicos e didáticos. Mas o negócio não saiu, e veio a idéia de criar um selo próprio. Daí em diante os editores nacionais passaram a especular sobre qual seria a estratégia dos espanhóis. Temeu-se que eles adotassem uma atitude agressiva – que tentassem, por exemplo, ?roubar? para seu catálogo brasileiro autores que o grupo já publica na Espanha e na América Latina, como os best-sellers Tom Clancy e John Grisham. Até agora, nada desse tipo aconteceu. ?Não viemos com o espírito arrogante de uma multinacional que pretende conquistar o mercado do dia para a noite. Queremos criar uma editora brasileira que figure entre as melhores, e temos uma estratégia de longo prazo?, afirma o espanhol Miquel Alzueta, diretor internacional do grupo. Uma larga dose de autonomia foi dada ao time local da Planeta. ?Somos incentivados a investir em autores nacionais, inclusive os desconhecidos?, diz Ruth Lanna.

O Planeta não é o primeiro grupo editorial estrangeiro a aportar no Brasil. Há dois anos, seu principal concorrente espanhol, o Prisa-Santillana, comprou a editora Moderna. Antes disso, em 1999, os franceses do Vivendi-Universal associaram-se ao Grupo Abril (que edita VEJA), para adquirir o controle das editoras Ática e Scipione. Esses investimentos foram feitos no segmento didático, o mais polpudo de um mercado que, no total, movimenta mais de 2 bilhões de reais por ano. O Grupo Planeta não tem tradição nessa área. Seu foco mesmo são as livrarias. ?Acreditamos que o mercado de livros brasileiro vai crescer muito em dez anos, e queremos participar desse movimento?, diz Miquel Alzueta."

 

EXORCISMO NA TV

"O exorcismo é a atração da noite", copyright Época, 29/04/03

"Em pleno horário nobre da televisão, demônios e almas de má índole estrelam uma estranha atração, com ares de reality show. O programa Coisas da Vida, apresentado diariamente às 20 horas pela Rede Gazeta para São Paulo, Recife, Florianópolis e Belo Horizonte, exibe cenas super-realistas captadas em cultos da Igreja Universal do Reino de Deus. Elas mostram fiéis pretensamente possuídos, submetidos a humilhantes rituais de exorcismo. O show é entremeado por histórias de ficção, protagonizadas por atores amadores, em que os personagens têm a vida infernizada por pragas rogadas por sogras, ex-namoradas e falsos amigos.

Dramas de toda sorte, martela o programa, são causados por ?encostos?, almas penadas que, segundo os ditames das religiões afro-brasileiras, têm o dom de entravar a vida das pessoas. Provocam de tudo: de dores de cabeça e crises de depressão a ataques de formigas na cozinha. Às vezes, a retórica fica ainda mais macabra. Em vez de encostos, exibe-se o que seria a manifestação do próprio demônio.

Num desses programas, o bispo da Igreja Universal Romualdo Panceiro interroga, no púlpito, uma fiel que se debate, como se estivesse possuída. Com voz rouca e enrolada, ela se identifica como um ?mau espírito? – a serviço de inimigos da pobre mulher. O bispo, então, a agarra, puxa seus cabelos, torce-lhe o braço e verga seus joelhos. No ponto alto da cena humilhante, Panceiro pergunta quais desgraças o anjo caído causa na vida daquela cristã. A voz gutural retruca:

– Deram um bode para mim matar ela. O marido dela já ficou sem as duas pernas. Ele tem que fumar maconha até morrer.

A câmera se aproxima.

– Eu quero deixar o filho dela morrer primeiro. É para fazer ela sofrer – completa a voz.

O bispo assegura-se de que a platéia extasiada da Catedral da Fé, maior templo da Universal em São Paulo, acompanhou o depoimento. Depois, encena a expulsão do espírito. Profere uma oração invocando o poder de Jesus e ordena que ele deixe o corpo sofredor. A fiel acorda do transe.

Encerrado o espetáculo, o mesmo bispo exorcista completa a pregação. Diz que dificuldades da vida de todo tipo são causadas por olho gordo ou feitiçaria materializados nos ?encostos?. E a única coisa a fazer é correr para um templo da Universal e submeter-se a um ritual de exorcismo – as ?sessões de descarrego?. Na sexta-feira 18, o programa se superou ao exibir o exorcismo de um jovem em conflito com sua sexualidade. Ao expulsar o ?encosto?, o bispo explicou que as inclinações gays do rapaz eram resultado de um ?feitiço? encomendado por um homem que se apaixonara por ele. ?Agora você pode engrossar sua voz. O encosto foi embora?, disse.

Esses rituais são corriqueiros em cultos da Universal e de outras igrejas neopentecostais – aquelas que acreditam em manifestações sobrenaturais e ä curas milagrosas. Mas, para não assustar, os líderes neopentecostais evitavam mostrar essas imagens na televisão. Quando muito, aventuravam-se nos horários da madrugada. A novidade é que, pela primeira vez, os exorcismos se transformam em instrumento de proselitismo eletrônico.

Essa ofensiva no horário nobre é uma resposta da Igreja Universal ao crescimento de uma organização rival, a Igreja Internacional da Graça de Deus – cujo líder, o missionário R.R. Soares, tornou-se o homem que mais tempo se expõe na televisão brasileira. Os cultos televisivos de R.R. Soares são transmitidos em quatro redes de televisão e ocupam cerca de 100 horas semanais de programação da TV aberta. Até o início do ano, quem estava no horário do Coisas da Vida na Rede Gazeta era Soares – mas ele alugou o mesmo horário numa rede de alcance maior – a Bandeirantes -, onde apresenta hoje seu Show da Fé. Estima-se que pague R$ 2 milhões por mês à emissora. A igreja de Edir Macedo revidou. Comprou o horário da Rede Gazeta e passou a competir com ele.

Os cultos das duas denominações evangélicas são muito parecidos. Têm, aliás, a mesma origem. No fim dos anos 70, Macedo e Soares, que são cunhados, fundaram a Igreja Universal. Depois de uma briga, houve um cisma e o missionário criou uma igreja concorrente. Onipresente na televisão, Soares conquista espaço e audiência. Se a Igreja Universal, que comprou a Rede Record em 1991, tem 2,5 milhões de fiéis, calcula-se que a Igreja Internacional da Graça de Deus já reúna 500 mil deles. R.R. Soares também promove sessões de exorcismo em seus templos, mas se abstém de exibi-las no vídeo. ?Se eu pudesse, mostraria. Mas isso assusta o espectador?, justifica. Entre as denominações evangélicas do país, a Universal, a Graça de Deus e a Igreja Deus É Amor são as que mais exploram a prática do exorcismo nos cultos para captar fiéis. ?Como a Deus É Amor não usa o espaço da TV e a Graça de Deus evita exibir tais cenas no vídeo, a Universal aposta sozinha na estratégia de caçar encostos?, diz Ricardo Mariano, sociólogo da PUC do Rio Grande do Sul e especialista em religiões neopentecostais. A audiência auferida pelo Ibope mostra que a estratégia de R.R. Soares atrai mais audiência. O Show da Fé, visto por 72 mil domicílios na Grande São Paulo, alcançou 1,6 ponto no Ibope no mês passado, três vezes mais que o Coisas da Vida, da Universal, com seus rituais explícitos de exorcismo.

Igrejas de massa precisam dominar a televisão para sobreviver. Programas de rádio e televisão religiosos não atraem receita publicitária, mas não há modo melhor de chamar fiéis para os templos – o verdadeiro celeiro de ofertas. Oito em cada dez fiéis que chegam a um templo de Edir Macedo foram cativados pela pregação no vídeo. A cada minuto, o programa da Universal exibe o telefone do SOS Espiritual, que fornece o endereço da igreja mais próxima do espectador. ?A TV é vital para garantir que o crente vá a um templo e lá entregue dízimos e ofertas?, diz Regina Novaes, pesquisadora do Instituto de Estudos da Religião (Iser).

Ainda que impressionem à primeira vista, os transes testemunhados nos templos e nas TVs da Igreja Universal recorrem a truques conhecidos. A começar por uma mensagem sedutora: o pastor diz que o fiel é uma boa pessoa e todo o mal que ele faz ou sofre é causado por um espírito maligno. Quem vive dramas insuperáveis se entrega facilmente à fantasia.

?As pessoas são sugestionadas pela voz autoritária do pastor até atingirem uma espécie de estado hipnótico?, diz a psicóloga paulista Denise Ramos. A repetição das orações em voz alta, de olhos fechados, conhecida pela medicina como respiração holotrópica, produz um fenômeno de superoxigenação no cérebro. O resultado é um rebaixamento dos níveis de consciência. Quem está no meio de um agrupamento tomado pela euforia tende a se deixar contaminar pela emoção. Há um mecanismo do sistema límbico do cérebro, o mais básico da área nervosa, que induz a pessoa a se comportar segundo as atitudes da multidão que a cerca. ?É por isso que choramos em comícios ao ouvir o Hino Nacional?, compara Denise Ramos.

A gritaria dos milhares de fiéis que participam das sessões de descarrego contagia quem está lá carregando conflitos psicológicos. ?O povão não tem acesso à psicanálise. As pessoas procuram esses cultos populares para aplacar seu inferno interior?, diz o pastor Mozart Noronha, da Igreja Luterana do Brasil. Pastores e seus auxiliares, chamados de obreiros, aprendem a induzir o transe. ?Quando a pessoa está tonta, fica mais aberta para manifestar os demônios?, diz a obreira Aparecida Santos, ex-fiel da Igreja Universal, atualmente na Igreja Internacional da Graça de Deus. Ela ä costuma pôr a mão na cabeça dos fiéis e fazê-la rodar. Outro recurso que funciona é tocar músicas altas no teclado, com acordes bem tenebrosos. ?Porque o demônio não gosta de silêncio?, explica a obreira. Aparecida aprendeu as técnicas do exorcismo na Universal, onde passou cinco anos como auxiliar de pastores. Está convencida de que as cenas na igreja são manifestações reais de entidades do mal. ?O diabo está lá mesmo?, afirma. Só discorda dos métodos de sua ex-igreja. ?A Universal expõe muito a privacidade da pessoa.? Nos cultos dos quais participa hoje, Aparecida identifica quem está possesso e o encaminha a um canto da igreja.

A Igreja Católica vê as aparições de diabos e semelhantes nos cultos neopentecostais como fraude grosseira. ?É como se fosse um show em que os pastores exibem o diabo subjugado como se fosse um animal na jaula?, diz o padre Cleodon de Lima, de 36 anos. ?Se a intenção fosse curar a pessoa, não precisaria mantê-la tanto tempo diante da platéia, sendo ridicularizada.? Até o século XIX, crises histéricas ou casos de dupla personalidade eram interpretados por padres católicos como possessões demoníacas. Com o avanço da ciência, varreu-se o obscurantismo. Na década de 60, o Concílio Vaticano II decretou que apenas alguns sacerdotes, nomeados pela Igreja, poderiam expulsar demônios. Para regulamentar os rituais quase clandestinos, o papa lançou em 2000 um manual oficial de exorcismo. Fez questão de destacar que casos suspeitos devem ser encaminhados primeiro a um psiquiatra.

As igrejas evangélicas tradicionais se constrangem com o espetáculo das neopentecostais. ?A mesma cultura do medo que enche os filmes de terror no cinema também funciona para lotar as igrejas?, compara o pastor luterano Mozart. Os religiosos criticam a obsessão da Universal pelos atos do demônio e a acusam de deixar Deus em segundo plano. ?A Bíblia diz que Jesus até expulsou alguns demônios, mas nunca fez disso seu ministério?, afirma o pastor Israel Belo de Azevedo, reitor do Seminário Teológico Batista. Muitos evangélicos tampouco acreditam que a presença satânica seja corriqueira como prega a Universal. ?O diabo não fica roubando o marido de umas pessoas ou o emprego de outras?, ironiza o pastor Ariovaldo Ramos, da Associação Evangélica Brasileira. Boa parte dos freqüentadores da Universal já recorreu a tendas de umbanda ou centros espíritas, onde conheceu o mundo dos transes e das incorporações. Curiosamente, a Universal buscou inspiração nas religiões afro-brasileiras para apimentar seus cultos. Edir Macedo, que foi umbandista, adaptou os rituais do terreiro. Os gestos no descarrego copiam a coreografia dos incorporados em tendas. Os demônios que os pastores combatem e exorcizam confundem-se com as entidades da umbanda, como Zé Pelintra, Pomba-Gira ou Tranca-Ruas. Os objetos mágicos oferecidos também foram retirados dos terreiros (leia o quadro na pág. 74). Arruda com sal grosso são usados para espantar mau-olhado. Alguns pastores adotam o branco, reproduzindo a vestimenta dos pais-de-santo. ?São elementos estranhos ao cristianismo?, diz o pesquisador Leonildo Campos, da Universidade Metodista de São Paulo. ?A Universal se aproximou tanto da umbanda que precisa mover uma cruzada contra as religiões afro-brasileiras para se diferenciar?, afirma. Mesmo para quem freqüenta os terreiros, a apropriação é esdrúxula. ?Em vez de afastar os demônios, a encenação acaba atraindo-os?, acredita a terapeuta holística Joelma Rodrigues, de 33 anos, que até os 12 era fiel da Assembléia de Deus e hoje é umbandista.

O teatro da possessão demoníaca é eficiente também porque é divertido. O paulistano Eduardo Oliveira, de 28 anos, tornou-se figura conhecida no palco da Catedral da Fé, megatemplo da Igreja Universal. Incorpora encostos e demônios quase toda semana. ?Não tenho culpa, sou mais sensível que os outros e me entrego com mais facilidade?, explica. Oliveira foi batizado na Igreja Católica. Há pouco mais de um ano, abalado pela perda do emprego e pelo fim de um antigo namoro, foi atraído por um programa de TV da Igreja Universal. ?Já experimentei outras ä igrejas, mas, em matéria de libertação, não existe melhor que a Universal: a reza é forte e específica.? Oliveira fecha os olhos, une e aperta as mãos contra o peito. Começa a rezar em voz alta. Um obreiro atento aos fiéis mais exaltados se aproxima. ?Eu ordeno, se manifeste?, diz o obreiro, fazendo movimentos circulares com a cabeça do fiel. Oliveira se joga no chão e começa a se debater. ?Minha perna fica bamba, meus braços amolecem, quando dou por mim estou no altar?, diz.

Na guerra aos encostos, os pastores da Universal pegam carona no trabalho catequizador da própria Igreja Católica brasileira, que durante séculos trabalhou para associar as religiões africanas trazidas pelos escravos a práticas abomináveis de magia negra. Agora isso está enraizado no imaginário popular nacional, que tem uma relação ambígua com essas tradições africanas. Ao apelar para essa velha briga, Edir Macedo retoma a retórica dos anos 70, quando fundou sua igreja. É um reposicionamento do líder neopentecostal desde a malsucedida empreitada contra os católicos, na década de 90. Quando o bispo Sérgio Von Helde, da Universal, chutou uma imagem de Nossa Senhora Aparecida, em 1995, as críticas vieram dos próprios fiéis de Macedo. Afinal, 70% deles convivem bem com o catolicismo, segundo uma pesquisa do Iser. O mesmo estudo mostra que 90% dos pentecostais associam as religiões afro-brasileiras ao demônio. ?Vemos um exército evangélico atacando de forma sistemática comunidades afro-brasileiras, que nem têm como se defender?, aponta a pesquisadora Mariza Soares, da Universidade Federal Fluminense.

O apelo do demônio é forte porque atende a uma grande camada da população que vive imersa em superstições. O neopentecostalismo se desenvolve nos extratos mais pobres da população. Pesquisas revelam que um terço dos fiéis sobrevive com menos de dois salários mínimos, 68% não passaram do ensino fundamental e um em cada dez é analfabeto. Em geral, acreditam em magia negra e forças ocultas. ?O povo acha que o demônio está por aí, agindo através dos incautos?, diz a antropóloga Regina Novaes, do Iser.

Jogar a culpa por tudo que há de errado no demônio é uma solução confortável para quem busca alívio nos cultos. As conseqüências podem ser perigosas. ?A pessoa sai da igreja acreditando que não tem responsabilidade moral pelos erros que comete?, diz o pastor evangélico Ariovaldo Ramos. O crente também fica convencido de que possui uma personalidade frágil e influenciável. ?Ele está pronto para ser manipulado por qualquer líder espiritual que se apresente como solução. Escapa dos vícios para virar escravo desses pregadores?, acusa.

O TEATRO DA POSSESSÃO

Como os pastores empregam técnicas e truques para induzir o fiel a entrar em transe nas sessões de exorcismo

TRILHA SONORA O tecladista executa melodias leves nos momentos de alusão a bênçãos divinas. Mas, quando o pastor menciona as ações do demônio e de espíritos malignos, ouve-se uma sucessão de acordes pesados, que lembram filmes de terror

ILUMINAÇÃO Em alguns cultos realizados à noite, os pastores apagam as luzes principais da igreja. Envoltos na penumbra, os fiéis ficam mais sugestionáveis. Os pastores também pedem às pessoas que fechem os olhos

ROTEIRO Para evocar os demônios, os pastores fazem orações repetitivas. A mente humana tende a aceitar como verdadeiras as frases proferidas sucessivamente, em tom de autoridade e num ambiente emocional

COREOGRAFIA Os obreiros apertam e balançam a cabeça ou o corpo do fiel em movimentos circulares. A tontura e a falta de apoio no chão são fatores que induzem o transe

FIGURAÇÃO O burburinho das pessoas rezando e gritando rebaixa os níveis de consciência de fiéis suscetíveis. Quem está no meio de uma multidão é influenciado pelas emoções dos indivíduos ao redor

ADEREÇOS As igrejas usam símbolos que tocam as emoções dos fiéis. Os pastores incentivam-nos a trazer objetos de valor emotivo como fotografias de parentes, currículos impressos e carteira de trabalho para ser abençoados

SONOPLASTIA Em algumas igrejas, junto com a música, são reproduzidas gravações de gritos e sons de assombração. Esses ruídos estimulam o inconsciente das pessoas em transe a considerar real aquela manifestação

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"A ciência dos transes", copyright Época, 29/04/03

"Transes religiosos são registrados desde a Grécia antiga, quando sacerdotisas diziam receber espíritos em rituais inspirados por música e vinho. Mas essas manifestações só começaram a ser desvendadas pela ciência no fim do século XIX, com o surgimento dos primeiros estudos em psicologia. Em 1862, o neurologista francês Jean-Martin Charcot (1825-1893) instalou-se no Hospital Salpêtrière, em Paris, convencido de que as visões de espíritos vivenciadas por alguns pacientes eram causadas por males do sistema nervoso. Para tratá-los, aperfeiçoou a técnica de induzir a pessoa ao estado de transe por meio de hipnose. Os recursos empregados, baseados na repetição de luzes ou sons, desmontaram a aura sobrenatural que cercava as possessões. Um de seus alunos, Sigmund Freud, também se interessou pela hipnose. Mas foi o suíço Carl Jung quem se dedicou a teorizar de onde vêm os ?maus espíritos? que atormentam as pessoas. Segundo ele, essas figuras aterrorizantes são imagens gravadas coletivamente na mente humana. Batizados de arquétipos, acompanham a humanidade há milhares de anos. ?O diabo, que os fiéis da Universal acreditam incorporar, é uma dessas imagens e representa forças destrutivas dentro da própria pessoa?, diz a psicanalista Aurea Roitman. ?Já o chifre e o rabo são adereços acrescentados pelo imaginário cristão.?

Enquanto os fundadores da psicologia descreveram como se induz um transe, foram os antropólogos que teorizaram sobre a função das possessões e dos exorcismos. Os missionários religiosos e médicos que viajaram para a África ou investigaram territórios dominados pelos índios nas Américas ficaram fascinados pelas cerimônias dirigidas para que alguns participantes recebessem os espíritos. A partir dessas narrativas, o filósofo francês Emile Durkheim (1858-1917), um dos fundadores da sociologia, foi um dos primeiros a teorizar sobre a função dos transes. Analisou em 1912 o papel do descarrego primitivo para garantir a unidade da tribo. ?Os exorcismos têm a função de provar a existência de um agente sobrenatural capaz de punir os delinqüentes, por mais poderosos que sejam?, explica o antropólogo Scott Atran, da Universidade de Michigan."