Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Marcos Sá Corrêa

COBERTURA DE GUERRA

“Um tiro pela culatra”, copyright nomínimo (www.nominimo.com.br), 20/04/03

“O jornalismo apanhou tanto nesta guerra que a primeira mensagem do Iraque de boas-vindas aos americanos saiu na Inglaterra, publicada com exclusividade pelo noticiário de oposição à guerra porque, nos Estados Unidos, o autor do furo acabara de ser banido da imprensa. Vale a pena ler a notícia de novo. Ela agora parece mais atual do que antes.

?Ontem fui o centro de uma levante popular em Bagdá?, informava o correspondente do Daily Mirror, dois dias antes que as tropas americanas chegassem à cidade. Escrevia de Saddam City, a grande favela iraquiana, um ?vespeiro de descontentamento e fundamentalismo Islâmico?, onde entrara escoltado por dois ?velhos conhecidos? shiitas. Pegou o ensaio dos saques: ?Não havia militares nem policiais à vista. Avistamos pessoas que começavam a sair de suas casas, olhando em volta. Vimos um grupo entrar na casa de um funcionário do partido Ba?ath, que estava claramente abandonada. Eles saíram carregando poltronas e aparelhos de TV. Estavam começando simplesmente a agarrar as coisas?.

Preparava-se a grande festa da derrota: ?Enquanto olhávamos de nosso carro a multidão cresceu – 20, 30, enfim cerca de 100. Eles começaram a cantar ?Allahu Akbar? (Deus é Grande) e ?abaixo Saddam Hussein? e embicaram em direção à mesquita de Al-Ardalea com uma bandeira islâmica. Fechada por cinco anos, a mesquita era o grande centro de descontentamento deste lugar?.

E teve uma amostra do tipo de recepção que aguardava os soldados: Eu comecei a sair do carro com muito cuidado, mas a turba me viu. Vieram correndo para cima de mim. Era uma multidão frenética. Pensei: ?Epa, é o fim?. Eles me agarraram e ergueram no ar junto com meus dois amigos iraquianos. Passaram a marcham conosco ao redor da mesquita. Mas não eram ameaçadores. Ao contrário. Eram todos imensamente amistosos. Devo ter sido beijado mil vezes da ponta dos pés ao topo da cabeça por esses homens?.

Ou seja: o repórter Peter Arnett, demitido dez antes da rede NBC e da National Geographic por declarações ?impatrióticas? à TV estatal iraquiana, acabava de ouvir em primeira mão um bando de iraquianos gritando nas ruas ?liberdade, liberdade? e ?obrigado, Bush?. A reportagem é uma obra-prima do tiro pela culatra. Arnett, um neozelandês de 68 anos que cobriu todas as guerras americanas desde 1962, acabara de ser ?catapultado? para o Daily Mirror, que o acolheu no dia primeiro de abril – tinha que ser primeiro de abril – com uma nota de desagravo. ?Ele foi vilipendiado de um lado a outro dos Estados Unidos?, dizia o jornal, por dizer à TV dos inimigos que os planos de Bush haviam esbarrado numa forte resistência iraquiana.

Errou feio, como o próprio Arnett atestou dez dias depois, quando foi ver em Saddam City a tal resistência iraquiana. E errou por contraria a doutrina Peter Arnett de numa guerra ?a verdade devia ser buscada nos campos de batalha, e não nas conferências de imprensa?, como ensinam suas memórias de correspondente, publicadas no Brasil em 1994. De longe, ele pode ser um palpiteiro como outro qualquer. De perto, transforma-se no repórter que ajudou a imprensa americana a mudar no Vietnã o que os jornalistas entendiam por cobertura de guerra.

Arnett é aquele jornalista que ficou sozinho em Bagdá, quando o George Bush pai bombardeou o Iraque, transmitindo ao vivo a Tempestade no Deserto para a CNN. E no Vietnã, onde passou dez anos na linha de fogo e ganhou pela agência Associated Press o premio Pulitzer de 1966, assistiu à tomada de Saigon pelos vietcongues, quando já não havia nem espião americano na cidade. Como veterano de guerras alheias, passou dois meses no Afeganistão, em 1993, relatando para a CNN a guerra civil que triturara o exército russo.

Aí, sim. Quando conta o que viu, em vez de opinar em microfones, Arnett chega a ser premonitório. Suas reportagens em Cabul entram quase como um anexo em ?Ao Vivo do Campo de Batalha?, seu livro de memórias. Mas ali, em pouco mais de vinte páginas, ele puxa um fio que a política externa americana até hoje não acabou de enrolar. No Afeganistão, dizia ele dez anos atrás, estava a ponta da conexão internacional que unia aquela carnificina distante ao primeiro atentado ao World Trade Center, ?um ato espetacular de terrorismo que o governo americano atribuía em parte a uma ampla conspiração dos radicais islâmicos para efetuar vários atentados nos Estados Unidos?.

E foi o que ele constatou: ?Os americanos civis que encontrei falavam com satisfação do ?Vietnã da Rússia no Afeganistão?, expressando a crença e o desejo de que Moscou pagasse muito caro o apoio que havia dado ao governo comunista de Cabul. Os americanos estavam certos. Os russos finalmente saíram do Afeganistão derrotados. Mas os bazares empoeirados de Kashwar, os bairros miseráveis e úmidos e as associações sinistras formavam o cenário perfeito para um centro de atividades clandestinas e desde então a cidade havia se tornado um pesadelo para os Estados Unidos. Radicais islâmicos das terras árabes, que haviam apoiado a luta do Afeganistão, estavam usando suas conexões no campo de guerra para planejar uma campanha terrorista de alcance internacional. Os suspeitos do atentado à bomba no World Trade Center tinham contatos em Peshawar e, segundo se sabia, podiam entrar na cidade e sair livremente?.

Um paquistanês, que Arnett entrevistou a bordo de um avião, descreveu-lhe o caldeirão de ressentimentos contra os americanos, que deram ?apoio total aos radicais islâmicos do Afeganistão quando lutavam contra os russos e depois os abandonaram?. Um jornalista afegão explicou-lhe o atentado ao World Trade Center: ?As galinhas estão voltando para o poleiro. Tudo o que vocês queriam era destruir o comunismo e aceitavam extremistas para lutar contra eles e os treinaram para matar. Mas muitos deles não gostam de vocês e vocês serão o próximo alvo?. Dito isso, Arnett fecha o livro com um presságio: ?Acondicinamos nosso equipamento e entramos no táxi. Eu estava feliz por sair do Afeganistão, mas sabia que a história não tinha terminado?.

Arnett tinha, na ocasião, 35 anos de tarimba em frentes de combate. Mas na retaguarda começou sofrer derrotas típicas de principiantes. Mudou Arnett ou mudou a imprensa? Ele só se naturalizou americano depois da guerra do Vietnã. Era portanto um estrangeiro, visto com explícita desconfiança pelo Pentágono e pela Casa Branca, quando foi a Hanói cobrir com exclusividade a libertação de prisioneiros americanos. Tratava-se de um gesto publicitário do governo vietcongue acolitado nos Estados Unidos por radicais do pacifismo. Nem por isso ele pagou com o emprego aquele teste de inconformismo.

Na guerra do primeiro Bush contra o Iraque, pôs no ar em pleno bombardeiro uma entrevista com Saddam Hussein, dando-lhe a chance de desovar nos ouvidos do mundo inteiro uma hora de bazófias, como prometer que os iraquianos lutariam ?de um modo que provocará admiração até no ser humano que há dentro de cada soldado americano?. Conseqüências? Foi criticado por Bush e cumprimentado por Ted Turner, o dono da CNN. Antes, noticiara que arsenal de armas químicas destruído por mísseis em Bagdá não passava de uma fábrica de leite em pó. Marlin Fitzwater, o porta-voz da Casa Branca, chamou-de de mentiroso em público. A empresa se limitou a perguntar se ele sabia o que estava dizendo.

De lá para cá, a maré virou contra ele. Quatro anos atrás a CNN o defenestrou sumariamente, quando o Pentágono desmentiu o documentário em que denunciara o uso de gás sarin pelos Estados Unidos no sudeste asiático. Na NBC e na National Geographic, seus empregos duraram poucas semnans. E pode ser coincidência, mas o fato é que o Daily Mirror não publica suas reportagens desde saiu aquela história dos iraquianos dando vivas a Bush. Das duas, uma. Ou Peter Arnett aprendeu a fazer tudo errado depois de sessentão. Ou é o próprio jornalismo crescido no Vietnã que ficou gagá na era Bush.”

“Viva! A Globo chegou a Bagdá!”, copyright Folha de S. Paulo, 18/04/03

“O telespectador tapuia já tem bons motivos para comemorar. O correspondente da TV Globo Marcos Uchôa finalmente conseguiu chegar a Bagdá. Tudo bem que os norte-americanos e os ingleses já estejam embarcando de volta para casa. O importante é que, de agora em diante, a Globo estará transmitindo os fatos in loco, e não mais de algum ponto em Kuait City, onde Uchôa esteve estacionado desde o início do conflito.

Quem não tem acesso à TV por assinatura talvez não saiba, mas a maioria dos correspondentes de emissoras de outros países tão importantes quanto a Globo entrou e saiu do Iraque várias vezes enquanto Uchôa fazia seus relatórios diários a partir de Kuait City.

Para o cliente, que é soberano, pouco importam os motivos que deixaram a Globo à margem dos fatos. Se Uchôa não conseguiu visto para entrar no Iraque, problema dele e de quem cuida desse tipo de burocracia na Globo. O que interessa é que, na lembrança do telespectador, ficará para sempre a imagem de uma história contada em segunda mão.

E eu torço para que o repórter possa se redimir da desastrada cobertura e consiga, quiçá, uma entrevista exclusiva com Saddam Hussein ou com algum de seus filhos tarados. Mas algo me diz que, a esta altura, Saddam já deve ter ido para Portugal abrir uma padaria só para não ter de raspar o bigode.

O pessoal fica enaltecendo a astúcia de desequilibrados como Saddam e Bin Laden, mas, na minha modestíssima opinião, não são eles os espertos. Talvez os americanos, que não conseguem encontrar nem mesmo o mulá Omar, é que sejam mais tapados.

Analise comigo: Osama bin Laden não cometeu os ataques de 11 de setembro a fim de forçar os EUA a retirarem as bases instaladas na Arábia Saudita? Não foi o que ocorreu. E Saddam Hussein, por acaso, tinha mais de dois neurônios quando calculou que os americanos iriam fechar os olhos para que ele invadisse o Kuait?

Desta vez, nós não sabíamos que o Exército de Saddam era brancaleônico em gênero, número e grau. Mas, com certeza, ele sabia. Então, por que não aceitou o exílio proposto alguns dias antes do ultimato? Vá ser capadócio assim lá na Mesopotâmia, seu Saddam!

Quando o ?Cidade Alerta? apresentou um suicídio às 6h da tarde, onde estavam as associações de defesa da ética na TV? Se elas tivessem agido prontamente, será que o programa teria repetido a dose no dia seguinte?”

“Murdoch vence guerra na mídia”, copyright Folha de S. Paulo, 20/04/03

“O presidente George W. Bush fez a guerra, mas o real senhor dela talvez seja um homem que tem um exército sem mísseis nem tanques e veio não do Texas, mas de Melbourne. Rupert Murdoch, 72, australiano naturalizado americano, sai do front como o grande vitorioso na mídia dos EUA.

É um efeito semelhante ao que aconteceu com Ted Turner, da CNN, após a primeira Guerra do Golfo, só que de forma ampliada.

Sua vitrine é a a Fox News, a emissora número 1 do país. A guerra foi o teste que há tempos se esperava para ela -parte dos analistas apostava que a CNN retomaria a liderança no conflito.

Na primeira semana de abril, a Fox News transmitiu 14 dos 15 programas mais vistos da TV a cabo, segundo a Nielsen. A CNN, que investiu US$ 30 milhões na cobertura, emplacou um único produto seu, no 13? lugar.

Um fato torna o feito da emissora de Murdoch ainda mais significativo: ela venceu justamente no nicho da mídia que foi o maior beneficiado pela guerra, o das TVs a cabo. As três principais dos EUA (Fox News, CNN e MSNBC) viram sua audiência crescer mais de 200% com o conflito.

Número 1 entre esses canais, com cerca de 500 mil espectadores a mais na média que a CNN, a Fox News baseou-se num noticiário fortemente editorializado e numa cara ?patriótica?.

?Eles encontraram um público que estava lá e deram a ele uma TV com a qual se identificasse?, diz Peter Hart, analista do instituto Fair, um ?think tank? liberal.

Sua análise fica mais clara à luz de pesquisa do Pew Research Center, segundo a qual o sentimento antiguerra é o item mais apontado pelos americanos como sendo o que está recebendo a cobertura mais exagerada da mídia -40% pensam assim.

Diversificação

Dono de um império global de comunicações, Murdoch tem, nos EUA, não só a TV a cabo mais vista, como também um braço mais estratégico, a revista ?Weekly Standard?, apontada como a leitura número 1 da Casa Branca.

Com isso, o grau de polarização em relação à Fox News é grande. A revista de esquerda ?The Nation?, por exemplo, após publicar anúncio da emissora de Murdoch, recebeu cartas iradas e perdeu leitores, a tal ponto de ter de explicar as necessidades de seu caixa em editorial.

Enquanto isso, Murdoch não pára. Na última quarta, mesmo dia em que os americanos derrubavam a estátua do ex-ditador Saddam Hussein em Bagdá, acertava a compra da DirecTV, passando a controlar a principal operadora de canais pagos via satélite dos Estados Unidos.

Com a aquisição de R$ 6,6 bilhões, Murdoch assume também as duas principais empresas do setor no Brasil, a Sky e a Directv, que juntas detêm 95% do mercado, num virtual monopólio.”