Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Maria Carolina Maia

ASPAS

BOECHAT NO JB

"?Jornal do Brasil? e Band contratam Boechat", copyright Cidade Biz (www.cidadebiz.com.br), 11/07/01

"?Vão ter que me engolir?, disse, bem humorado, o jornalista Ricardo Boechat ao CidadeBiz no final desta quarta, parafraseando o ex-técnico da seleção Mario Lobo Zagallo. Boechat está afastado do jornalismo desde 25 de junho, quando foi demitido pela Globo devido a uma bombástica matéria de sete páginas em que a Veja se utilizava de grampos telefônicos para revelar os bastidores da guerra entre o grupo canadense TIW e Daniel Dantas, presidente do Banco Opportunity, pelo controle de duas empresas de telefonia celular – Telemig Celular e Tele Norte Celular -, guerra em que Boechat estava envolvido.

Segundo o jornalista, sua volta está prevista para a próxima terça, quando passa a assinar no Jornal do Brasil (JB) uma coluna semelhante à que redigia para O Globo. Na Band, ele fará intervenções diárias no Jornal da Noite, comandado por Sérgio Rondino. A idéia do diretor de redação do JB, Mário Sérgio Conte, é de que os trabalhos comecem juntos, no dia 17. ?Eu quero continuar ocupando um pedaço nesse mercado de informação como sempre ocupei.?

Na ativa novamente, o jornalista espera retomar seu estilo de veicular notícias exclusivas, assim como fazia no Globo. ?Alguns amigos me dizem que têm boas notícias guardadas para mim, mas eu não acredito em bomba de gaveta, coloco isso na cota de carinho que tenho recebido?, afirma. ?Já cansei de dormir com um furo no bolso e acordar com a bomba já detonada.?

Mas a pior bomba que viu explodir ao acordar foi, com certeza, a reportagem da Veja. ?A revista foi muito ardilosa na montagem da matéria?, desabafa, ?Fiquei mesmo abalado, até porque eu me julgava inatingível. Mas para ser atingido basta alguém querer te atingir?, arremata, dando a impressão de ter sofrido um ataque pessoal. Embora se diga tranqüilo quanto ao acontecido, o jornalista insiste em dizer que a matéria citada no grampo era verídica e que não recebeu nenhum benefício por ela. ?É isso que faz a base do jornalismo?, diz."

"Uma história exemplar de fracasso", copyright Reescrita (www.reescrita.jor.br), 5/07/01

"1. Relações perigosas

Ricardo Boechat é um dos mais conhecidos jornalistas brasileiros. Assinou, no jornal O Globo, por mais de vinte anos, e até recentemente, uma coluna em que, mais do que o nome e a fama do jornal, valia a credibilidade do jornalista. E essa credibilidade, ele a conquistou pela capacidade de dar notícias verdadeiras em primeira mão, colhidas nos vários bastidores do poder e das elites, no mundo da política e dos negócios. E com essas notícias interferia na vida brasileira.

Exatamente porque colhia e recolhia informações no âmago das intrigas e dos confrontos entre poderosos, com relativa freqüência Boechat provocava ou incendiava crises. Quando tinha à mão revelações de maior octanagem, o colunista saltava dos limites da coluna para as páginas nobres do jornal, com reportagens assinadas que lhe aumentavam o prestígio e o poder, dentro e fora do jornal.

Mas esse campo jornalístico de noticiário de bastidores (muito forte na imprensa brasileira) é um território de alto risco, não só por causa da competição entre colunistas de jornais concorrentes (há uma briga de foice pela exclusividade das notícias), mas, principalmente, pelos acordos que, em boa parte dos casos, esses colunistas fazem com fontes interessadas, com as quais acabam estabelecendo relações de amizade. E aí se criam armadilhas perigosas para o jornalismo e os jornalistas, porque as relações de amizade se transformam facilmente em relações de interesse.

Quando tal acontece, essas colunas de notícias de bastidores passam a ser usadas como tabuleiros de um jogo estratégico que o jornalista nem sempre controla. Um jogo irrigado por informações interessadas, dadas por fontes habitualmente ocultas.

2. ?Jornalismo? de aliança

Por ingenuidade (coisa altamente improvável), por imprudência ou por opção interessada, Ricardo Boechat caiu na armadilha e tornou-se personagem central de um escândalo que a revista Veja revelou em detalhes. Hoje, ele é um jornalista sem credibilidade e sem coluna. Ao menos aparentemente, também sem emprego.

Trata-se de um escândalo e tanto, posto em pratos limpos por gravações clandestinas que devem ter rendido bom dinheiro a quem as fez e vendeu, e às quais a principal revista brasileira teve acesso por meios não explicados, mas tão criminosos e ilegais quanto a realização do grampo.

As gravações transcritas pela Veja revelam que Ricardo Boechat combinou, com uma fonte interessada, a feitura e a publicação de uma reportagem que a favorecia, numa ?guerra? de gigantes, disputando o mando e comando de duas empresas de telefonia celular no Brasil.

Sem entrar nos complicados meandros da história, lembrarei que de um lado estava o grupo canadense TIW, do outro, o Banco Opportunity. E dez dias depois de publicada, a reportagem serviu de peça decisiva numa ação judicial proposta por fundos de pensão associados da TIW, nos 49% que detêm, no capital das duas empresas de telefonia celular.

No episódio, o lance da reportagem fez parte de uma estratégia armada e controlada por um peso pesado do mundo dos negócios, um certo Nelson Tanure, que recentemente comprou o tradicional Jornal do Brasil, salvando-o da falência. Num dos seus mais recentes movimentos de empresário, Tanure tornou-se aliado da TIW, assumindo a defesa dos interesses do grupo canadense na disputa com o Banco Opportunity pelo comando duas empresas de telefonia. Acontece que Tanure é amigo de Boechat. E já o havia convidado para se transferir para o JB quando a reportagem saiu.

Numa das gravações divulgadas pela Veja, revela-se uma conversa acontecida no dia 15 de Abril, entre Ricardo Boechat e um assessor de Tanure, de nome Paulo Martins, compadre e também amigo do jornalista. Boechat falava de um hotel de Paris, Paulo estava no Rio de Janeiro.

Na transcrição da conversa, várias são as frases, tanto do jornalista quanto do assessor de Tanure, que colocam a reportagem no bojo de um acordo, em cenário que envolvia negócios de alto calibre.

Não há nenhum indício de que o jornalista tenha levado qualquer vantagem financeira. Mas também não restam dúvidas de que ele teve, em todo o episódio, um comportamento de aliado – a ponto de, no telefonema, em diálogo de cúmplices, ter lido ao compadre Paulo, representante do lado interessado, a íntegra da reportagem, na véspera da publicação.

3. Escamoteação e fraude

Ricardo Boechat foi demitido das Organizações Globo e, com a reportagem da Veja, exposto à execração pública e unânime. Está punido. E terá aprendido, espera-se, que, também no caso de colunistas famosos, a sociedade exige do jornalismo e dos jornalistas um padrão de honestidade que pressupõe a capacidade de ser independente.

Em seu favor, nos debates a que teve a coragem de se submeter, Ricardo Boechat usou apenas um argumento: a notícia dada era verdadeira. Na sua avaliação, pela obtenção da notícia vale tudo. Foi mais ou menos isso que ouvi dele, num programa de televisão em que se tratava do escândalo.

Não pode ser assim. Nem foi assim.

Boechat sabia muito bem das implicações que estavam em jogo – e disso não deu conta aos leitores. Além de ter escamoteado o contexto, no qual deveriam estar os sentidos essenciais da notícia, o colunista fraudou a regra da confiabilidade, sem a qual não se realiza o jornalismo, nem como linguagem nem como processo social."

 

"A moral do jornalismo (ou o jornalismo sem moral)", copyright Jornal Pessoal, ed. 263

"Todos os jornalistas deviam aproveitar o ?caso Boechat? para um exame (ou reexame) de consciência coletivo e a renovação do código de ética e dos padrões de conduta da categoria. Ambos existem mais como letra de forma e habeas corpus preventivo. Por isso, há muito fedor nas redações. Disfarçado com os melhores perfumes.

Ricardo Boechat foi sumariamente demitido do jornal O Globo e da TV Globo, em pleno domingo, dia 24 de junho, por conduta considerada aética e antiprofissional. A prova do crime aparecera nas páginas da revista Veja: a transcrição da gravação clandestina de uma conversa por telefone entre Boechat e Paulo Marinho, travada três meses antes.

A gravação comprovava três faltas graves. A primeira: o jornalista leu para o interlocutor a íntegra de uma reportagem que havia escrito para ser publicada no dia seguinte; ou seja, criou um leitor privilegiado, que se antecipou à circulação do jornal no contato com o texto impresso.

Além do seu valor intrínseco incontestável, esse texto tinha um valor utilitário: seria usado por uma parte contra seu oponente, a primeira se antecipando a uma manobra que o segundo faria exatamente no dia da publicação da matéria. O contencioso envolve duas empresas de telefonia com valor de mercado de 2 bilhões de reais, que dois dos sócios estão disputando num vale-tudo disfarçado de divergência societária.

Por fim, o jornalista revelava informações de economia interna da empresa de comunicação na qual trabalhava; seu interlocutor, além de ser lobista de uma das empresas de telefonia, por meio dela era também informante do principal acionista do Jornal do Brasil, concorrente de O Globo, numa fase de acirramento de disputa.

Ricardo Boechat é uma pessoa querida e admirada (como profissional, amigo e chefe de família, além de parte em divertidas sessões de papo) pelos colegas que já tiveram o prazer de trabalhar ao lado dele. Não tenho nenhuma referência sobre troca de notícias por dinheiro (nosso chen, o jabaculê dos cariocas) por parte dele. É um dos jornalistas mais bem informados do país. Redige corretamente o que apura. Tem 30 anos de estrada pavimentada de sucessos. Ainda assim, fez por merecer a demissão.

Os erros que cometeu foram o móvel da iniciativa da empresa? Aí é que reside a dúvida. Boechat alega que, se errou, esse erro é corriqueiro nas redações: repórteres lêem suas matérias para fontes, trocam favores com elas, plantam balões de ensaio que lhes entregam, servem de instrumento para o que está além (e por trás) das notícias, pulando o balcão ou derrubando o biombo entre o repórter como testemunha dos fatos e personagem desses mesmos fatos. A patologia não seria individual, mas coletiva. Pelo que passaria a viger a máxima da Vovó Zulmira, criada pelo também jornalista Stanislaw Ponte Preta (pseudônimo de Sérgio Porto): ou todos nos locupletemos, ou restaure-se a moral.

Se é verdadeira a observação de Boechat, não são defensáveis essas práticas. Nenhum jornalista deve submeter seus textos a ninguém senão seus chefes imediatos, pelos quais a matéria transitará por contingência funcional, devidamente hierarquizada. Às vezes assuntos complexos, sobretudo ligados à ciência, exigem uma nova checagem. Mas o jornalista que ainda não é capaz de responder por tudo o que escreve tem uma grave deficiência na apuração das informações. Precisa adestrar-se melhor. A solução não é ler o que escreve para a fonte corrigir. Isso, jamais, em situação alguma.

O jornalista não deve se indagar sobre o destino que suas matérias terão, se serão usadas por xis ou ípsilon. As perguntas que lhe competem fazer são: o fato tem importância, é verdadeiro, está exposto da forma mais completa e acabada possível? Preenchidos esses requisitos, está pronto para ser divulgado. É claro que em muitas situações os fatos são revelados ou levados aos jornalistas por pessoas com envolvimento na história. O jornalista não deve descartá-los só porque têm uma fonte com interesses definidos. Mas deve consultar outras fontes, checar informações e avaliar o significado do fato.

São tantas as situações que uma regra geral de como proceder admite inúmeras exceções. Em todas elas, o critério de definição é revelar o máximo do que se apurou. Lembro na época do regime militar. Como correspondente de O Estado de S. Paulo em Belém consegui ter acesso a fontes privilegiadas do establishment. Para me passar informações, essas fontes exigiam não ser identificadas. Combinei com São Paulo que o crédito dessas matérias seria atribuído a alguma sucursal, de Brasília ou Rio de Janeiro, não só para desviar o foco como para diluir as responsabilidades (mais jornalistas e muito mais fontes teriam que ser investigadas). Mas eu sempre situava o setor de atuação da fonte (?uma fonte militar?, ?uma fonte bem posicionada no setor de segurança?, por exemplo) para que o leitor capacitado a interpretar aquela informação tivesse um dado a mais para enriquecê-la e pudesse verificar sua validade, não entregando a fonte, mas também não a deixando anônima no éter.

Boechat não seguiu princípios básicos do jornalismo independente – e, como ele, muitos jornalistas se desfizeram de tais normas. Há os que tiram vantagem material dessa renúncia, e não são poucos, infelizmente. Muitos outros apenas estão, ao seu modo, cultivando e preservando boas fontes, que lhes garantem informação de primeira, acesso aos bastidores do poder ou ?furos?, que se transformam em instrumentos de notoriedade e afirmação profissionais.

Constantemente uma relação necessária e mesmo vital começa a perder equilíbrio e a fonte passa a comandar o jornalista, que vai se desfazendo dos princípios para continuar a seguir na linha de frente, integrada por uns poucos que sabem das últimas ou mais quentes informações, mal elas acontecem, admirados e cultuados por serem ?insiders?.

Acabam pagando um alto preço, como ocorreu no caso de Ricardo Boechat. Ele ultrapassou os limites admissíveis na relação jornalista-fonte, tornando-se um elemento de manobra daqueles que lhe davam as informações e chegando à promiscuidade. Mas talvez não chegasse a ser demitido, e seguramente não seria demitido com humilhação, se essa promiscuidade não significasse uma ameaça aos interesses das Organizações Roberto Marinho.

Havia o boato de que o colunista estava negociando sua transferência para o Jornal do Brasil, que O Globo havia conseguido superar no difícil mercado carioca, menos por méritos próprios do que em função da corrosiva crise interna do JB. A lenta e continuada decadência do jornal, que sucedeu o Correio da Manhã como o mais influente na capital política (e ainda cultural) do país, poderia agora seguir uma nova tendência, de ascensão, com a chegada de dinheiro de Nelson Tanure, o segundo principal personagem na novela telefônica grampeada que Veja revelou, e a adesão de jornalistas de prestígio, como Boechat, amigo íntimo de longos anos do empresário.

É claro que os Marinho não armaram uma rocambolesca armadilha para o seu até então mimoseado colunista. Mas aproveitaram uma circunstância favorável para potencializar seus efeitos positivos. Favoreceram o grande personagem oculto da trama, Daniel Dantas, o ardiloso sócio dos investidores canadenses nas telefônicas (e, quem sabe, a ponta final na origem das fitas, antes da chegada a Veja), mandaram um torpedo na direção de Tanure e do JB, e ainda desvalorizaram sua futura provável conquista. Nem Janete Claire escreveria roteiro mais maquiavélico. O doutor Roberto não tem rival nessas artes e manhas do poder. Ao menos vivo.

O agradabilíssimo Boechat não deve ter sido um atento leitor das fábulas antigas, aquelas que narram uma história de sadismo ou vilania, recoberta de tintura infantil, ocultando um enredo torto sob uma moral edificante. Acabou arrastado por essa maré de sujeira da qual se imaginava apenas um cronista distanciado, por um dos incontáveis rolos de fitas clandestinas, que não parecem ter fim, e ainda poderão enforcar outros, inclusive os que criam monstros na presunção de podê-los sempre controlar, como afoitos jornalistas. E assim poderá acabar sendo com todos os que imaginam manter essa relação incestuosamente para sempre. Só nas lendas de conveniência cabe a eterna felicidade. Eternidade somente para quem tem ao seu alcance um poder: o de contar a versão final."

    
    
                     

Mande-nos seu comentário