Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

Mídia potencializa iatrogenia

OFJOR CIÊNCIA 99

 

OfJor Ciência 99 ? Oficina OnLine de Jornalismo Científico é uma iniciativa do Observatório da Imprensa, Labjor e Uniemp.

 

Isak Bejzman (*)

 

Thomas Szasz, professor de Psiquiatria da Universidade de Syracuse, Nova York, diz que Nietzsche está redondamente enganado: Deus não morreu não, Ele simplesmente desapareceu por detrás do palco da história e reemergiu ali adiante como médico cientista.

Não sei como andam as rádios e televisões do resto do mundo e do Brasil, mas aqui, nos Pampas, o que dá de médico aparecendo na TV e falando nas rádios ultrapassa os congestionamentos de tráfego da cidade de São Paulo em dia de chuva.

É sabido que onde o médico entra em cena existe o risco de iatrogenia, assunto sobre o qual os médicos não querem nem ouvir falar. É óbvio que programas de rádio e televisão coordenados por alguma entidade médica apresentam menos risco.

Já não chega a propaganda governamental fajuta sobre Aids e drogas (como é que pode publicitários habitualmente tão criativos e inteligentes fazerem esses absurdos?), a ela soma-se uma avalanche de informações dada por médicos nos programas de rádio e TV que, aparentemente, parecem falar sobre saúde, mas que, na realidade, só falam de doenças; e quase nada sobre jornalismo científico.

Iatrogenia é a ciência que se dedica a estudar e relatar doenças causadas por profissionais da área médica, principalmente por médicos.

[Cf. Aurélio: Iatrogenia [De iatro- + -geno- + -ia.] S. f. Med. 1. Alteração patológica provocada no paciente por tratamento de qualquer tipo: “um dos capítulos mais importantes da ciência médica atual é a iatrogenia, que cuida dos males provocados pela ação do médico, ou pelo tratamento por este prescrito.” (Clementino Fraga Filho, ap. Carlos Drummond de Andrade, Jornal do Brasil, 2.8.1980).]

O assunto é tão importante que mereceu matéria da revista Time, que reporta aproximadamente 80 mil “assassinatos” por ano atribuídos a ações iatrogênicas de médicos e tratamentos médicos ? o dobro das mortes por acidentes de trânsito. E esses números, segundo a Time, não são definitivos. É importante, então, que o público seja alertado para esse lado obscuro da medicina, pois se trata de uma questão de Saúde Pública.

Por outro lado, cabe às entidades médicas alertarem os médicos sobre a importância e a influência de uma possível identificação psicológica do ouvinte e do telespectador com o quadro mórbido por eles abordado, assim como sobre o risco que um entendimento distorcido do discurso médico possa ter sobre o ouvinte e o telespectador.

Um exemplo: uma mulher obsessiva e obesa aguardava com muita ansiedade o programa de um endocrinologista. Anotou direitinho o nome dos dois medicamentos descritos pelo médico: a fenfluramina e a dexfenfluramina. A FDA (Food and Drug Administration), agência governamental americana muito séria, eficiente e confiável, autorizou e depois retirou esses dois produtos do mercado por causarem doença cardíaca grave.

O leigo desconhece a síndrome da hipertensão gerada pelo avental branco, mas todo clínico que estuda seus pacientes sabe que 25% deles, só em ver o médico, têm seus níveis tencionais sangüíneos alterados.

Estudos demonstram que a vitamina E protege contra doenças cardíacas, câncer, retarda o envelhecimento, protege dos radicais livres etc. Um médico vai para o rádio ou a TV e descreve as maravilhas que é a vitamina E. Termina seu tempo e ele não conseguiu esgotar o assunto, deixando de falar sobre como funciona, como deve ser usada e em que doses, podendo daí advirem conseqüências patológicas para o ouvinte e o telespectador, por uso inadequado.

Castração radiofônica

Pessoas que padecem de dores crônicas entram em ansiedade ao ficarem sabendo que um especialista vai falar no rádio ou na TV sobre o assunto. Tratamentos indicados: biofeedback, relaxamento, hipnose, psicoterapia e drogas analgésicas, estas últimas facilmente vendidas em qualquer farmácia. Como as drogas são o tratamento mais barato, a sociedade adquire mais um milhar de dependentes de analgésicos, dependência tão perturbadora como aquela causada por drogas de uso ilícito, tabaco e álcool.

Um sábado desses, ouvindo um programa de rádio sobre doenças sexualmente transmissíveis (DTS), não sabia se ria ou chorava: o médico estava com tanta vontade de ajudar seus ouvintes que, além das moléstias venéreas já conhecidas, incluiu a hepatite ?C?, explicando que o vírus é transportado pelos líquidos orgânicos (esperma, suor, saliva) e que, quando se dá o coito, os líquidos do homem entram na mulher e vice-versa.

O discurso do médico, de conotação sádica, foi tão dramático que os ouvintes, ao terminar o programa, devem ter prometido nunca mais ter uma relação sexual. No meu entender, por mais boa vontade que esse médico tenha tido em ajudar as pessoas, ele mais castrou do que ajudou. Não chega a gonorréia, a sífilis, o condiloma venéreo e a Aids para castrar, ainda é preciso dizer que fazer amor e ter prazer tem um novo castigo. Como se não fosse suficiente, o médico encerrou sua participação no programa alertando os ouvintes: “E olhem, hepatite dá cirrose e depois vem a morte. Ela mata muito mais que a Aids.”

Médicos sabichões

Há medicamentos com dupla personalidade, a do Dr. Jekill e a do Mr. Hyde. O médico as conhece; o leigo não. Por isso, toda vez que um médico fala à massa de ouvintes e telespectadores, seu discurso apresentará riscos de iatrogenia sempre que ele falar só de uma das personalidades.

O mesmo se dá com a descrição de certas técnicas novas. O médico se deslumbra com os avanços tecnológicos, deslumbramento que o leva a supervalorizar o fato, criando muitas vezes idéias distorcidas no público.

Uma das matérias mais frustrantes para a grande massa de ouvintes e telespectadores, na maioria pessoas de baixo ingresso mensal, é a Medicina Cosmética, à qual a maioria não tem acesso. E o pior é quando vários especialistas, em dias sucessivos, se apresentam como se estivessem competindo entre si pelo mercado. Todo ser humano tem direito e obrigação de gostar de si, e todos devem ter direito a esse tipo de medicina.

Tem certas coisas que um profissional, ao comparecer a um programa de rádio ou TV, deve evitar: Ronaldinho machucou mais brasileiros quando se apresentou com seus dois carrões de 300 mil dólares cada, e suas compras de 20 mil dólares em Ciudad del Este, do que com o sucedido no final da Copa do Mundo, na França.

Se é possível dizer que a iatrogenia, causada por médicos e paramédicos através dos meios de comunicação audiovisuais, pode assumir características patológicas, o fato se transforma em praga quando jornalistas, psicologicamente médicos frustrados, resolvem virar médicos sabichões. Esses estão diariamente no microfone e na telinha e, inconscientemente, se servem dos médicos para disseminar o germe da iatrogenia.

Parece que está havendo uma grande confusão entre o que vem a ser saúde, doença e jornalismo científico.

Saúde, em palavras simples, é estar bem física e mentalmente, ter casa, comida, roupa lavada, lazer, educação, água encanada, esgoto pluvial, esgoto cloacal com as águas servidas tratadas, energia, comunicação, gratificação sexual, desenvolvimento da sensibilidade artística, trânsito e transporte civilizados, trabalho gratificante, democracia; e muitas outras coisas mais.

Doença é quando uma das variáveis que constituem a saúde não está bem.

E jornalismo científico é a arte jornalística de levar os avanços da ciência e da tecnologia ao povo, numa linguagem tal que ele possa entender o que seja esse progresso.

(*) Médico psiquiatra e jornalista

 

Comissão de Cidadania e Reprodução (*)

 

“Grávida é morta pelo marido em Cajamar ? Grávida de três meses foi assassinada pelo marido com um tiro no peito em Cajamar (Grande São Paulo). Os vizinhos ouviram tiros por volta de oito horas e chamaram a polícia.” Apenas mais um crime já banalizado no noticiário policial? Não é o que indicam as estatísticas: no estado de São Paulo, em 1998, os boletins das delegacias de defesa da mulher registraram 52 homicídios, 227 tentativas de homicídio, 57.246 queixas de lesão corporal, 2.026 de maus-tratos, 36.653 ameaças diversas, 1.834 estupros e 555 tentativas. O total de prisões efetuadas ? apenas 598 ? é insignificante e revelador da leniência com que é tratada a prática da violência contra a mulher. No entanto, o assassinato, pelo marido, de uma mulher grávida ocupa exatas 14 linhas na edição de 24 de janeiro do jornal O Estado de S. Paulo, página C7.

Pesquisa divulgada pelo Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas para a América Latina no Dia Internacional da Mulher indica: 33% das mulheres entre 16 e 49 anos sofrem algum tipo de abuso sexual e praticamente a metade delas (45%) passa por situações de agressão, ameaças, insultos e danos a bens pessoais na América Latina. A divulgação do trabalho mereceu pouco destaque na edição de 9 de março do mesmo O Estado de S.Paulo. São 27 linhas sem destaque editorial.

Mas o combate à violência doméstica e contra a mulher ainda não entrou na agenda da sociedade brasileira, nem na pauta da imprensa com o peso que o problema merece. Por quê? Afinal, a Constituição Federal de 1988 estabeleceu expressamente a igualdade entre homens e mulheres, em direitos e obrigações, e atribuiu ao Estado o dever de criar mecanismos para coibir a violência no âmbito da família e proteger cada um de seus membros (art. 5? e art. 226, parágrafos 5? e 8?). Desde 1984 o Brasil já ratificara a Convenção da ONU sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher. Mais recentemente, aderimos a diversas outras declarações internacionais de proteção dos direitos humanos, entre as quais documentos específicos, como a Convenção Internacional para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará, 1995).

Ainda que existam esforços de parlamentares e de segmentos da sociedade na reforma legislativa, a legislação infraconstitucional mantém-se em desacordo com os novos conceitos de igualdade e eqüidade entre homens e mulheres. O país contraria sua própria Constituição e os tratados internacionais que assinou, e até mesmo normas técnicas que regulamentam a lei ? como a do Ministério da Saúde estabelecendo critérios de atendimento às vítimas de violência ?, correm o risco de ser eliminadas. Enquanto mulheres continuam condenadas a sofrer toda a violência que as estatísticas revelam, a imprensa concentra seu interesse apenas no aspecto policial do tema.

(*) Site da CCR: <www.ccr.org.br>