Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Mídia como arma de guerra

PENSAMENTO ÚNICO

Carlos Azevedo (*)

A primeira vítima de uma guerra é a verdade. Com certeza, em época de conflitos bélicos mundiais, tal afirmação aplica-se muito bem ao papel da mídia. A chamada guerra contra o terrorismo, empreendida pelos Estados Unidos contra o Afeganistão, traz de volta a visão dos meios de comunicação como instrumentos de busca da hegemonia e de controle da opinião pública mundial. É interessante acompanharmos a evolução das relações entre o campo dos media e a instituição militar para entendermos a fundo a cobertura dada pelos veículos nacionais e internacionais ao conflito.

No livro "Estratégias de Comunicação" (Lisboa, 1990), o professor Adriano Duarte de Rodrigues, catedrático da Faculdade de Ciências da Comunicação da Universidade Nova de Lisboa, historia as relações entre a instituição dos media e os militares. Para ele, a comunicação é peça fundamental para as guerras. "Não admira, por isso, que a fotografia, o cinema, o megafone, a telefonia, o telégrafo, a televisão tenham sido logo associados, desde os primeiros tempos ao campo militar. A história, senão a origem dos media, depende em grande parte da história das próprias armas" (p.173).

Ou seja, em alguns casos, instrumentos de comunicação são inventados primeiramente com fins militares, e só depois são explorados comercialmente pelos civis. Mesmo no caso do cinema, que surgiu inicialmente como arte civil, no começo do século 20, como um divertimento sem maiores pretensões, com seu desenvolvimento industrial, passou logo a instrumento de propaganda ideológica para o imperialismo americano e para o regime nacional-socialista de Adolf Hitler.

O rádio destaca-se no uso militar das tecnologias de comunicação. Devido a sua instantaneidade, o meio rádio ajudava e ajuda ainda na movimentação das tropas e na troca de informações entre as posições dos soldados no front. O uso do rádio por regimes totalitários é marcante no caso alemão durante a Segunda Guerra, quando Hitler pronunciava seus discursos racistas e inflamados conclamando a união da raça "superior" para dominar o mundo.

A própria internet é fruto da engenharia militar. Nascida nos Estados Unidos em 1969, seu nome original era Arpa (Advanced Research Projects Agency). Produto da Guerra Fria, que dividia o mundo entre duas potências, Estados Unidos e União Soviética, a função da internet era militar, para articular centros de defesa em caso de um ataque soviético. Hoje, a internet encontra-se na sua terceira fase, a comercial. A segunda fase de tecnologia de comunicação digital foi universitária, quando ela foi popularizada primeiro nos centros de ensino superior no mundo. Com o desenvolvimento da interface gráfica da WWW(World Wide Web), a internet foi simplificada com o uso de ícones que facilitam a utilização por um público leigo.

A voz da América

A televisão é um meio que influenciou muito a população civil americana durante a guerra do Vietnã, na década de 60. A exibição de combates e da crueldade dos próprios militares americanos com os vietnamitas mudou radicalmente a relação que a opinião pública tinha com aquele conflito. Protestos internos foram responsáveis pela retirada dos militares da guerra do Vietnã. Aprendida essa lição, hoje os americanos, antes de começar qualquer conflito bélico, promovem clara censura aos meios, principalmente à TV. Isso ocorreu na Guerra do Golfo (1990-91) contra o Iraque. As imagens dos bombardeios eram noturnas, reduzidas a clarões numa tela esverdeada.

Além disso, o discurso da CNN, rede mundial de TV, dizia que com a precisão cirúrgica das bombas guiadas por computadores e sinais de rádio as baixas civis eram reduzidas. Tratava-se de uma guerra "limpa", segundo a ideologia difundida pelos americanos. Versão acriticamente comprada pelas TVs brasileiras, que aplaudiram esse novo tipo de guerra "sem sangue ou mutilações". No entanto, a realidade foi bem diferente, uma guerra como as outras, só que o cerco ao inimigo também foi feito pela mídia. Enfim, uma guerra midiática, disputa pela hegemonia da "verdade".

O entre-guerras fez surgir os Estados Unidos como potência mundial, é o que assinala o pensador da comunicação Armand Mattelart, belga radicado na França, autor do livro "História da utopia planetária" (Lisboa, 2000). Para ele, os americanos tiraram grandes lições dos choques empreendidos pelas potências mundiais expansionistas e imperialistas. Basta dizer que o governo americano mobilizou especialistas da comunicação para pensar a questão da opinião pública em época de guerra. Um dos primeiros trabalhos sobre o assunto foi do cientista Walter Lippman, especialista em opinião pública, que escreveu em 1922 o livro Public Opinion.

Um outro pioneiro não menos importante foi Harold Lasswel (1902-1978), que escreveu em 1927 Técnica de propaganda na guerra mundial. Promovendo uma sábia dosagem de desinformação, informação e censura, os americanos criam o conceito de guerra psicológica, no qual o inimigo (comunistas, terroristas, nacionalistas) são alvo de uma propaganda política difamatória. As agressões não se dirigem agora apenas ao corpo mas também à alma, ao espírito, ao ego dos adversários. É nesse contexto que o governo dos EUA criam a rádio Voz da América, para difundir ideologias, quebrando fronteiras, em 1933.

Do "imundus" para o "mundus"

Mas a propaganda política, que ganha status de ciência para muitos, não é utilizada só pelos anglo-saxões. União Soviética e China também souberam empregá-la muito bem em campanhas contra o imperialismo dos EUA, estimulando os países colonizados a aderirem ao socialismo, reforçando o bloco oriental. Os regimes fascista e nazista também produziram seus materiais de propaganda política. Assim, instala-se no mundo a busca da difusão de ideologias diversas com uso dos meios de comunicação, num mercado global pelo convencimento.

Com o fim da guerra fria e a dissolução de uma utopia do socialismo internacionalista, o mundo aparentemente encontrava-se em relativa paz. Engano, engano. O pensador Armand Mattelart atesta que "a ausência, desde o fim da Guerra Fria, de um adversário global claramente identificável" para os Estados Unidos, criou a ilusão de um mundo unipolar em que os riscos de conflitos eram mais econômicos do que militares, devido aos blocos como Comunidade Européia. Mercosul, Nafta, entre outros. Engano. O inimigo agora é o terrorismo, que destruiu em alguns rápidos golpes símbolos da hegemonia militar e econômica ianque com os ataques de aviões aos prédios do Word Trade Center e do Pentágono.

Desta vez o inimigo não era mais um país, um estado-nação, como querem os americanos. Um inimigo invisível, que se move em redes subterrâneas que ligam máfias, radicalismos religiosos e interesses econômicos. É o que Mattelart chama de "novas frentes mundiais de desordem", forças que se movem no "imundus" e desafiam o "mundus". Uma luta entre a ordem capitalista e suas próprias entranhas, estranhas entranhas.

Faroeste high-tech

Ao bombardearem o Afeganistão, os Estados Unidos querem acalmar a opinião pública interna, com frases de efeito, dizendo: "Calma, já temos controle da situação, já identificamos o inimigo." A guerra ? seria preferível chamar de massacre? contra o Afeganistão tem os mesmos princípios consagrados pelos teóricos da propaganda de guerra. Como o que foi feito na Guerra do Golfo (90-91): primeiro o campo de batalha é cercado e a mídia afastada do local. Nada de imagens iniciais sobre o massacre. No máximo, assépticas imagens geradas por câmeras noturnas de alta tecnologia mostrando os mísseis teleguiados por computador e rádio atingindo alvos cirurgicamente escolhidos.

Fechado o cenário de combates e promovida a censura aos meios de comunicação, é hora de se manipular a opinião pública em tempos de guerra. São encomendadas pesquisas apoiando a iniciativa de guerra contra o inimigo agora palpável, o Afeganistão, país pobre, sem a menor condição de resistência ao poderio tecnomilitar global dos EUA. A repetição da imagem do avião se chocando contra as torres do WTC é exaustiva, talvez a cena mais vista do planeta.

O mercado mundial de imagens é manipulado para se costurar a necessidade da guerra, expondo a necessidade de se ter um boom global contra o terrorismo. Clima de faroeste high-tech, na qual a personalização dos conflitos chega ao extremo: existe apenas um culpado que deve ser caçado, o milionário Osama bin Laden.

Ao sabor do vento

Retomam-se também as polaridades entre Oriente e Ocidente, islamismo e cristianismo, fé e razão, entre outras. A guerra psicológica também chega ao front: milhares de rádios são distribuídos, lançados pelos aviões, para que a população possa ouvir as mensagens transmitidas pelo inimigo. Panfletos conclamando à rendição, redigidos na língua dos habitantes do Afeganistão, são atirados do céu, bem como bombas e alimentos.

A orquestração da mídia pelos instrumentos de propaganda política da grande potência econômica global em crise é notória. Os grandes veículos não fazem jornalismo, mas sim propaganda de guerra. E os princípios são os mesmos: simplificação da questão com a criação de slogans facilmente entendidos ("morte aos terroristas", "guerra contra o terror"), criação de um inimigo único, um bode expiatório (Osama bin Laden), orquestração de vozes contra esse inimigo ? o primeiro-ministro britânico Tony Blair tenta convencer a tudo e a todos a apoiar a guerra), entre outras técnicas usadas com sucesso pelos americanos na Segunda Guerra Mundial.

A comunicação persuasiva da propaganda contamina o jornalismo. A razão cede espaço à falta de senso crítico por boa parte da imprensa mundial, francamente comprometida com as megacorporações e os interesses econômicos.

Mas a busca de uma opinião pública mundial favorável à intervenção militar pode não durar muito, pode mudar como o vento. Ao sabor das imagens, dos gritos e do sangue de uma guerra na qual os meios de comunicação funcionam como armas, armas de convencer, a serviço de interesses nem sempre humanitários.

(*) Jornalista e professor do curso de Comunicação da UFP

    
    
                     

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