Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Mídia, escroques e baixa estima

José Antonio Palhano (*)

 

Q

uanto tempo já perdemos com papéis falsificados? No jargão bem ao gosto desta modernidade financista que teima em dar as cartas ad eternum, há muito a papelada que reza sobre continhas no Caribe já micou. Ou, mais sensatamente, trata-se de uma natimorta. Que, empinada por um jornalismo supostamente investigativo e imparcial, evolui desembaraçadamente à guisa de um fantasma escalado para avivar supostos traumas nossos decorrentes da conexão Maceió-Canapi-Brasília e das suas metástases mundo afora.

O que mais impressiona na trepidante cobertura das tais contas caribenhas não é exatamente a intenção deliberada de atrelá-la ao episódio do grampo telefônico do BNDES, este sim um fato real, independentemente dos méritos e deméritos. É de uma ingenuidade atroz a manobra de recorrer a semelhantes ficcionismos (droga que já vem malhada, no dizer de Cazuza) no propósito de soletrar pseudo-alertas cívicos, tipo “Eu não disse?”, “Político é tudo igual”, “O Brasil. não mudou nada depois de Collor” e que tais.

Se desde logo se fez clara a participação de Fernando Collor e sua gentinha no fajutíssimo papelório, nada mais grotesco que tentar a todo custo sua autenticação a partir desta autoria. É como se um coro masoquista coletivo estivesse a berrar que tudo o que vem do homem, mesmo mentiras e armações, teria o pavoroso poder de se transformar em realidade. O jurista Paulo Brossard pode ter acertado no que não viu quando, à época do impeachment, alertou para certos custos institucionais como seqüelas do processo. Pelo que se vê, o preço é uma crise intestina de baixa estima. Significativa parte da grande imprensa digita Collor na conta de um espectro terrível, a pairar sobre nossas cabeças com ares de fim de mundo.

Está lá na Folha de S. Paulo (Dúvida impiedosa – Eliane Cantanhêde, 13/11) um exemplo típico. O texto sugere ao preocupado leitor um cardápio indigesto: que ele assimile Paulo Maluf, Fernando Collor, Gilberto Miranda e Lafayette Coutinho como eventuais vencedores na luta entre o bem e o mal. Chama isto de “assustador”. Segue-se a conclusão de que os acusados viram acusadores e estes últimos se fazem nos primeiros. O fecho, sintomático, quase um brado de alerta, chama de “devastadora” a sensação de que, em política, “todos são iguais”. Ora, a ilação, mal dissimulada, salta aos olhos. As contrapartidas destes personagens cuja reputação, mais que duvidosa, é de uma certeza granítica, são obviamente Mário Covas, José Serra, Sérgio Motta e Fernando Henrique. Como nem através de manipulações de DNA (coisa inviável para Collor ou qualquer Nobel) seria possível estabelecer comparações entre um grupo e outro, fica claro que o raciocínio é exuberantemente inseguro. Não há a menor hipótese, com ou sem papéis sujos, de os primeiros tomarem o lugar dos segundos. Nem no poder e muito menos em qualquer ranking de critérios morais.

O agudo e candente alarmismo brota de novo no domingo, 15/11, na mesma Folha e autora idem, em “Elle vem aí!”. O título, por inspirado em mote de campanha de um equivalente mental de Fernando Collor que chegou lá, é quase uma plataforma de lançamento, mesmo que não tenha sido esta a intenção da autora. Já o primeiro parágrafo ruge como uma terrível e inapelável sentença: “Em meio a tantas dúvidas, começa a se impor uma certeza no episódio (…) da tal conta no exterior: o maior beneficiário político pode ser Fernando Collor de Mello”. A quem o artigo não deixa de dramaticamente vitimizar, identificando-o como alguém que reage “à dor e à humilhação”. Para em seguida diagnosticá-lo, em nome de todos nós (“Como se sabe”), como “um obstinado”.

Mais à frente, ainda sobre o ex-presidente: “Ousado, jovem o suficiente, Collor carece de escrúpulo. E tem ódio. Tem gana de detratar seus detratores…”. Com todo o respeito, cabe a pergunta: quem é detrator de Collor? A simples definição da palavra, no Aurélio, acena com gestos absolutórios. Detratar, o mesmo que difamar – “Imputar (a alguém) um fato concreto e circunstanciado, ofensivo de sua reputação, conquanto não definido como crime”. É sabido que o próprio “detratado” sabia das suas culpas, tanto que fugiu ao processo de impeachment, o que não foi suficiente para livrá-lo de batalhas com a Justiça que perduram até hoje. Para terminar, o texto é tão senhor de futuros, premonições e presságios que até se dá o luxo de apontar o senador Antônio Carlos Magalhães como um prevenido passageiro no futuro “barco” de Collor.

Medo? Paranóia? Ou uma tendência a carnavalizar instituições (vamos ver se melhoramos ou se isto aqui continua uma republiqueta de bananas), inerente a democracias adolescentes onde não faltariam rasgos e cânticos característicos de colegiais? Em sociedades paternalistas como a nossa viceja o fascínio pelos que mais se destacam, independentemente se positivo ou negativo. Quando tal fascínio contamina o jornalismo, especificamente o que se denomina de político, perde este seu caráter primordialmente informativo e apontador de tendências. É fácil concluir que os estragos promovidos por Collor e seus sequazes são até aqui maiores no seio da própria mídia que na sociedade, como aquela volta e meia tenta desesperadamente provar.

Satanizar meliantes, sejam eles de que espécie forem, não é certamente um caminho a seguir. Exibi-los como bichos-papões à espreita dos incautos acaba por produzir uma monumental – e injusta – confusão, na qual são misturados e tratados como semelhantes a homens públicos como Mário Covas e José Serra. Afinal, não é sensato pensar (e difundir) que a democracia não se presta nem mesmo para legitimar a nossa tão cara capacidade de discernir.

Jô Soares, por exemplo (sem favor nenhum uma expressiva referência de mídia), vende caro sua prerrogativa de discernir. Entrevistado recentemente no Roda Viva, resistiu bravamente à investida do escritor Marcelo Rubens Paiva. Que queria porque queria que ele concordasse com uma sua tese segundo a qual Fernando Henrique não passaria de um Fernando Collor. Tal alquimia seria possível graças ao episódio da compra de votos, quando da votação da emenda da reeleição. Jô manteve posição até o fim. Realmente não é difícil rebarbar a comparação, até abrindo mão da defesa de FHC. Bastaria que Paiva (ali legendado como representante da Folha) refrescasse a memória. Lembraria então que o processo de ejeção do primeiro Fernando só foi possível por contar com um especialíssimo fator, ausente no triste episódio dos votos vendidos: o inestimável aval da voz rouca das ruas. Não se deve desprezar os caras-pintadas e toda essa brava gente que foi às ruas então.

(*) Médico e cronista