Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Mauro Dias

DAVID NASSER

"David Nasser, o repórter que inventava a notícia", copyright O Estado de S. Paulo, 4/11/01

"Dois anos de trabalho, encerrados em junho, mais de cem entrevistas, algumas com duração de horas, trabalho exaustivo de pesquisa em arquivos públicos e particulares deram corpo ao livro Cobras Criadas – David Nasser e O Cruzeiro – uma biografia do jornalista David Nasser que é, ao mesmo tempo, a história dos tempos áureos da revista em que trabalhou entre 1943 e 1974, carro-chefe das publicações do império de Assis Chateaubriand, escrita pelo também jornalista Luiz Maklouf Carvalho (Editora Senac São Paulo, 600 págs., R$ 45,00).

David Nasser foi o repórter mais famoso de seu tempo – entre os anos 50 e os 70. Não deve ser aplicado a ele – embora eventualmente seja aplicado – o adjetivo ?polêmico?. Não era polêmico. Era uma figura de poucos escrúpulos, que dava pouca importância para os fatos e muita importância para o efeito de suas reportagens.

Inventava, alterava, adequava a realidade à carga de efeito que seus escritos pudessem trazer. Era mais importante do que a notícia – opinião corroborada por seus companheiros de trabalho – tanto por aqueles que dele gostavam quanto pelos que o detestavam -, pelos amigos, pelos parceiros circunstanciais.

Era um homem de imenso talento para escrever e com capacidade aparentemente inesgotável de trabalho. Escreveu livros de grande repercussão – quase sempre apoiados ou baseados em suas próprias reportagens – e compôs cerca de 300 músicas, algumas de muito sucesso, como Nêga do Cabelo Duro (com Rubens Soares), Canta Brasil (com Alcir Pires Vermelho), Camisola do Dia, Hoje Quem Paga Sou Eu, Atiraste uma Pedra (com Herivelto Martins), Confete (aquela do ?pedacinho colorido de saudade?, com Jota Júnior), Normalista (com Benedito Lacerda, grande sucesso na voz do amigo Nelson Gonçalves), A Coroa do Rei (com Haroldo Lobo) e até a valsa que ainda hoje serve de vinheta para o fim de ano da Rede Globo: Fim de Ano ( ?Adeus ano velho, feliz ano-novo…?), parceria com Francisco Alves.

Foi ativista e membro de diretoria de órgãos de defesa de direitos autorais – União Brasileira de Compositores (UBC) e Serviço de Defesa do Direito Autoral (SDDA). As duas sociedades são desacreditadas. O SDDA foi alvo de uma CPI em 1967, durante o governo Costa e Silva.

David Nasser foi amigo de políticos, artistas, atletas. Orgulhava-se de ser diretor de honra da tristemente famosa Scuderie Le Cock, nome de fantasia – expressão empregada por Luiz Maklouf – do Esquadrão da Morte que atuou no Rio de Janeiro. O caixão de Nasser, em seu enterro, estava coberto pela bandeira – uma caveira, duas tíbias cruzadas – do Esquadrão.

Os negócios musicais de Nasser eram administrados por duas firmas de sua propriedade, que tiveram forte atuação no lobby que conseguiu, nos anos 60, a isenção fiscal para os produtos fonográficos (o então ministro Delfim Netto entrou na defesa da causa). Para tanto, aplicou-se, na capa dos discos, a frase ?Disco É Cultura?. A lei foi aprovada; nos anos 90, foi revogada e voltou a valer. Ganham com ela, principalmente, as multinacionais do setor.

Os pais de Nasser eram libaneses. David nasceu em Jaú, no interior de São Paulo, em 1917. Os primeiros anos de vida foram passados em Caxambu, Minas Gerais, e, quando era adolescente, foi com a família para o Rio de Janeiro.

Ajudava na renda como camelô, vendendo bugigangas – pentes, giletes, na Central do Brasil.

Teve meningite, que lhe deixou seqüelas. Andava com dificuldade (?como se estivesse bêbado?), tinha os movimentos das mãos atrapalhados – derrrubava coisas, sujava-se e sujava tudo em volta quando comia, enxergava mal.

Escrevia com dois dedos.

Para concorrer com Nelson Rodrigues, que publicava o folhetim Meu Destino É Pecar, em O Jornal, sob o pseudônimo de Suzana Flag, aumentando a tiragem do diário, David Nasser inventou uma personagem para o Diário da Noite, outra publicação dos Diários Associados, de Chateaubriand. Os que têm mais de 50 anos não esqueceriam Giselle – A Espiã Nua Que Abalou Paris.

Giselle era tratada como personagem de fato: o Diário da Noite anunciou que comprara ?com exclusividade? as memórias da bela mulher que passara de cama de nazista em cama de nazista obtendo informações para as forças aliadas.

Para garantir a verossimilhança, o Diário chamou a série de ?documentário? traduzido do original francês por um certo jornalista italiano chamado Carlos Tancini, que estaria de passagem pelo Rio – e que nunca existiu. A série escrita por David Nasser teve 59 capítulos. Seu parceiro de nove anos de trabalhos bombásticos, o fotógrafo francês Jean Manzon, era o encarregado de produzir as fotos de Giselle. Sobre ela, fala Freddy Chateaubriand, sobrinho de Assis, chefe de Nasser e Manzon: ?Nunca houve Giselle, ela nunca abalou Paris, mas o Diário da Noite foi o jornal de maior circulação daquela época. O Manzon trazia aquelas fotos não sei de onde, e o David escrevia com aquela facilidade.?

Mais tarde, uma editora comprou os direitos sobre a personagem e publicou livrecos que eram vendidos em bancas de jornais, com altas tiragens. Era o que mais próximo se aproximava da literatura erótica disponível para os adolescentes dos anos 60. O poeta Augusto Frederico Schmidt chegou a escrever uma história, como revela Maklouf.

Freddy não é o único a revelar o método de trabalho de David Nasser. Seus companheiros de redação – ou os parceiros, conhecidos – são unânimes: um homem brilhante, mas sem escrúpulos (leia ao lado).

A dupla Nasser-Manzon funcionou de 1943 a 1951. Produziu material que espantou o País, entre eles a intitulada Barreto Pinto sem Máscara, de 1946, em que o deputado, amigo de Getúlio, aparece de fraque e cuecas. Na versão de Barreto Pinto, a dupla havia prometido que só usaria a imagem da barriga para cima. O deputado foi cassado.

Eles teriam fotografado pela primeira vez – é fato, as imagens apareceram pela primeira vez – uma tribo xavante (Nasser escrevia ?chavante?). A descrição do ?ataque? dos índios ao avião são belos exemplos de má ficção.

Parece que Nasser não estava no vôo. Duvida-se que Manzon tenha de fato feito as fotos. Parece que o material foi aproveitado de um filme feito pelo DIP, departamento de propaganda do Estado Novo, em que Manzon trabalhou.

A dupla consegiu fotografar a mulher de Chiang Kai-shek, mulher do líder chinês anti-comunista, que esteve no Brasil , em 1944. Era um furo. Ao que se apura, o próprio David Nasser, vestido de mulher, se fez passar pela chinesa.

Uma das mais longas séries de reportagem de David Nasser, já sem Manzon como companheiro, foi sobre o assassinato de Aída Cúri, em julho de 1958. Ela era uma menina de 18 anos, que passara 12 num colégio de freiras. Foi abordada por um grupo de rapazes, em Copacabana. Dois deles a convenceram a subir ao terraço de um prédio, entrada facilitada pelo fato do padrasto de um deles ser síndico do edifício. Aída Cúri foi currada e caiu morta na calçada.

O crime rendeu um livro, além da série de reportagens, e foi assunto constante no programa que David Nasser teve na TV Tupi: começava com um grito, supostamente de uma mulher caindo.

David Nasser morreu rico – tornou-se empresário bem-sucedido – aos 63 anos.

Praticou um tipo de jornalismo que não existe mais na grande imprensa – até porque há mecanismos que permitem identificar a veracidade das informações publicadas. Mas houve um tempo em que era possível."

***

"Depoimentos", copyright O Estado de S. Paulo, 4/11/01

"?O Barreto Pinto era casado com uma mulher rica e queria popularidade. Chamou o David e o Manzon e disse: ‘Eu quero uma reportagem que me faça ficar conhecido no Brasil inteiro.’ Não sei quanto ele pagou, mas foi paga. Com uma condição – a de processar os dois. Aí criou-se a populariadade de Barreto Pinto, de O Cruzeiro, do David e do Manzon.?

(Flávio Damm, fotógrafo de O Cruzeiro)

?Foi só o Manzon, que fez as fotos na maior tranqüilidade. Aí vai a acuidade, o mau caráter, a competência, tudo junto, do jornalista. Ele chegou lá e Barreto Pinto estava se vestindo para ir a um banquete. Manzon viu o que podia fazer. ‘Eu estou atrasado, o senhor também é só daqui pra cima’. E tirou as fotos.?

(Hélio Fernandes, jornalista, colega de David Nasser)

?Os fatos não eram importantes para o David, e sim a criatividade. Ele inventava coisas pra poder valorizar as reportagens. Foi o Manzon que ensinou isso para ele. (…) Nunca escondi minha admiração pelo David. Eu sabia das sacanagens, das histórias que ele inventava, mas o principal é vender. E nisso aí eu sou um profissional. Vamos vender. Nâo me interessava se era verdade ou sacanagem. (…) Manzon tinha escrúpulo zero. Nenhum escrúpulo. E o David, mais ou menos a mesma coisa. Se você for procurar escrúpulo em David Nasser e Jean Manzon (…) não vai achar nunca. Talvez por acaso, em uma ou duas reportagens, porque calhou, não tinha o que alterar, e a verdade era mais interessante do que a mentira.?

(Freddy Chateaubriand, diretor de O Cruzeiro)

?O que sei é que sua técnica de repórter tem tal eficiência, que os maiores absurdos passam a adquirir uma tremenda veracidade e o leitor acredita piamente em tudo. Quer dizer, a fantasia, se existe, não aparece como tal. E vem daí, talvez, o motivo maior de sua populariade de repórter.?

(Nelson Rodrigues, escritor, colega de David Nasser)

?O David chegou a um tal ponto de sucesso que a partir de determinado momento a notícia não era mais a notícia, e sim ele, o próprio, David Nasser. Não interessava se tivesse acontecido ou não. Todo jornalista sabe que um pouco de exagero melhora o tempero. Ele sabia disso e era capaz de criar, o que eu acho uma qualidade. David não se preocupara em apurar. Ouvia contar e contava, aquele negócio da verossimilhança. (…) Cansei de ver gente muito importante pedir pro David meter o pau, porque até nisso ele era extraordinário. Ao invés de se sentir arrasado, o cara se sentia prestigiado. Um deles foi o San Thiago Dantas.?

(Jorge Audi, fotógrafo de O Cruzeiro e cunhado de David Nasser).

?O David usava a imaginação. Se o fato atrapalhasse, ele o punha de lado. tinha um poder de destruição violento, muito maior que o de construção. Quando queria destruir uma pessoa, ele criava uma figura na imaginação dele e partia até para pormenores inexistentes.?

(Jorge Ferreira, repórter de O Cruzeiro)"

 

VIDEOCLIPE

"O clipe e a nova psique", copyright O Estado de S. Paulo, 4/11/01

"Falar da TV é falar de tudo – porque há de tudo nela. Hoje começarei por um filme que vi no cinema, Moulin Rouge, mas que tem uma estética televisiva, inspirada no clipe. É MTV no cinema. Gostei. Nicole Kidman está ótima, o filme é muito bem-feito. Mas o que mais me chamou a atenção é a quase ausência de diálogos.

Conhece-se a história que inspira Moulin Rouge: é a Dama das Camélias, de Alexandre Dumas Filho. Uma cortesã e um rapaz se apaixonam. Ela, que hoje seria uma garota de programa de alto luxo, larga tudo por ele, mas é pressionada a deixá-lo. Na peça de Dumas e na Traviata de Verdi, a pressão é social: ela não pode ficar com um homem de família nobre. Em Moulin Rouge, como o preconceito do século 19 não colaria mais, a pressão é diretamente capitalista: ela precisa ajudar o amigo e patrão a salvar o teatro, hipotecado. O fim é igual, ela morrendo tuberculosa, ele acorrendo a seu leito de morte.

Disse que em Moulin Rouge não se dialoga. E essa é a questão. O romantismo, que teve na Dama das Camélias um de seus momentos altos, mostra a formação de uma pessoa, sua educação sentimental. O jovem assim constrói sua personalidade por aprofundamento – e aprofunda-se nos sentimentos pela dor, pela emoção, pelas lágrimas, dele e dos espectadores. Ora, esse aprofundamento não existe em Moulin Rouge.

Insisto: não estou criticando. Só quero entender. Por uns 200 anos, do fim do século 18 ao fim do 20, houve um ideal de ser humano, que teria na intimidade seu valor maior. E sem profundidade não há intimidade. Diálogos fazem parte dessa construção de um ideal de pessoa. Não só o diálogo enquanto conversa, mas o de cada um com o mundo e com suas próprias experiências. Mas em Moulin Rouge isso desaparece. Claro, o rapaz sofre com a morte da amada. Só que sua dor não produz uma interiorização, não forma uma intimidade.

Um amigo, o psicanalista Jurandir Freire Costa, diz que está acabando a psique enquanto aprofundamento. (De Freud, dizia-se que ele fazia ?psicologia profunda?). Devo a ele a observação, que reputo brilhante, embora as conclusões que extraio sejam por meu risco.

Talvez o fim da psique profunda venha junto com uma redução da dor afetiva.

Voltemos à Dama das Camélias. O romantismo concentra-se na paixão, no enamoramento. Essa experiência é tão forte que nunca dá certo e até mesmo mata. A tuberculose da personagem, por isso, era só pretexto para a morte, não a sua causa. Ora, hoje em dia ainda nos emocionamos com a literatura romântica. Ela é importante para ensinar aos jovens o amor e a frustração.

Mas com uma enorme diferença: apaixonar-se, hoje, não é mais uma experiência única e fatal. Nossos amores-paixão são sucessivos, descartados. Não são mais um só na vida. E isso faz toda a diferença.

Aqui entra o papel educativo, formador do clipe. Ele achata, sim, a psique.

Acaba com a profundidade. Meus colegas da universidade o criticam, por isso, sem piedade. Reclamam que ninguém mais tem paciência ou presta atenção. Mas o clipe também reduz a dor na experiência dos afetos. Estamos aprendendo, ou melhor, os jovens estão aprendendo a conhecer o amor com menos sofrimento.

Talvez isso os torne mais superficiais e com isso percam algo importante.

Mas podem, também, ganhar algo relevante: a morte de umas rimas pobres, como sentimento e sofrimento, amor e dor. Apesar de suas falhas, o clipe da TV pode estar construindo esse tipo de sociedade nova, que buscará novas rimas, mais ricas."

    
    
                     
Mande-nos seu comentário