Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Mídia e eleições, consensos e falácias

COBERTURA ELEITORAL

Gilson Caroni Filho (*)

Muito se tem escrito sobre o comportamento exemplar da mídia nestas eleições. Há muito tempo alertamos que, apesar da melhora do padrão de cobertura, se comparado aos de outros pleitos, não há uma redefinição editorial que permita afiançar o abandono de antigas alianças em nome de preceitos deontológicos por muitos ansiados.

O jogo político há de solicitar sempre novas táticas.Os interesses empresariais são regidos no mesmo diapasão. Os deslocamentos sutis não podem ser vistos como mudanças qualitativas de maior importância. A crispação da superfície das águas pode evidenciar a existência da brisa, mas pouco diz das mudanças de correntes. E são estas que devem ser observadas atentamente se pretendemos nos aventurar ao mergulho.

Alguns aspectos, por serem estruturais, não devem ser ignorados sob pena de cair na indigência analítica que pode, em alguns casos, ser a matriz de belas petições de princípios, mas que pouco colabora para a compreensão da mídia como instância articuladora de hegemonia. Outros pontos são conjunturais e esquecê-los corresponde à renúncia de qualquer reflexão sobre o campo político.

Tomemos como referência para o aprofundamento de algumas questões a coluna "Panorama Político", publicada diariamente no jornal O Globo. Na edição de 12/9, a jornalista Teresa Cruvinel assume tom lamuriento ao registrar o comportamento de alguns candidatos. Em contraponto, o discurso auto-referido exalta os feitos da imprensa nos últimos meses. É a celebração do campo midiático ante o esvaziamento da esfera política. Ou é da subsunção desta última pela lógica espetacular que trata, sem o saber, a conceituada colunista. Presente em seu texto estão muitas das falácias que se tornaram correntes no que chamaremos de "senso comum jornalístico". Observemos o trecho abaixo:


"Uma das características mais louvadas da campanha para presidente foi a abertura sem precedentes da mídia para o debate e a exposição dos candidatos, antes do início do horário eleitoral. Muitas já foram as oportunidades para conhecê-los, fora da autopropaganda. Mas surgem sinais de que os dois primeiros colocados já não querem pôr em risco o patrimônio amealhado." (O Globo, 13/9)


Ou há um desvio semântico ou o que deve ser "louvado" inexiste. A transformação da mídia na Ágora do mundo contemporâneo ignora aspectos cruciais da natureza do campo jornalístico. Por sua própria dimensão industrial e em perfeita consonância com a temporalidade do capital que ajuda a reproduzir, o discurso midiático, em especial o televisivo, é antípoda de qualquer forma de exposição que leve ao conhecimento. A apresentação fragmentária e atomizada não conduz à formação de cidadania. Mas à construção de consumidores insatisfeitos e dispersos. Não estamos mais a viver a imprensa que teve papel central na constituição da esfera pública. Tratamos agora daquela que tenta elidi-la como pura ação teatralizada.

Os candidatos não foram apresentados como portadores de um projeto para o país, mas como anódinos produtos de marketing. Pela imprensa, o conhecimento que deles se tem é anedótico. Serra, Ciro, Garotinho e Lula são respectivamente o "tímido", "o intempestivo machista", "o bonachão pentecostal" e o "sujeito que amadureceu muito" e tem um vice como avalista. Afinal, para alguma coisa deve valer uma fração progressista da burguesia. Verdade que, em dado momento, falou-se em bonapartismo e cesarismo. Foi quando a campanha de Ciro andava em alta, mas sem jamais precisar teoricamente o que significavam aqueles termos.

Distribuição do tempo

Que nos perdoem os mais entusiastas de uma "mídia merecedora de elogios", mas nunca a partidarização foi mais evidente. Para demolir a ameaça representada por Ciro Gomes, sobre o paradoxo do bloco de poder temer uma expressão conservadora e oligárquica, os expedientes foram múltiplos [ver, a este propósito, "A redenção da Globo", remissão abaixo]. Podemos afirmar, sem medo de excessos, que várias colunas políticas foram transformadas em sítios tucanos, tal a semelhança entre o que expressavam seus titulares e os discursos advindos da coordenação de campanha do candidato do PSDB. E, diversas vezes, uma observação devidamente descontextualizada serviu como traço indispensável para definir um perfil comportamental. O que há de tão louvável nessa trama? Nada, a não ser quando, para efeitos pedagógicos, a posteridade permitir revelar o que foi jogado nos bastidores.

Curiosamente, a mesma mídia que denunciou com veemência a censura de Garotinho à publicação de trechos de uma fita que lhe seria comprometedora silenciou ante o estranho cancelamento do debate entre os candidatos no SBT. Há versões de que o núcleo governista e a emissora teriam acordado quanto à proibição de críticas ao governo federal, levando os candidatos da oposição a desistir de participar. Tal fato, se confirmado, seria o episódio mais emblemático da atual campanha. Uma assunção, sem mascaramento, de parcela da mídia como gestora executiva dos interesses de uma candidatura. Algo que choca não pela novidade, mas pelo caráter extemporâneo em momento no qual todos são assépticos e "isentos". Com direito a legitimação por instituto de pesquisa.

Lula tem sido mantido sob pressão constante. A todo momento é lembrado em diversos veículos de que o ataque de Serra é iminente. Certamente serão questionadas as gestões petistas, com destaque para Porto Alegre e Santo André. Parece que a Folha de S.Paulo não deseja que a capital paulista seja esquecida, e coloca supostas irregularidades da administração de Marta Suplicy na primeira página da edição de 13/9. Tal como tentara antes, sem sucesso, com o governo de Zeca do PT, em Mato Grosso. Mantidas as condições de atmosfera e pressão, seria o caso de indagar como andam as gestões tucanas. E quais serão as repercussões de um contra-ataque petista? A pergunta não é irrelevante se se levar em conta o padrão de cobertura na polarização entre Serra e Ciro. O ataque do primeiro significou uma "investida política". A réplica do segundo foi apresentada como o início da "baixaria". Se isso não é partidarização, aguardamos um esclarecimento piedoso.

Outro ponto a causar estranheza é o não-questionamento da distribuição do tempo eleitoral. O tamanho da representação no Congresso pode servir como critério para o tempo dos programas dos candidatos a cargos majoritários? Bem sabemos que isso está estabelecido em legislação, mas tal fato confere legitimidade ao processo? Será que os diligentes analistas de propagandas eleitorais julgam o fator tempo irrelevante? Ou se calam por conveniência ao que, per si, retira do pleito uma considerável fatia de competitividade democrática?

Refundar a política

A colunista do Globo reclama ainda da pouca disposição que alguns candidatos estariam demonstrando ante a realização de novos debates televisivos. "Pode ser uma tática eleitoral correta, mas não deixará de ser uma desconsideração com o eleitor, diante dos quais gostaram de se exibir quando a meta ainda era seduzir. Lula e Serra já teriam dúvidas, por exemplo, sobre a conveniência de participação no debate da TV Globo, previsto para o dia 3."

Em outro trecho, conclui a colunista: "Mesmo na véspera ainda existem eleitores querendo tirar dúvidas para decidir seu voto. Muitos levam a indecisão para a boca da urna. Serão privados da última chance se houver o boicote. E no futuro partidos e candidatos perderão a razão para reclamar mais espaços para o debate."

E aqui reside a mais forte das falácias do nosso vocabulário eleitoral. Entendido como argumentação racional na defesa de interesses, com direito a contraditório e tréplica, esse tipo de contenda, além de fazer parte do passado da esfera pública, não é viável num veículo como a televisão. Como aparelho hegemônico, melhor expressa a velocidade temporal da sociedade contemporânea. O que é apresentado ao telespectador não é um debate, mas um simulacro dele. Explicar em três minutos uma proposta setorial, ser replicado em dois e ter direito a uma tréplica de 60 segundos não guarda qualquer relação com o embate político. É, quando muito, um espetáculo circense que tem como vencedor o mais espirituoso ou o que menos se deixou enredar em pegadinhas. A única vitoriosa de fato é a emissora que apresenta a simulação de confronto.

Não há, aqui, uma intencionalidade desvirtuadora. Constitutivamente a televisão não comporta o exercício político. Seu campo comunicativo é, como destacou Habermas, anterior à ação que nela se desenvolve. A forma sobredetermina o conteúdo e faz desaparecer qualquer diferença de fundo. Portanto, caríssimos amigos, há uma incompatibilidade estrutural entre o veículo e o pleno debate democrático. Entre a dinâmica do que está engendrado para ser entretenimento e a ação que se pretende transformadora.

Refundar a política requer pensar centralmente a questão da estrutura comunicativa. Não há nada de novo nessa constatação. De há muito vários atores sociais centram sua ação nesse terreno. Mas, frente ao embevecimento de inúmeros críticos com a "admirável mudança" dos meios de comunicação, julgamos imperativo restabelecer alguns parâmetros de análise. O resto é lamúria de colunismo entediado.

(*) Professor-titular da Facha (Faculdade de Comunicação e Turismo Hélio Alonso), Rio de Janeiro

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? G.C.F.